FEMINIZAÇÃO E HOMOSSEXUALIDADE Nas manifestações de uma distorção precoce do processo identificatório na infância a efeminação pode aparecer como precursora das manifestações perversas já descritas, pode permanecer ao longo do desenvolvimento como um traço marcante da personalidade sem que ocorram atuações homossexuais, ou pode estar na base de uma conduta homossexual infantil, a qual por sua vez não necessariamente pressupõe a efeminação.

Buscarei esclarecer melhor o que afirmo discutindo em particular cada uma das alternativas referidas, começando pelos conceitos homossexualidade e efeminação ou feminização.

Numa contribuição ao estudo dos desvios sexuais, Arbiser (1986) propõe uma diferenciação entre o efeminado e o homossexual, baseada numa passagem de Freud (1919) em que isto parece ser colocado como necessário. Sustenta Arbiser que "Diferentemente da homossexualidade, que se traduz em uma escolha de objeto homossexual, a FEMINIZAÇÃO se traduz em uma posição narcisista na qual o ego se oferece ao superego como objeto sexual". Segundo Arbiser, na FEMINIZAÇÃO não há uma escolha de objeto homossexual, a pessoa não se enamora de pessoas do seu próprio sexo mas, antes, de si mesma. "Se trata, em suma e definitivamente, de uma homossexualidade que não conduz a uma escolha de objeto concordante, mas a um sintoma: a FEMINIZAÇÃO."

Utiliza-se aqui, parece-me, um discutível argumento, visto que o próprio Freud usava este mesmo modelo teórico, da identificação feminina no menino, para explicar em 1910 a estruturação homossexual em Leonardo da Vinci. É justamente a partir da identificação com a mãe, ou com o lugar imaginário que esta ocupa na fantasia do menino, que este escolherá narcisicamente o seu objeto sexual e o tratará com o mesmo ardoroso amor que sua mãe lhe prodigou.

Arbiser cita textualmente a afirmação de Freud em que se apóia:

"O menino escapa da homossexualidade pela repressão e transformação da fantasia inconsciente. O mais singular de sua fantasia, posteriormente consciente, é que apresenta uma atitude feminina sem uma escolha de objeto homossexual". Não parece claro que Freud se refira aqui a uma "identificação feminina"; mais bem alude, talvez, a uma posição passiva. A equiparação qualitativa entre feminização e homossexualidade, cuja distinção parece consistir mais especificamente no grau de contaminação da conduta pela fantasia, nos é oferecida por Freud no mesmo artigo, quando, algumas páginas adiante, diz: "O menino que tendia a evitar a escolha homossexual de objeto, e que não busca mudar de sexo, se sente no entanto mulher em suas fantasias e adorna a mulher flageladora com atributos e qualidades masculinas" (Freud, 1919).

Saludjian (1977), num estudo sobre os afetos na homossexualidade masculina, demonstra como em três etapas da relação mãe-filho estabelece-se a condição homossexual, tomando como modelo o "Leonardo" de Freud. Na primeira etapa o sujeito se apega à mãe e é objeto desta. Na segunda etapa o intenso apego de ambas as partes determina que o menino seja despojado de sua virilidade e não possa desejar. Na terceira etapa há uma tentativa infrutífera de converter a mãe em objeto, recaindo a escolha sobre um duplo masculino. A feminização, pois, pressupõe sempre uma escolha homossexual, embora esta escolha nem sempre seja atuada.

Supondo esclarecido este particular, passarei ao exame da homossexualidade infantil efeminada.

As crianças que neste grupo incluem-se podem ser vistas como tendo atingido um estágio mais avançado no processo constitutivo da identidade sexual. As fixações, porém, em estágios pré-genitais do desenvolvimento psicossexual, os iniciais déficits identificatórios, a excessiva intimidade com mães que os engolfam e feminilizam através da erotização e do controle intrusivo de suas vidas, fazem com que estes meninos mantenham-se num complexo de Édipo negativo. São crianças que se dessimbiotizam com dificuldade face à excessiva solicitude e proteção materna, geralmente tornando-se retraídos e dependentes, sentindo-se à vontade somente no ambiente familiar. Tendem a adquirir trejeitos e maneirismos femininos, embora não manifestem desejo de mudar de sexo e não desenvolvam a compulsão de vestir-se com roupas femininas, como os pacientes dos grupos antes estudados. Conforme assinalam Lebovici e Kreisler (1966), estes meninos, investidos pela libido narcisista materna, podem tornar-se vaidosos e exigentes, desenvolvendo grande preocupação com o corpo (saúde, higiene e vestuário). Seu narcisismo, à semelhança das mulheres, investe o corpo todo, não se observando neles o orgulho fálico comum à maioria dos meninos.

