Como afirma Ajuriaguerra (1983) ao estudar os desvios da orientação sexual na infância, o desejo de ver, tocar, exibir-se, faz parte da curiosidade sexual da criança. O voyeurismo e o exibicionismo estão presentes nos jogos sexuais infantis, seja entre crianças do mesmo sexo ou de sexo diferente, por uma necessidade de conhecimento e de confiança. Citando uma pesquisa de Mutrux (1965) sobre as atividades sexuais de exibicionistas adultos, o autor aponta, porém, a alta freqüência deste tipo de comportamento durante os anos infantis; cerca de dois terços dos pacientes investigados relataram a ocorrência destes comportamentos em épocas iniciais do desenvolvimento.
Anna Freud (1965) encontrou, como elemento comum em meninos exibicionistas, um constante temor de suas tendências passivofemininas e uma intensa angústia de castração que os levava a enfatizarem "aberta e superlativamente todas as tendências opostas, com o resultado de parecerem agressivamente viris e, com freqüência, assumirem o comportamento de exibicionistas fálicos". Se recordarmos a conduta exibicionista e voyeurística exibida pelo pequeno Hans (1909), conforme nos relata Ureud, veremos o quanto esta se interconecta com as angústias de castração vividas pela criança face à conduta contraditoriamente sedutora e castradora da mãe, que em algum momento o ameaçou claramente com um dano genital. Por outra parte, encontramos em seu pai uma demasiada tolerância aos avanços eróticos da mãe com relação ao filho e um esforço compreensivo que, se por um lado permitia-lhe auxiliar o menino, por outro poderia oferecer-lhe uma imagem de excessiva indulgência e cumplicidade.
Na literatura psicanalítica, em que são raros os casos clínicos relatados nos quais o exibicionismo-voyeurismo aparece como sintoma principal, Sperling parece ser uma autora que contribui de modo elucidativo para o entendimento geneto-dinâmico das circunstâncias que o determinam. Num artigo em que estuda os hábitos sexuais infantis, refere-se à típica atitude dos pais de nunca tomarem conhecimento da conduta perversa infantil de um menino que ela atendeu na adolescência (Sperling, 1980).
Num caso de voyeurismo infantil feminino, Sperling relata brevemente a história de uma menina de seis anos e meio que lhe foi encaminhada pela escola por possuir o hábito de seduzir as colegas abaixando-lhes as calcinhas e inspecionando os seus genitais. Esta menina tinha uma perturbação geral da conduta e costumava roubar dinheiro da mãe para, comprando doces e oferecendo-os às amigas, conseguir que estas satisfizessem o seu desejo. Ilustrando o comprometimento amplo do desenvolvimento desta menina em diferentes áreas, a autora nos diz que esta garotinha, enurética, obesa e asmática, era filha de uma mulher muito sedutora, exibicionista e voyeurista. O pai, que parecia estimulá-la sexualmente, havia se separado da mulher; a menina sofria também sedução por parte da irmã mais velha. O distanciamento físico e afetivo do pai, com quem era muito apegada, fez com que a menina, já anteriormente sintomática, se sentisse abandonada, deprimida e, identificando-se com ele, assumisse um papel sexualmente agressivo. Observe-se, pois, como um desvio que se expressa sobretudo numa alteração da conduta sexual aponta sempre para circunstâncias externas indutoras que condicionam perturbações importantes em etapas primitivas do desenvolvimento emocional.
