ANATOMIA ANALÍTICA

 

 

Geneviève Morel

 

Para a psicanálise, a diferença dos sexos não é a diferença anatômica. Entretanto, se essa vale, seria apenas, como Freud enunciava em 1925, por suas "conseqüências psíquicas". Na prática analítica, verifica-se a dificuldade para todo sujeito, seja ele psicótico, perverso ou neurótico, de assumir seu sexo. Mas o que é chamado justamente de "seu" sexo, se este não é o sexo anatômico? Para Freud, a diferenciação do homem e da mulher é um processo extremamente complexo, articulado ao desenvolvimento da pulsão sexual e relativamente tardio, posto que os dois sexos só fazem um, pelo menos até a fase fálica. De toda maneira, o resultado nunca é puro: "Não se encontra,... para o ser humano..., pura masculinidade ou feminilidade, nem no sentido psicológico, nem no sentido biológico" escreve Freud em Os três ensaios, de 1915. Ele nunca renunciou à existência de uma bissexualidade, não só anatômica, mas também psíquica, cuja origem permaneceu para ele inexplicável.

Nesse percurso que vai do complexo de Édipo ao complexo de castração, para o menino, e o inverso para a menina, a anatomia permanece essencial. De início, aquela do ponto de partida, depois, aquela do outro sexo: para aquele que tem um pênis, a percepção de sua ausência na menina dará seu peso de real à ameaça de castração do adulto; para aquela que não tem pênis, é diante de sua visão que ela sucumbirá ao Penisneid. Sem contar a importância decisiva da anatomia materna, de uma parte, para a estrutura - neurótica, perversa ou psicótica - de outra parte, para o processo de diferenciação sexual. Essa breve evocação está aqui apenas para fazer valer o recuo aparente da importância da anatomia no ensinamento de Lacan, uma vez que nesse contexto ele aborda o sexo pelo viés do gozo e da linguagem, e não mais em termos de desenvolvimento.

Lacan radicalizou a tensão entre a diferença dita natural dos sexos e suas conseqüências no sujeito, que ele, nos anos 70, chamou de sexuação ou, às vezes, "opções de identificação sexuada", para marcar, por um lado, uma escolha do sujeito (opção), e por outro, com o termo identificação, a intervenção do significante. A sexuação depende de uma lógica em três tempos: primeiro, aquele da diferença natural dos sexos; segundo, aquele do discurso sexual; terceiro, o tempo da escolha do sexo pelo sujeito ou da sexuação propriamente dita.

 

  Os três tempos da sexuação

O primeiro tempo é aquele da diferença anatômica natural. Assinalada desde o momento do nascimento, ela agora é amplamente antecipada pela ciência - ecografia, genótipo - enquanto se espera a escolha real do sexo para breve. Mas esse primeiro tempo é um real místico, uma vez que ele só torna seu valor no segundo tempo.

O segundo tempo é aquele do discurso sexual. Com efeito, a natureza aqui vale apenas como interpretada e nenhuma diferença é pensável sem o significante, a própria percepção é estruturada por ele. Logo, distinguem-se" os dois como menina e menino. Esse "se" e o que está em volta, o médico, enfim, o discurso do Outro. Esse "se" é a fonte de um erro que Lacan chama de "erro comum", comum porque é o de todo mundo, e até que ele faz comunidade, da mesma maneira que o discurso faz laço social, a partir do universal do falo. A natureza sugere uma diferença, mas desde que o "se" profere "é um menino , e uma menina", ele o faz, sem saber, na dependência dos critérios fálicos. "Menino" ja não quer dizer apenas portador de um pênis, mas capaz de virilidade, de ser um homem, como "se" diz. "Menina" perde seu sentido anatômico para se tornar ao mesmo tempo sinônimo de privação, falha, mas também de feminilidade, beleza, enigma perpétuo etc. A natureza torna-se semblante. A natureza, aí, sucumbe ao peso de um significante único que categoriza a diferença natural em termos de falo e de castração.

O órgão natural tornou-se organon, instrumento significante. Em que consiste o erro do discurso sexual? Ele muda o estatuto do falo. O falo é o significado do gozo e o discurso sexual faz dele um significante. Ora, isso não tem o mesmo valor.