Stoller (1975) assinala como patognomônica da relação mãe-filho a sedutividade materna, estimulante da sexualidade do menino, alternada contraditoriamente com medidas punitivas e restritivas às manifestações viris e sexuais da criança. As dificuldades no entrosamento social e a ansiedade de separação podem estar presentes e agudizarem-se nas primeiras situações externas que imponham um distanciamento temporário da mãe ou da família.

O pai não é alguém necessariamente hostil ou distante, mas inadequado. Alguns desses pais são homossexuais latentes e gratificam-se indiretamente com a conduta dos filhos, além disso, como enfatizam Lebovici e Kreisler (1966), têm comumente uma ligação erotizada com estes, que serve também como condicionante de um Édipo negativo persistente, com fantasias de dar ao pai um filho fabricado com os próprios excrementos. A busca nostálgica de um pai potente e idealizado (falo estruturante) pode tornar estes meninos presas fáceis de atuações pedofilicas, e a inveja e o sentimento de inferioridade com relação aos outros podem faze-los objeto de jogos sexuais com colegas, onde assumirão uma atitude passiva que, se não for interrompida e tratada oportunamente, é passível de vir a consolidar um padrão de conduta sexual homófila. Juntamente com os casos de travestismo, estes são os mais comumente vistos na clínica e sobre os quais encontramos maior bibliografia disponível.

Anna Freud (1965), considerando o prognóstico destas crianças em tratamento, aponta como determinantes significativos as satisfações e frustrações administradas oral e analmente pela mãe, as vicissitudes no processo de independização, a intensidade dos desejos passivo-femininos em relação ao pai e o efeito dos choques da castração. Acredito que a maior proximidade com as organizações neuróticas melhore o prognóstico destes pacientes, quando comparado ao das distorções mais severas da identidade de gênero, já anteriormente descritas neste capítulo.

Num outro grupo, que designarei como homossexualidade não efeminada, não se poderia propriamente falar num distúrbio da identidade de gênero. Incluem-se aqui os meninos viris, cuja masculinidade desenvolveu-se satisfatoriamente, orientando a sua identidade genérica, mas que, em face de ansiedades inerentes ao estágio evolutivo, ou reativamente a uma situação externa de efeitos traumáticos, podem incorrer em períodos de atuações homossexuais de caráter passageiro ou prolongado. Embora, como afirma Ajuriaguerra (1977), o relacionamento com pessoas de um mesmo sexo durante o desenvolvimento infantil normal seja comum e não tenha um valor de organização homossexual posterior, é importante distinguirmos entre ocasionais incursões infantis na homossexualidade e a busca compulsiva de contato sexual com o mesmo sexo, que costuma denunciar sofrimento interior. As privações afetivas induzidas por circunstâncias externas diversas podem levar a criança a buscar alívio para as angústias depressivas através do acting out homossexual, assim como em outros casos a compulsão masturbatória serve ao mesmo fim.

Embora apresentem uma estruturação neurótica de personalidade, com uma organação edípica predominantemente positiva, estas crianças podem se ver tentadas a optar, ainda que tardiamente, por uma solução de conotação desviante. Se o sofrimento expresso pela criança através das suas atuações é entendido pela família, e ela consegue encontrar no ambiente uma disposição reparatória, poderá ser levada consequemente a tratamento. A intervenção terapêutica possibilitará à criança vivenciar os sentimentos depressivos evitados, conscientizando-a das motivações inconscientes de seu comportamento e permitindo assim a resolução elaborativa do conflito. Se os sinais de sofrimento evidenciados, embora de forma não verbal, não forem adequadamente advertidos pelo ambiente, a homossexualizaçáo do menino será favorecida pelo estabelecimento do ganho secundário, e mesmo que as características genéricas masculinas sejam conservadas poderá ocorrer uma inversão permanente da orientação objetal. Vislumbra-se aí uma possível etiologia da homossexualidade "discreta" ou "imperceptível" do adulto.

Em seu último livro, Stoller (1989) noticia o caso de um menino de 8 anos, Rock, a quem se refere como levemente feminino. Rock tinha maneiras femininas de caminhar, falar, gesticular. Costumava também vestir as roupas de sua irmã quando brincava de casinha com ela. Tinha dificuldades para brincar com meninos, preferindo as meninas. Era tímido. Não se defendia quando agredido fisicamente e acabava chorando. A mãe de Rock é descrita como uma mulher forte, firme e agressiva. O pai, com quem o menino tinha uma relação muito difícil, era um pintor que trabalhava pouco na profissão, mas fazia todo o trabalho doméstico. As vezes alcoolizava-se, quando tornava-se insuportável, sendo às vezes agredido pela mulher.

O pai de Rock mostrou-se inabordável terapeuticamente. A mãe foi analisada por Stoller com bons resultados. Rock foi tratado por um terapeuta infantil e, com a colaboração ativa da sua mãe, evoluiu bem. Na época do relato de Stoller, era já um homem adulto que não se havia tornado efeminado nem homossexual.
 

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