Num estudo posterior, Sperling (1980) retoma o caso desta menina, à qual chama Rita, e acrescenta alguns dados importantes para o entendimento dos fatores transgeracionais atuantes na gênese da conduta sexual perturbada. A mãe de Rita havia tido uma mãe extremamente rigorosa, punitiva, mas francamente sedutora, que partilhava sua nudez com a filha, ocorrendo com freqüência que ambas tivessem violentas discussões em ocasiões nas quais encontravam-se despidas. Nestas situações a mãe de Rita costumava impressionar-se com o belo corpo que sua mãe possuía, apesar da idade. Ela viria a ter suas brigas com a filha em circunstâncias semelhantes, no banheiro ou em seu quarto, quando as duas encontravam-se igualmente desnudas. Ao separar-se do marido a mãe de Rita deprimiu-se profundamente e, muito preocupada consigo mesma, não dava a menor importância às necessidades da filha. Foi nesta época que Rita, privada completamente do cuidado que de alguma forma o pai e a mãe lhe haviam dispensado até então, manifestou a conduta sexualmente agressiva que parecia ter o claro significado defensivo de protege-la de um colapso psicótico.
Apesar de ter permanecido em tratamento por alguns anos com Sperling, que analisava também a mãe, e apresentado sensíveis melhoras, Rita voltou a tratar-se aos 16 anos, por um decréscimo do seu desempenho escolar e crises de pânico, justamente quando se preparava para ingressar na universidade, o que determinaria o seu afastamento da mãe.
Julguei importante a inclusão desse caso, de forma detalhada, neste capítulo, pelo fato de os relatos clínicos de desvios sexuais em meninas serem escassos em toda a literatura por mim revisada, o que o leitor terá percebido através dos exemplos dos quais me utilizei anteriormente, e por retratar de forma clara o contexto genético-evolutivo em que estas perturbações costumam ter lugar.
Como ao longo do livro não me ocuparei especificamente de nenhum caso típico de exibicionismo-voyeurismo infantil, gostaria aqui de mencionar, sumariamente, dois casos de minha experiência pessoal que me parecem clinicamente interessantes quanto às formas de expressão dos distúrbios em meninos.
O primeiro deles foi-me apresentado numa consultoria e tinha como queixa clínica uma conduta exibicionista numa criança de cinco anos. Este menino possuía uma malformação congênita e nascera com quatro dedos na mão direita. A mãe deprimira-se muito com o fato e o cercara, desde muito cedo, de uma série de cuidados através dos quais buscava minorar-lhe o possível sofrimento causado por tal imperfeição. O garoto tornara-se o centro da sua existência e ela descuidara bastante do seu casamento, que acabou após alguns anos, o que fez com que sua estreita relação com o filho se tornasse uma importante razão para ela continuar vivendo. O pai, homem rígido e violento, afastou-se progressivamente de ambos, o que favoreceu que o filho, privado de sua presença e engolfado pelas necessidades narcísicas maternas, construísse, a partir de uma deficiência anatômica original, o sintoma exibicionista que consistia em abaixar as calças e mostrar seu pênis (seu quinto dedo) em situações sociais nas quais se sentia desamparado, como na escola, parques de diversão e outras.
No segundo caso, o sintoma exibicionista era parte de um distúrbio de gênero em que a conduta travestista aparecia como manifestação principal. Este menino, de seis anos, fascinado com uma telenovela em que os homens despiam-se na frente das mulheres, num clube de strip -tease, imitava a conduta dos personagens na sala de aula. Subindo em cima de uma classe, durante o recreio, ele começava a tirar a roupa enquanto os colegas, fazendo um círculo ao seu redor, o aplaudiam gritando "tira, tira" ou "bicha, bicha". A constelação familiar, típica, compunha-se de um pai intelectual voltado para seus livros e óperas, e uma mãe absorvente que controlava cada detalhe da vida do filho cuidando, sobretudo, que ele estivesse sempre limpo, arrumado e cheiroso. Tratava-se, igualmente, de uma criança gravemente comprometida em seu desenvolvimento emocional desde os primeiros anos.
Nos casos descritos, pode-se observar como a conduta exibicionista e voyeurista associa-se amiúde ao comportamento sadomasoquista, em que a criança agride a si e aos outros numa infecunda tentativa de elaborar uma situação traumática que abrangeu um período decisivo do seu processo de sexuação durante a infância inicial.
