Bethânia remonta seu teatro em delicado show perpetuado em seu terceiro DVD



Intérprete de crenças e tradições firmes, Maria Bethânia remonta seu teatro a cada show com números e textos autoreferentes. Dirigido por Bia Lessa, o atual espetáculo da cantora - Tempo Tempo Tempo Tempo, ora lançado em DVD pela Biscoito Fino com gravação realizada em agosto, em minitemporada na casa paulista CIE Music Hall - procura costurar em roteiro de 43 números a homenagem prestada a Vinicius de Moraes no disco Que Falta Você me Faz com músicas inéditas e com momentos importantes das quatro décadas de carreira da Abelha Rainha. Embora bom, o resultado decepcionou quem esperava um show à altura do grandioso Brasileirinho, também dirigido por Bia Lessa. Mas o tempo tem sido grato a Bethânia. Aos 59 anos, no melhor da forma vocal, a cantora compensa a costura nem sempre bem-acabada do roteiro com sua imponente força cênica.

A linguagem teatral de seus shows não impede que Bethânia vá afinando (ou desafinando) o roteiro a cada apresentação. O show perpetuado em seu terceiro DVD - o de maior requinte na filmagem e na edição - não é exatamente o mesmo que estreou (mal) no Canecão (RJ), em fevereiro. Tampouco é exatamente o espetáculo que está de volta este mês ao mesmo Canecão, em temporada popular. No vídeo, o show conserva a delicadeza do disco Que Falta Você me Faz. Em cena, Bethânia, procura tons mais suaves e menos teatrais para dizer os textos e as músicas do Poetinha que, na sua leitura, soam como íntima ode à mulher (uma das maiores paixões de Vinicius, a propósito).

Há quem tenha avaliado injustamente que tem Vinicius de menos no roteiro. Pura implicância! Tem (muito) Vinicius e na medida certa, pois, nas entrevistas em que anunciou o show, antes da estréia, Bethânia já ressaltou que se tratava do espetáculo comemorativo dos 40 anos de sua explosão nacional, em 1965, no Opinião, show celebrizado por sua visceral interpretação de Carcará - música, aliás, que abre o segundo ato de Tempo Tempo Tempo Tempo. A retrospectiva até acabou embaçada pelos temas de Vinicius e pelas inéditas de safra irregular. Destas, a mais bonita é a canção Estranho Rapaz, parceria de Roberto Mendes e Capinam. Entre as novidades, há ainda Planície de Prata (melancólica toada de Almir Sater e Paulo Solimões que não resiste à comparação com obras-primas do gênero como Tocando em Frente, presente do mesmo Almir para Bethânia em 1990), o manemolente samba baiano Um Dia pra Vadiar (Totonho Villeroy) e a menos inspirada Foguete (Roque Ferreira / J. Veloso).

O roteiro prioriza Vinicius no primeiro terço para depois abrir leque estético que vai de Benito Di Paula (Vai Ficar na Saudade, jóia popular infelizmente reduzida na gravação do DVD) ao recorrente Chico Buarque (Terezinha, Olhos nos Olhos, Quem te Viu Quem te Vê). São músicas ligadas mais pelos versos do que pela unidade melódica. E que acabam montando o habitual mosaico de (res)sentimentos amorosos desfiados pela cantora em seus shows. Em sua praia, Bethânia sempre reina, com maior ou menor intensidade. Por isso mesmo, soa totalmente deslocado o número roqueiro com Vem Quente que Eu Estou Fervendo (Carlos Imperial e Eduardo Araújo), fora do tom delicado do show.

Nos extras, a cantora abre as portas de sua casa e - no aconchego de sua biblioteca - recita poesias e canta no mesmo registro imponente do palco. No set caseiro, entre leituras de versos de seus poetas preferidos, apresentados com alegria infantil, Bethânia recorda a intimidade de seu pai com os livros e entoa músicas como Tocando em Frente, Tristeza do Jeca (número em que explora os agudos de sua voz) e Ciclo, poema de Nestor de Oliveira que, musicado por Caetano Veloso, deu título ao interiorizado disco lançado pela cantora em 1983. São nestes números informais que fica ainda mais claro como o tempo tem sido generoso com Maria Bethânia.

Mauro Ferreira

Jornal O Dia - 05/12/05




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