Dizer que o falo é o significado do gozo quer dizer que só apanhamos algo do gozo, no que é dito, na significação fálica. O que não impede outros gozos de existirem, e mesmo de serem experimentados pelo sujeito; mas eles são silenciosos, fora de significação, o que torna sua demarcação e sua diferenciação difíceis, so a do mais-gozar, seja a do gozo do Outro. Um sujeito pode se deleitar no significado fálico, que pode evocar com o fluxo vital, o vivo, a forma erétil, a estatura vertical, o júbilo do estádio do espelho etc., sem com isso se inscrever sob o significante falo, isto é, aceitar a castração. Por exemplo, seria possível dizer de um psicótico como Schreber que ele se deleita em um certo significado fálico até o momento da morte do sujeito, quando o falo como significante lhe é entretanto foracluído, sendo que ele não inscreve seu gozo na função fálica. Assim, o sujeito pode recusar ou aceitar o erro comum do discurso sexual. Se ele o recusa, é a psicose, o fora-do-discurso e ele deverá se inventar uma sexuação inédita. Sabe-se que o empuxo-à-mulher ganha nesse contexto um lugar eminente. Se ele o aceita, entra na sociedade humana fálica, inscreve seu gozo na função fálica única para poder significar a diferença sexual. O que não deixa de levantar uma aporia, que Lacan resolve de um modo diferente do de Freud: Como, com um único significante, escrever dois sexos? Como especificar ainda mais o que, por ora, escreve-se menino, menina, diferença dos sexos?

Eis aqui um exemplo concreto dessa aporia, nos termos em que a lembrança de um jovem homem homossexual a libera. Sobre a bancada do banheiro de sua infância, ele se lembra de que havia dois aparelhos de gilete: o do pai, para a barba, e o da mãe, para as pernas. "E os dois aparelhos eram idênticos!", comenta ele com perplexidade. Não se pode achar alusão mais clara à mãe fálica, metonímia mais graciosa.

O terceiro tempo é o da sexuação. Certamente, só há uma única função de gozo na linguagem para os dois sexos, mas há duas maneiras de se inscrever isso, a que corresponde a dois modos diferentes do gozo fálico. Lacan resolve assim a aporia de uma única função para escrever dois sexos e o instrumento lógico da quantificação lhe serve para transcrever esse segundo grau do modo de gozo em relação à função fálica. Para se sexuar, um sujeito não se inscreve diretamente nessa função como "eu sou fálico" ou eu ano sou fálico", que valeria para os dois sexos e, portanto, não seria discriminante. Ele se inscreve pelo modo de gozar do falo: "Na relação com o outro sexo, eu sou tomado por inteiro na função fálica, logo eu sou um homem" ou, então, "na relação com o outro sexo, eu sou não-toda inscrita na função fálica, logo eu sou uma mulher". Com certeza, essas últimas formulações são aproximadas, mas elas dão a idéia da maneira, que não é única, ou do modo de gozar com relação a essa função. Sabe-se que Freud resolvia a aporia pela inversão temporal, no desenvolvimento dos dois complexos de castração e de édipo. Por que Lacan recorre a uma escritura lógica? Porque sua definição do real do sexo é o impossível de escrever a relação sexual. Ele supõe, então, que as lógicas existentes testemunham uma formalização do im6 possível, que inventa uma escritura da não-relação sexual. Isso explica por que ele escreve os dois sexos como fórmulas, usando os simbolos da lógica mais moderna, mas que não se pode ler, todavia, sem retornar ao inventor da primeira lógica formal, Aristóteles. Freud com Aristóteles, reescrito com a lógica moderna, eis aí a tentativa de Lacan para definir os dois sexos como dois modos distintos de uso do falo no seu laço com o outro sexo, laço que, de um modo diverso, fracassa em fazer relação.

 

O transexualismo

É preciso que façamos referência ao segundo tempo da sexuação, aquele do discurso sexual, do erro comum. O transexual, acredita-se, quer mudar seu sexo anatômico, e denuncia o erro da natureza que lhe deu uma alma feminina em um corpo de homem (ou o inverso). Por vezes, o médico o toma ao pé da letra e o opera. Por vezes, mesmo se é reticente à operação, como Stoller, ele tomará ao pé da letra os dizeres do transexual para definir um conceito de "gênero", eventualmente oposto ao sexo anatômico, que seria o "verdadeiro" sexo. O critério do verdadeiro seria a convicção íntima do sujeito quanto a seu sexo, signo, entretanto, nós o sabemos, de uma ausência de neurose. A causalidade do gênero seria o desejo da mãe por uma criança-falo-feminino, desejo não limitado pela lei paterna. Isso nos incita a visar freqüentemente para esses casos um diagnóstico de psicose. A originalidade desses sujeitos é que eles não deliram, a não ser com relação a esse ponto preciso do "erro da natureza" que localiza a loucura deles. Se nos situamos no segundo tempo da sexuação, vemos que esses sujeitos recusam o discurso sexual, isto é, a categorização fálica do órgão anatômico. "Se é meu pênis que decide que sou um macho, enquanto eu me sinto mulher, muito bem, eu quero a cirurgia", é o que, em substância, eles dizem. Não se trata, então, de um erro da natureza, mas de uma recusa, da ordem da foraclusão, recusa do discurso sexual e do erro comum que ele implica: fazer do falo o significante do sexo.
 

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