Sabemos que a designação do sexo pelo ambiente é um determinante primário da orientação genérica a ser seguida pela criança, e que esta pode, inclusive, opor-se à sua constituição biológica. Os trabalhos de Stoller com pacientes intersexuados (pseudo-hermafroditas) evidenciam que a identidade de gênero é inscrita e sustentada em seu desenvolvimento sobretudo pelo mandato do desejo familiar:
masculinizante ou feminilizante; o que o leva a afirmar que a anatomia não é o destino" (Stoller, 1975).
De acordo com as variações na organização primária das relações de objeto e na forma como se internalizaram os esquemas relacionais dos primeiros anos de vida, a criança encontrará maior ou menor facilidade para tornar compatíveis seu sexo e seu gênero, ou seja, sua constituição biológica e sua disposição psíquica.
Se a identidade sexual, como hoje a compreendemos, é passível de fixar-se de forma pictográfica na fase inaugural da vida através do processo originário, o qual, como nos diz Aulagnier (1975), constitui um fundo representativo primário, é certo que este introjeto primordial anterior às representações por fantasia ou ideação correspondentes aos processos primário e secundário exercerá uma influência permanente,
se não decisiva, sobre os patterns posteriores de escolha e relação de objeto.
A articulação, em etapas iniciais do processo evolutivo, de defesas relativamente estruturadas tendendo a uma estereotipia dinâmicofuncional permite-nos falar em manifestações perversas que excedem de forma importante a comum atividade erógena dos anos de infância. Como, porém, tais manifestações desviantes na criança possuem ainda alguma plasticidade, permitindo mesmo uma aproximação terapêutica efetiva em significativa parte dos casos, prefiro referir-me a estes distúrbios como organizações, e não como estruturas, o que parece me sugerir uma maior mobilidade psicodinâmica, não obstante alguns autores utilizem ambos os termos indistintamente.
Gostaria de ressaltar que os tipos de manifestações perversas excedem em muito, por sua diversidade fenomênica, aos tipos de organizações com as quais podem estar associadas. As particularidades da organização perversa, de seus determinantes históricos e conjunturais, deveriam possibilitar-nos distingui-la especificamente de categorias outras, como as psicoses ou sociopatias, em que a conduta sexual desviante pode ser eventualmente observada. É pertinente acrescentar, no entanto, que na infância inicial estes quadros clínicos podem não estar bem caracterizados, sendo possível diferenciá-los no plano diagnóstico somente após um atento acompanhamento e observação cuidadosa durante algum tempo.
Concordando com Goldstein & Baranger (1989), entendo que o conceito de perversão envolve sempre a questão sexual, não incluindo portanto as diversas formas de manifestações destrutivas e criminais em que este elemento não é preponderante, para as quais já tem sido proposto o termo "perversidade". Não creio também que o termo perverso possa ser designativo para qualquer manifestação da sexualidade que não siga os padrões heterossexuais convencionais. Se a conduta fetichista e travestista, por exemplo, está associada freqüentemente a uma organização assim referida, o mesmo não acontece com a homossexualidade, que não necessariamente pressupõe uma perversão, podendo expressar também um sintoma neurótico transitório ou permanente.
A seguir considerarei as diferentes formas clínicas pelas
quais se dá a conhecer a "organização perversa" nas
etapas progenitais do desenvolvimento. Terei por critério transitar
pelo espectro das manifestações desviantes, iniciando pelos
quadros clínicos que mais se aparentam fenomenológica e estruturalmente
aos transtornos psicopatológicos maiores - as psicoses - indo até
as apresentações sintomáticas mais próximas
às das organizações neuróticas, em que talvez
nos vêssemos limitar a designar como perversa unicamente a conduta,
às vezes circunstancial.