TRAVESTISMO É comum na literatura psicanalítica, em que este transtorno é descrito e estudado, relacioná-lo tradicionalmente com as ansiedades de castração da fase edípica. Vários autores coincidem ao situar o aparecimento do sintoma entre os três e os cinco anos, diferentemente do desvio anteriormente descrito, onde em alguns casos a femínilização do menino pode ser observada ainda no primeiro ano de vida.

No entanto, numerosos estudos sobre as condições de gênese da conduta travestista cada vez mais apontam que o comportamento desviante pode ocorrer em muitos casos nas etapas primitivas do desenvolvimento, principalmente durante o processo de separação-individuação. Deve-se perguntar, em face do já dito, se as descrições de condutas travestistas infantis precoces, eventualmente entendidas como prognosticadoras de um transexualismo adulto, não prenunciam de fato uma perversão travestista nos seus estados Iniciais.

Stoller (1975) entende o travestismo infantil como uma reação defensiva do menino frente a uma situação traumática precoce. Classifica essa manifestação clínica como perversa justamente por sua etiologia traumática (ameaças à integridade física e/ou psíquica), distinguindo do transexualismo, onde acredita não existirem circunstancias traumáticas originais.

Ao travestista foi permitido até certo ponto desenvolver a masculinidade, digamos, até o momento em que a mãe a suportou. Quando a masculinidade do filho provoca nela desejos hostis de vingança, ela o ataca através de manobras humilhantes e desvirilizadoras. É comum que a criança seja travestida pela mãe ou exposta por ela a situações degradantes para um menino. As mães são mulheres que apresentam manifesta competitividade com o sexo oposto, estrutura de caráter fálico-narcisista, precavendo-se constantemente contra pos-

síveis humilhações provindas de um homem. Os pais, embora possam apresentar-se aos olhos do filho como rígidos ou severos, são homens com grande vulnerabilidade narcísica e participam ativamente na subjugação perversa da criança.

Entre as circunstâncias traumáticas, além do travestismo inicialmente introduzido na vida da criança pela mãe ou por terceiros e das perdas e privações primitivamente sofridas, Stoller (1989), num de seus últimos artigos sobre as origens do travestismo masculino, aponta como fatores potencialmente indutores de defesas e estruturações perversas as cirurgias (às vezes desnecessárias) realizadas em idade precoce. Estes fatores são também confirmados como componentes genéticos da conduta travestista infantil por outros autores como Greenacre (1968) e Arbiser (1988).

O que parece ser um ponto de consenso entre os autores é que o travestismo infantil evidencia em suas origens e manifestações um processo de individuação intensamente dominado pela angústia de separação. Roiphe & Galenson (1984), relatando sua experiência clínica com pacientes travestistas, dizem que "alguns desses meninos, face à considerável intensificação da ansiedade de perda objetal, desenvolveram uma profunda identificação com a mãe, expressa na emergência de um travestismo persistente, que sugeria um desenvolvimento travestista ulterior" Arbiser (1988) sugere que o ritual travestista só aparentemente pode-se apresentar como uma defesa contra a castração; quando a defesa fracassa reaparece a compulsão à repetição com a emergência de angústias mais primitivas que estão em jogo e que remontam aos estágios anteriores.

É comum que os autores equiparem travestismo e fetichismo no comportamento infantil e abordem, às vezes de forma indistinta, a ambas as manifestações. Stoller chega mesmo a propor a expressão travestismo-fetichismo, com a qual não concordo e cuja divergência pretendo justificar. Acredito que o fato de que uma criança necessite transvestir-se totalmente com as roupas de sua mãe, ou irmã, enquanto que outra excita-se e tranqüilizar-se unicamente em manipular eroticamente uma parte do vestuário ou um único atributo feminino disponível, deve necessariamente levar-nos a supor que o travestismo evidencia uma ameaça vivida de aniquilamento self-corporal de muito maior intensidade e características regressivas do que a angústia d~ terminante da conduta fetichista. No travestismo a criança revestir-se inteira e concretamente com a pele/roupa da mãe, conforme propõe Greenson (1966). Há uma sobreposição completa da idealizada imago materna - à qual a criança aferra-se pelo temor de perde-la - à frágil e precária identidade subjetiva e sexual que a criança constituiu. A criança introduz-se no corpo da mãe, diz Glasser (1985). O travestismo serve à função de uma segunda pele, conforme estudada por Bick (1968). Meltzer demonstrou clinicamente o aparecimento de manifestações travestistas em crianças pós-autistas, evidenciando seu significado primitivo como condição psíquica que se impõe para o início do estabelecimento de relações baseadas na identificação projetiva com os objetos parciais (Meltzer, 1984).

