Um Aborto Terapêutico

Curitiba, 16 de abril de 1994.
0250h

        - Dona Terezinha, é aquilo que a gente já tinha conversado...- disse Dr. Hugo para a mulher com as pernas abertas.

           Eu não sabia o que dizer, o que fazer e como olhar para ela quando ela cheia de dor confusa me chamou:

        - Doutor, ele está vindo!... - e a contração do útero induzida pelas macrodoses de occitocina expulsou o feto morto de 24 semanas.

       Ela chorou com o pequeno e delicado produto da concepção entre as pernas, ainda preso a ela pelo cordão umbilical.

       Ela chorou.

       Cobriu o rosto para não mostrar as suas lágrimas.

       Pedi à enfermeira um campo para cobri-lo.

       Vesti umas luvas.

       Peguei o campo.

        - "E agora, como pegar neste neném?..."- pensei.

       Procurei algum sinal vital, qualquer movimento, batimento do cordão, qualquer coisa. Nada. Ele estava morto.

       Peguei o pequeno corpinho gelatinoso e o envolvi nos campos.

       Ela esticou os olhos para tentar vê-lo.

        - Agora, com calma, você que está de luva, tracione um pouco o cordão para dequitar a placenta.

       Peguei o cordaozinho e comecei a puxá-lo delicadamente.

        - Calma, ela está vindo.

        - disse Dr. Hugo apertando o hipogástrio da mulher. Aumentou o gotejamento do soro.

       De repente, um esguicho de sangue veio pela vagina. Assustei-me.

        - Calma, é assim mesmo, a placenta está vindo.

       Ele fez um toque vaginal.

        - Já está saindo do útero. Vamos aguardar que ela saia sozinha.

       Pausa.

        - O que ele é, doutor?

        - perguntou ela.

        - ...Acho que não interessa muito...

        - respondeu Dr. Hugo.

        - Para mim interessa. Interessa muito

       Abri os campos e as perninhas molinhas e grudentas do feto.

        - Era um menino...

        - Um menino?...

        - É...

       Dez minutos depois desceu a placenta com uma discreta corioamnionite e áreas hemorrágicas na face materna.

        - Você quer ver?...

        - perguntei sem jeito. Ela hesitou.

        - Quero.

       Ajeitei melhor o neném no campo e escondi a placenta em outra parte deste campo.

       Mostrei o rostinho para ela. Sorriu um sorriso amargo.

        - É parecido com o pai... - pegou na mãozinha - é moreno igual a ele. - Na verdade a coloração azulada era própria da hipóxia que a indução provocou.

       Abriu as perninhas para ver o pênis pequenininho e se certificar de que era um menino.

        - E se o pai também quiser ver?

        - Aí eu não sei como pode ser. Acho meio difícil.

        - Ele já está formadinho.

        - É...

        - Tem que batizar.

       Pausa.

        - Não entendi.

        - Ele já está grandinho: tem que batizar.... Não faço questão de levar ele para casa, mas de batizar eu faço questão.

        - Vou falar com Dr. Hugo a respeito.

* * *

       Dormi no meu horário e sonhei que eu pegava o neném nos campos e corria para a sala de reanimação neonatal.
 


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