Para introduzir-se no exame do comportamento sadomasoquista em crianças, Ajuriaguerra (1983) recorre a uma passagem das Confissões de J. 1 Rousseau em que está notavelmente demonstrado o papel que desempenham as situações de maus tratos físicos na fixação do comportamento desviante. Falando das punições que lhe eram impostas por Míle. Lambercier, escreve Rousseau: "Durante muito tempo, ela se contentava com as ameaças, e estas ameaças de um castigo completamente novo para mim pareciam-me assustadoras; mas, após a execução, eu achava a experiência menos terrível do que fora a espera; e o que há de mais bizarro é que este castigo me afeiçoava mais ainda àquela que mo havia imposto (...)eu havia encontrado na dor, na própria vergonha, uma mistura de sensualidade que me havia deixado mais com desejo do que com temor de experimentá-la novamente pela mesma mão". Acrescenta ainda Ajuriaguerra que a visão ou o exercício da crueldade constituem-se, como o sentimento de dor, num importante elemento de excitação sexual durante a infância.
Em 1919, Freud assinalara já como as fantasias e impulsos sádicos e masoquistas poderiam contribuir decisivamente para a gênese das perversões a partir da experiência infantil. Tal como a entendeu Freud, a fantasia de flagelação por parte das crianças se derivaria, em meninos e meninas, de uma ligação incestuosa com o pai. Posteriormente, a investigação psicanalítica sobre a infância inicial deu-nos elementos suficientes para concluirmos que as fantasias sadomasoquistas envolvem, sobretudo, a relação com o objeto primário, a mãe, levando-se em conta que neste contexto o pai está também de alguma forma representado. Trata-se de uma representação parental de forte matiz sadomasoquista que é fixada1 perdurando na mente e influenciando o desenvolvimento da criança de forma muito mais violenta e definitiva do que a comum representação sádica do coito parental que encontramos nas crianças de uma maneira geral.
Para a criança desviante, conforme a importante contribuição de Bloch (1985), o mais importante parece ser a sobrevivência física e psíquica em circunstâncias vinculares nas quais a criança se sente ameaçada de assassinato. Tanto Bloch como Sperling reafirmam a importância de traumatismos físicos sofridos precocemente pela criança como indutores da conduta sadomasoquista ainda em tenra idade.
Recorrerei, novamente, a um caso relatado por Sperling (1980) para exemplificar a gênese e clínica da conduta sadomasoquista em um menino de oito anos e meio.
Jerônimo foi trazido a tratamento sob pressão da escola; ele costumava dirigir-se às pessoas com uma linguagem desrespeitosa e obscena. Temia as outras crianças de sua idade, mas costumava atacar os menores, principalmente as meninas. Tinha uma maneira sorrateira de agredir os colegas e o fazia, principalmente, pelas costas. Beliscava-os e procurava introduzir-lhe o dedo na região anal. Em determinada ocasião, cravou um lápis nas costas de outro menino, machucando-o bastante.
Jerônimo apresentava um distúrbio de identidade sexual e brincava indistintamente com brinquedos femininos e masculinos. Ao começar o tratamento tinha condutas francamente sexuais com relação à analista. Tentava sentar-se encostado nela, punha a cabeça sobre os seus genitais e, quando a analista impunha limites ao contato, ele a atacava com palavras obscenas, saltava sobre ela e jogava-lhe objetos. Depois buscava seduzi-la dando-lhe bolachas e flores. No decorrer do tratamento, o menino começou a apresentar sintomas psicóticos evidentes, como agitação psicomotora, estados de desconexão e tentativas recorrentes de agressão física à terapeuta. Não obstante, sua conduta escolar melhorava, dando a idéia de que seus conflitos passavam a expressar-se de forma extrema, mas circunscrita, na relação transferencial. Buscava obter da terapeuta o mesmo tipo de gratificação sexual que a mãe lhe dava, que consistia em brincadeiras nas quais ela o beliscava e mordia-lhe as nádegas, praticamente enfiando-lhe o nariz no ânus. O pai e o tio realizavam com ele o mesmo tipo de brincadeira, de forma bastante violenta.