No caso clínico de Tim, relatado por Stoller (1989), a hostilidade materna, presente desde o início na relação com o filho, construiu uma história de sucessivas humilhações e descasos, que se originavam numa "superidentificação" da mãe com o menino. Isso fazia com que existisse uma proximidade especial entre eles, construída não a partir de simpatia ou amor, mas do desprezo que a mãe sentia por si própria e que era o mesmo que sentia pelo filho de forma projetada. Ela assim tratou seu narcisismo ferido, permitindo que o filho fosse travestido e triunfando maniacamente sobre seu passado. Tim, por sua vez, triunfa sobre o trauma elaborando seu ódio através do ritual travestista. Ao olhar-se no espelho, travestido, fixava ali a imagem composta filho-mãe de cuja unidade buscava repetidamente reassegurar-se.

Além do aparecimento precoce durante o processo de dessimbiotização, o travestismo infantil tem por condição para o seu diagnóstico, como frisa Anna Freud (1965), a erotização excitatória do ato de vestir-se com roupas femininas.

Sperling (1974) sublinha que não se poderá diagnosticar travestismo sem a observância de excitação ou se no menino houver desejo expresso ou não de extirpação dos genitais. O pênis é um órgão fundamental na composição desta ilusão perversa. A autora entende que a imagem da mulher fálica unisse na fantasia da criança à imagem do homem com seios (pai pré-genital); a criança não quer pertencer a um sexo ou outro, mas a ambos. Relaciona este desejo à onipotência e à ganância oral de ter em si tudo, o que sugere pontos de fixação nas fases mais primitivas do desenvolvimento. Como McDougall (1978), Sperling descreve o alentamento por parte da mãe a um desenvolvimento bissexual do filho, desaprovando suas tentativas de identificação paterna que, não obstante, estão presentes, apesar dos ataques deflagrados por ela ao pai que adquire aos olhos do filho uma valência negativa. A negação e o repúdio onipotente do pai na realidade psíquica da criança numa época em que o anseio de identificação masculina é presente mas desalentado pela mãe - e o atentado sofrido à masculinidade podem ser responsáveis pela conduta masoquista dessas crianças que tendem repetidamente a provocar situações de maltrato.

No caso de Tomás, um menino de quatro anos e dez meses, que Sperling analisou após analisar a mãe (método que propõe), os sintomas travestistas estavam presentes desde os três anos. Tomás gostava de usar as roupas de sua irmã, calcinhas, camisola, etc. Tinha a fantasia de que nascera menina e só posteriormente convertera-se em menino. Costumava dizer "quando eu era menina...". As angústias e temores que imaginariamente aterrorizavam Tomás eram de origem mais primitiva do que a angústia de castração, e relacionavam-se a distorções e danos precoces à imagem corporal, como atesta a fantasia de ter sido inicialmente uma menina. A preocupação pela integridade corporal desempenha neste caso uma função central. Assim como temia danos físicos, Tomás também se excitava com a fantasia de ser castigado fisicamente e machucava-se, efetivamente, com muita freqüência. Na descrição que Sperling faz da mãe, como uma mulher robusta, de cabelo curto e ternos de alfaiate, e do pai como um homem pequeno, frágil e de feições delicadas, encontramos na realidade externa as condições favorecedoras de um desenvolvimento interior de tal forma perturbado e com uma produção fantasmática eventualmente delirante.

Os quatro artigos conhecidos publicados por Sperling sobre o desvio sexual na infância são extremamente valiosos pelo detalhamento clinico e pelas conclusões teóricas que disto extrai. Os possíveis pontos questionáveis de sua teorização abordarei a seguir na apresentação e discussão do fetichismo infantil.
 

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