Que Falta Você me Faz - Maria Bethânia






Como dizia o poeta, o bom samba é uma forma de oração. Em seu novo disco pela Biscoito Fino, Que falta você me faz, Maria Bethânia redimensiona sua memória afetiva - e a de infindáveis gerações de brasileiros - através do cancioneiro de Vinicius de Moraes.

São 15 faixas, em parcerias com Antonio Carlos Jobim, Garoto, Chico Buarque, Carlos Lyra, Baden Powell, Toquinho, Adoniran Barbosa, Jards Macalé, além de uma versão de Caetano Veloso para Nature boy, de Eden Ahbez, incluindo um antigo registro da voz de Vinicius, recuperado por Bethânia.

[...]Músicas como Lamento no morro, A felicidade, Modinha, O que tinha de ser, Eu não existo sem você, Mulher sempre mulher expandiram a parceria Jobim-Vinicius muito além das fronteiras ancestrais de Ipanema. Lamento no morro foi criada pela dupla para a peça Orfeu da Conceição, de 1956. A versão de Bethânia inclui o Monólogo de Orfeu, enfatizando o componente teatral sempre presente nas interpretações da cantora e que desde cedo fascinou Vinicius. O samba Mulher sempre mulher também foi concebido para Orfeu da Conceição (Julio Moura).

Biscoito Fino

Matando saudades do Poetinha

Foi um daqueles encontros que, para contrariar o clichê, não dividiram águas - pelo contrário, reuniram-nas. Vinícius de Moraes, 51 anos e já consagrado como o grande poeta da música brasileira, e Maria Bethânia, 18 anos, recém-chegada da Bahia, se cruzaram nos bastidores do mítico espetáculo Opinião, e nunca mais se largaram. O ano era 1965.

- Aconteceu no mesmo dia em que cheguei ao Rio para cantar no show. Vinícius chegou ao Teatro Opinião 15 minutos depois e (a dramaturga) Teresa Aragão me apresentou a ele. Ficamos logo próximos. Foi imediato - narra a baiana ao JB, exatos 40 anos depois do primeiro contato com o Poetinha.

Sim, pois a data exata foi 13 de fevereiro de 1965, dia que Bethânia também marca como sua estréia profissional. A vontade de eternizar o encontro, celebrar a amizade duradoura com Vinícius e iniciar a comemoração das quatro décadas de carreira, tudo isso impulsiona o álbum Que falta você me faz, que Bethânia lança pelo selo Biscoito Fino. O repertório homenageia, de cabo a rabo, a obra de Vinícius, em 15 das mais marcantes obras do compositor junto a nomes como Chico Buarque, Tom Jobim, Toquinho, Carlinhos Lyra e Baden Powell.

- Sempre quis fazer um trabalho só para homenagear Vinícius. Não sabia se seria um show, um disco... só sabia que queria brincar com ele, dizer que eu morro de saudade. Dizer que eu aprendi, que melhorei, para ele ficar contente. Para que ele visse tudo que me ensinou como pessoa, artista e profissional; a disciplina, o prazer no que se faz e o amor como prioridade - afirma Bethânia.

O tributo a Vinicius era um plano antigo de Bethânia, postergado mais de uma vez em favor de outros projetos. Gravado em 2003, antes mesmo do último disco de carreira da cantora (Brasileirinho, que inaugurou o selo próprio da baiana, o Quitanda), o disco foi engavetado por força das circunstâncias.

- Fui empurrando a homenagem com a barriga, mesmo porque sempre canto muitas músicas dele nos meus shows. Quando assinei com a Biscoito Fino, gravadora especializada em MPB, vi uma oportunidade linda de pegar a obra de Vinicius e fazer o tributo. Fiz, mas demorou, demorou... quando acabei , era o ano comemorativo dos 90 anos dele (2004) . E todo mundo gravou lindamente, todo mundo fez homenagem. Então falei ''espere um pouquinho...'', porque minha homenagem ao Vinícius era tão pequena, tão pessoal... - conta Bethânia.

A cantora ainda narra uma inesperada intervenção do próprio homenageado, que teria levado a mais um adiamento.

