O termo transexualismo, criado por Benjamim (1964), tem se prestado a diversos usos, distorções e mitificações. Originado num contexto clínico psiquiátrico em que se avaliava em adultos a oportunidade de uma cirurgia "corretiva" de sexo que, supostamente, traria a felicidade a um invertido condenado pela anatomia, o transexualismo foi estudado entusiasticamente por um grupo de psicanalistas norte-americanos na década de 60.
A utilização deste conceito clínico para a classificação diagnóstica na infância, ou para a prognose de transexualismo adulto em meninos muito efeminados, implica num necessário questionamento com referência à sua especificidade estrutural e à sua utilidade clínica.
Os autores que adotam esta terminologia diagnóstica apresentam este transtorno como a manifestação mais radical de feminilização do menino. Benjamin descreve os como pessoas de sexo masculino que mesmo sabendo se homens e biologicamente normais encontram-se profundamente inconformados com seu sexo biológico e desejosos de modificá-lo. Desde muito cedo estas crianças manifestam repúdio pe los genitais e anseio permanente de serem meninas, conduzindo-se como tais e de forma não afetada. Observa Stoller (1975) que estes meninos comumente são muito bonitos; mesmo que não o sejam, objetivamente, apresentam-se aos olhos da mãe como fisicamente perfeitos. A beleza real da criança e as disposições presentes na mãe e no pai (matriz identificatória) seriam o "combustível" e a "centelha" para o desencadeamento do processo de feminilização.
As mães destas crianças costumam ser mulheres cronicamente deprimidas, com importantes deficits narcisistas e freqüentemente com conduta viril presente ou passada. Com relação ao filho apresentam uma expectativa messiânica de restauração fálico-narcísica que as leva a crerem-no um semideus quando nasce. Este é convertido então no "falus feminilizado" da mãe, com o qual se estabelece uma relação vivenciada por ambos como perfeitamente harmônica. É necessário para isso que qualquer esboço de virilidade seja desencorajado sistemática e antecipadamente por sutis condutas maternas que evitam à mãe o insuportável reconhecimento da masculinidade do menino. A extrema simbiose que se instala entre ambos é comparada por Greenson (1966) à dos cangurus com suas crias, onde o filhote se desenvolve no interior da bolsa marsupial, mantendo com a mãe a maior proximidade física imaginável durante um período prolongado.
O pai, como função e freqüentemente como pessoa, é totalmente ausente neste contexto. A relação pai-filho não tem registro como tal na experiência psíquica da criança. Observe-se que aqui não há um "enfraquecimento" da imago paterna, ela simplesmente não existe" no
universo fantasmático da criança que, via de regra, se defrontará pela primeira vez com um homem passível de ser assim significado durante a psicoterapia. Este pai só foi na verdade escolhido por suas características pessoais de alheamento, de omissão e de passividade, que foram suportáveis à esposa e favoreceram posteriormente o idilio ex-tático e excludente entre mãe e filho. Não obstante, a homossexualidade paterna, latente ou manifesta, é menos comum nestes casos do que nas aberrações sexuais perversas em que, segundo Stoller (1975), intervém a ansiedade de castração (travestismo, fetichismo). O transexualismo primário, para Stoller, não seria uma perversão, como também não seria uma psicose.
Stoller toma emprestado o conceito de imprinting da etiologia para dar uma idéia de como desde os primeiros instantes de suas vidas estes meninos recebem impressões e sinais de suas mães que lhes sugerem sempre a adoção de comportamentos femininos, embora não se observem manifestações de hostilidade da mãe para com a criança. Elas os feminilizam sem castrá-los. Esta relação, insolitamente harmônica, parece aproximar-se da idealmente descrita por Freud como livre de ambivalência, entre a mãe e o primogênito homem (Stoller, 1969).
Ao avaliarmos uma criança com estas características teríamos a impressão de estar efetivamente observando uma menina. O comportamento seria suave e natural, sem simulação, os gestos delicadamente femininos, sem a afetação do efeminado ou a excitação da criança travestista. O intenso sofrimento destes meninos começaria com o início da vida escolar, que quebra a serenidade do convívio simbiótico com a mãe e expõe a criança a sucessivas humilhações, às quais ela própria parece não entender, e que a levam pela primeira vez a tomar consciência através do convívio com os outros (o que raramente é favorecido antes dessa idade) da sua atipia.