O pai de Jerônimo dissera que não pretendia envolver-se com o tratamento. A mãe só concordara com o tratamento do filho porque acreditava que a analista seria incapaz de realizá-lo; por isso, Sperling impôs, como condição para tratar o menino, que ela também se analisasse. Numa etapa mais adiantada da análise, Jerônimo desenvolveu sintomas fóbicos (entendidos como melhora) nos quais expressava temores de que a mãe morresse. Queixava-se também de que esta já não o beijava como antigamente. Durante as sessões brincava ainda com bonecas, mas agora de uma forma bastante destrutiva, arrancando-lhes a cabeça e os membros. Numa ocasião em que a terapeuta interpretou-lhe os impulsos hostis contra a mãe, ele reagiu raivosamente e tentou cortar-lhe o pescoço, as orelhas e os dedos. Sempre angustiado, evidenciava temores de que lhe cortassem o pênis. Segundo Sperling, parte destes relacionava-se ao registro traumático de uma cirurgia de amígdalas a que fora submetido aos cinco anos.
Na análise da mãe, evidenciou-se que esta tinha uma perversão sexual masoquista e só obtinha satisfação se o marido beliscasse ou batesse em suas nádegas; não obstante, ocorreram mudanças significativas na sua relação com o filho. Como a relação de Jerônimo com o pai revelava-se extremamente patógena, Sperling decidiu proibir diretamente a continuidade das brincadeiras sádicas com o menino. Percebeu ela que ambos os pais utilizavam-no para gratificar as suas próprias necessidades infantis perversas, e Jerônimo desenvolvera uma atitude sádica com relação à mãe e masoquista para com seu pai. A evolução favorável na terapia deste menino, que obteve uma maior integração psíquica e uma melhora de sua relação com os objetos externos, passou por uma internalização dos conflitos que se expressavam na conduta, por uma modificação da atitude dos pais e pela possibilidade de expressão verbal de seu ódio a estes, ao mesmo tempo em que era capaz de reprimi-lo como descarga motora direta.
Não gostaria de concluir este tópico sem referir-me especificamente aos efeitos pós-traumáticos do abuso sexual na infância como condicionante de condutas sadomasoquistas posteriores.
Num artigo intitulado Child abuse and the child psychiatrist, de 1990, Johnson, investigando os maltratos físicos e psíquicos na infância, diz que, dentro de uma perspectiva psicodinâmica, os ataques físicos e psicológicos à criança podem ter como conseqüência desorganizações afetivas que, por seu turno, levam-na a desenvolver mecanismos de defesa que compulsivamente a conduzem a criar situações em que o trauma venha a se repetir. As vítimas podem identificar-se com o agressor, tornando-se abusivas e indutoras, e resignando-se a serem objeto persistente de maltrato por parte dos outros. As crianças vítimas de incestos ou pedofilia são passíveis de, adaptando-se a este padrão, tanto temerem como propiciarem as circunstâncias de vitimização.
Segundo Schultz (1972), as crianças vítimas de atentado
sexual podem ser inscritas num gradiente que tem num extremo a vítima
acidental e no outro o participante sedutor, que apresenta já distorções
na personalidade por efeito de privações ou maus tratos anteriormente
recebidos. Lukianowicz (citado por Ajuriaguerra, 1983) aponta, a partir
de uma pesquisa com meninas sexualmente abusadas, como perturbações
posteriores do desenvolvimento psicossexual o distúrbio anti-social,
a prostituição juvenil, a frigidez adulta e os sintomas depressivos
com freqüentes tentativas de suicídio. O comportamento sádico
com animais parece obedecer ao mesmo tipo de configuração
evolutivo-relacional que aqui busquei caracterizar.