- No encerramento da excursão do Brasileirinho, a Luciana, filha de Vinicius, veio me dizer que teve um sonho com ele. E ele dizia: ''Diga a Bethânia que quero comemorar com meu disco no verão de 2005''. E quem é doido de desobedecer? Vamos lá, né?! - narra, sorrindo.

Ainda falando no presente, Bethânia diz ter certeza que Vinícius ''adora'' o disco. A cantora conta que não foi fácil definir os limites do projeto.

- Foi uma uma loucura. Eu tinha 250 músicas e não queria abrir mão de nenhuma, acabaria gravando caixas e mais caixas de Vinicius. Queria, entretanto, mostrar vários lados da obra que ele deixou e da pessoa que foi. Algumas músicas eram definitivas desde o começo. O astronauta (com Baden Powell), por exemplo, que é um Vinicius não muito comum. E ao mesmo tempo dá uma bandeira, entrega ao público um lado do temperamento dele, supermoleque, safadinho. Sobre Modinha (com Chico Buarque e Garoto), eu também tinha certeza. É uma música que fala da dor maior do criador. Você olha essa dor extraordinária do poeta e vê a generosidade e a grandiosidade dele. E o que ele faz com isso: ''Vai triste canção/ Sai do meu peito e semeia essa emoção''. Isso para mim traduz o Vinícius logo de cara - explica.

Duas entre as muitas parcerias que Vinícius cultivou também serviram de eixos temáticos para a obra:

- Primeiro, Baden Powell. É impossível qualquer coisa sobre Vinicius sem Baden. Convivi muito com os dois e acho que nitidamente ficou um ''estilo Baden'' na obra do Vinicius. E o Tom (Jobim) também. Quer dizer, com Carlinhos Lyra é maravilhoso, com Edu Lobo, com Francis (Hime)... com todos eles. Mas no meu entender foi com Tom e Baden que ele deixou marcado um estilo.

Que falta você me faz é um disco sóbrio, sutil. Para canções como A felicidade (parceria com Tom), Você e eu (com Lyra) ou Tarde em Itapoã (com Toquinho), Bethânia optou por uma levada de samba suave. Em outras, o resultado é mais introspectivo - na já citada Modinha, o arranjo limita-se a voz e piano; em O astronauta, o acompanhamento é apenas um pandeiro. Econômicas e delicadas orquestrações embelezam Minha namorada (com Lyra), Mulher, sempre mulher e Eu não existo sem você (parcerias com Tom).

- Entrei no estúdio pensando: ''não sou uma cantora de bossa nova e Vinicius tem a maior parte de sua obra (oitenta e tantos por cento) feita na bossa nova''. Mas isso não me afasta. Não sou bossa nova porque sou intérprete e a bossa nova é o contrário do intérprete. É a qualidade da emissão, da nota, sem emoção, frio... genialmente, como João Gilberto e outros conseguem fazer. Não é minha praia. Entrei no estúdio com essa consciência e isso não foi um problema para mim. Pelo contrário: virou uma diversão. Então, em vez de colocar um violão como o de João, que ninguém conseguiria fazer igual, bota um violão de sete cordas com a bateria da Mangueira acompanhando. Fica ótimo para mim. Tenho certeza que Vinicius ia gostar, porque era um homem ligado demais à música fora dele. Esse respeito, essa compreensão da música feita nos morros cariocas ele sempre teve. Sei que fiz certo - diz.

E além da música, há a poesia, eterno ponto alto nas interpretações de Bethânia. O Monólogo de Orfeu, retirado da peça Orfeu da Conceição, escrita em 1956, vem ao final de Lamento no morro.

- É aí que entram as minhas coisas, o teatro, minha dramaturgia, o que gosto de declamar. O Monólogo, particularmente, é um Vinicius apaixonadíssimo, escondido em Orfeu para falar pra uma Eurídice qualquer. Uma das milhares que ele teve na vida - conta Bethânia.

A própria voz de Vinícius é que declama Poética 1, na introdução de O astronauta. Talvez seja dele mesmo a melhor definição para a permanência de sua obra: ''Eu morro ontem, nasço amanhã / Ando onde há espaço/ Meu tempo é quando''.

Marco Antonio Barbosa

JB Online - 14/02/2005 1