Os casos mais conhecidos comunicados na literatura são os de Lance, um menino de cinco anos, tratado por Greenson (1966) em análise, e o de Nikki, cuja história pessoal é relatada por Stoller (1975).
Lance foi tratado por apresentar uma compulsão travestista que se expressava de forma aberrante e que era acompanhada por interesses e comportamentos feminóides generalizados, francamente incentivados pela família. Tinha uma identificação intensa com a boneca Barbie, com a qual às vezes parecia confundir-se. Greenson entendeu que o transexualismo de Lance se devia a um contato exageradamente próximo com uma mãe possessiva, que o engolfava totalmente em termos táteis, visuais e afetivos, e à existência de um pai desprezado, fracassado e isolado na família.
Nikki, cujo nome é a contração de "Verônica", nome que a mãe desejava dar a uma filha, começou a ser observado com quatro anos, quando tinha já uma identidade totalmente feminina. Ele era vestido
permanentemente de mulher pela mãe, que o maquiava e o registrava nos hotéis como menina, quando viajavam. Nikki gostava de usar vestidos românticos e de ter o cabelo longo pela cintura. A distorção extrema da identidade sexual de Nikki parecia estar claramente relacionada à relação intensamente simbiótica com a mãe, uma desenhista de moda, e à ausência do pai, um empresário mais velho que achava a família maçante.
A hipótese clínica do transexualismo como estrutura é dificilmente sustentável, sobretudo por seus estritos critérios diagnósticos que são raramente satisfeitos pela experiência. As noções de uma "simbiose feliz", de uma "feminilização sem castração", de "ausência absoluta de registro paterno", de "travestismo sem excitação" (que nem mesmo os dois casos citados corroboram) têm sido contestadas clínica e teoricamente por diversos autores.
A respeito disto, afirma Dór (1987): "Somos tentados a situar a problemática transexual neste entremeio que assinala a linha divisória das perversões e das psicoses". O autor claramente alude aqui à ilusão/convicção delirante que produz no imaginário infantil a demanda da troca de seu corpo por outro corpo. Como não ver aqui um fracasso dos processos de personalização e de realização na constituição do psiquismo infantil?
Citando Czermak, escreve Dór: "Esta virtualidade transexual é o que me parece presente em toda psicose sob a vaga forma daquilo que se costuma chamar de homossexualidade psicótica. Do mesmo modo que o delírio interpretativo é uma das formas de cristalização da psicose, o transexualismo é uma outra, cujos termos estão presentes na própria margem de toda psicose".
Para Millot (1983), o transexualismo é algo que vem em resposta ao sonho de apartar, e inclusive de abolir os limites que demarcam a fronteira entre o real e o imaginário. A autora lembra que "os primeiros casos de transexualismo relatados pelos psiquiatras e sexólogos parecem ter sido casos de psicose", e acrescenta que já Lacan sustentava que na psicose havia uma forte pendência para o transexualismo, apresentando o caso Schreber, com seu delírio nuclear de transformação, como ilustrando exemplarmente esta possibilidade.
Relativamente a este aspecto, Galenson & Roiphe (1984) dizem-se céticos com relação à reconstrução Stolleriana de uma "simbiose excessivamente íntima e feliz". Afirmam: "Tudo o que sabemos sobre as mães bissexuais e cronicamente deprimidas dos transexuais sugere que existe uma simbiose altamente perturbada e comprometida com uma distorção significativa na subsequente separação-individuação e nas fases iniciais do desenvolvimento genital".
Da mesma forma, Lothstein (1988) sustenta que .05 distúrbios da identidade de gênero são conseqüentes a importantes falhas no pro
cesso de constituição do self nuclear e a deficiências empáticas dos self-objetos que determinam uma integração egóica e narcísica precária.
Vemos, portanto, o quanto o estatuto nosológico do transexualismo
como entidade psicopatológica fica essencialmente abalado por sua
inconsistência clínica, diagnóstica e metapsicológica.
Procurarei, nas manifestações clínicas estudadas a
seguir, à medida em que se esclareçam as condições
intrapsíquicas e interpessoais que estão na base da organização
e manifestações desviantes, mostrar ao leitor que o transexualismo
não satisfaz os requisitos diagnósticos para uma organização,
evidenciando, sim, o fracasso de uma defesa perversa ou uma psicose monossintomática
delirante.