“Tempo tempo tempo tempo” é Maria Bethânia. Tudo mais — direção, cenografia, figurinos, luzes e, sobretudo, som — conta pouco. É verdade que um grande show é soma das virtudes desses elementos, mas, no caso do que está em cartaz no Canecão, Maria Bethânia se basta. O que não é novidade.
Sua entrada em cena é arrebatadora. Canta uma “Modinha” como não se ouvia desde Elizeth, mesmo considerando Elis, o próprio Tom e outros que se aventuraram a cantar esta que é uma das mais belas canções seresteiras de todos os tempos, à altura mesmo de Villa-Lobos, Jaime Ovalle e outros admiráveis modinheiros. A música de Jobim e a letra de Vinicius casam-se perfeitamente. E, na voz de Bethânia, recuperam a beleza ferida por vozes menores.
Vinicius no começo
e lembranças no fim
Mas se frusta quem espera que o espetáculo vá ser, como o primoroso disco que o inspirou, um tributo a Vinicius de Moraes. Em sua primeira parte Bethânia alterna coisas do poeta com canções que marcaram seus 40 anos de Rio de Janeiro, agora comemorados. É verdade que, nessas inserções, há grandes momentos. Bethânia intercala, às suas reverências a Vinicius, declarações de amor a Chico Buarque (“Quem te viu, quem te vê” e “Olhos nos olhos”, duas soberbas rendições), e também seu reconhecimento a Roberto Carlos e sua lembrança dos tempos de “Carcará”. É verdade, também, que sua releitura do “Monólogo de Orfeu” é inteiramente sua. Quem conhece o original, tanto o de Haroldo Costa no teatro como o de Vinicius em disco, imagina um Orfeu arrebatado, para fora, dramático acima de tudo. Bethânia o faz mais calmo, sem pressa, quase num sussurro. E quando, mais adiante, canta “A felicidade”, começando pelo seu verso mais bonito (“A felicidade é como a gota/ De orvalho numa pétala de flor/Brilha tranqüila/Depois de leve oscila/E cai como uma lágrima de amor”), Vinicius já está devidamente homenageado. Mas o público espera mais. E só a força de Bethânia levou-o a acompanhar a cantora pelos caminhos que ela escolheu: Caetano, Roberto Mendes, Raul Seixas, Benito Di Paula, Gonzaguinha, Jards Macalé, Joyce, Totonho Villeroy, Suely Costa, Almir Sater e — por que não? — Bach.
Bethânia está no auge de sua carreira. É, provavelmente, a mais completa intérprete de nossa canção popular. Pelo timbre personalíssimo, por cantar em vez de choramingar (vício comum a quase todas as herdeiras da bossa nova) e por substituir seus antigos arroubos dramáticos por uma emoção dosada, sóbria e adequada. Bethânia tem alma de atriz, mas sempre se recusou a tentar uma carreira no teatro. “Meu palco é musical”, disse ela em entrevista de anos atrás. E continua a mesma.
Daí o show do Canecão ser ela, sobretudo ela, pouco contando tudo mais. Voltemos ao exemplo de “A felicidade”. Foi o primeiro instante em que se conseguiu, ao menos na estréia, ouvir Bethânia em sua plenitude, porque até ali os músicos, em especial o grupo de dois ou três percussionistas, abafavam-lhe a voz, erro, decerto, de quem cuidou do som. São bons os arranjos, todos ou quase todos do violonista Jaime Alem, mas a ênfase na sessão rítmica (nos fazendo lembrar aquele crítico para quem bateristas e percussionistas são artistas que descarregam por mãos e baquetas seu ódio aos bumbos e pratos) prejudicou em muito o canto de quem se foi ouvir no Canecão. Mais para o final, o baticum foi atenuado.
De resto, um grande show. Talvez tenha músicas de mais (vinte e tantas) e certamente tem Vinicius de menos. Mas Bethânia pode. Que outra cantora deste país de cantoras consegue subir ao palco para fazer o que quer, cantar o que quer, prometer Vinicius e nos dar poetas menores, comemorar com sua baianice os 40 anos de carioquice, não dar a mínima para luzes e sons e ainda assim fazer, como faz, um grande show?