[In: Maria Cristina Marquezine, Maria Amélia de Almeida, Eliza Dieko Oshiro Tanaka, Nerli Nonato Ribeiro Mori & Elsa Midori Shimazaki (orgs.). Perspectivas multidisciplinares em educação especial. Londrina: Editora da UEL, 1998, p. 147-150. - co-autoria com Angela Denise H. C. Pereira]
INTRODUÇÃO
A questão da excepcionalidade é um tema muito recorrente em nossa sociedade. É comum observarmos tal problemática - bem como questões afins - sendo retratada em diversos níveis e dimensões. Filmes sobre o tema como: O estranho no ninho (1975); O enigma de Kaspar Hauser (1975); Rain Man (1988); Nell (1994) - apesar de tratarem este problema sob várias perspectivas - nos remetem para uma constante discussão sobre o tema e seus desdobramentos: diferença, discriminação, excepcionalidades, etc.
Apesar da excepcionalidade ser um objeto de estudo quase que exclusivo da psicologia e de disciplinas afins, ela tem tomado dimensões que extrapolam os limites desta disciplina, exigindo de nós um olhar mais amplo. É o que nos sugere o trabalho de Schneider (1985) que nos assinala, a partir de um estudo etnográfico de uma sala da aula, que a excepcionalidade é uma construção social.
Omote (1990), com uma perspectiva muito próxima à de Schneider, nos revela, a partir de estudos sobre a percepção dos deficientes, o quanto o meio social aprofunda as diferenças entre pessoas deficientes e normais, através de mecanismos de discriminação e estigmatização** .
Diante deste contexto, a identificação e a caracterização dos problemas evolutivos - ou seja, o diagnóstico da excepcionalidade - têm se tornado um problema com várias dimensões: social, educacional, econômica, ético, etc...
O diagnóstico - cuidadoso e preciso - tem proporcionado o desenvolvimento de programas de intervenção e estimulação precoces junto às crianças em situação de atraso no desenvolvimento, o que se tem caracterizado como uma das formas de atendimento mais adequadas para crianças que apresentam necessidades especiais. No entanto, a situação de diagnóstico pode trazer uma variedade de sentimentos, ansiedades, angústias para aqueles que vivenciam tal situação.
Em nosso trabalho junto às pessoas com necessidades especiais temos observado que os pais destas pessoas geralmente são muito ansiosos e preocupados com o futuro de seus filhos e, quando questionados sobre sua história de vida, nos apresentam uma história de sofrimento principalmente pela falta de informação quanto às possibilidades de seus filhos.
DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
As considerações anteriores nos levaram para a realização desta pesquisa. Nosso olhar se dirigiu para os pais que têm em sua família uma criança em estado de suspeita, ou seja, uma criança que está sob o processo de diagnóstico na investigação de alguma síndrome, período que vai do momento em que o médico (ou a instituição de ensino especial) suspeita de que a criança tenha uma síndrome até o momento em que ela recebe o diagnóstico definitivo, através de exames laboratoriais.
Entendemos que neste período - o da convivência com a suspeita - emergem sentimentos e angústias que podem comprometer o vínculo pais crianças, bem como gerar expectativas quanto ao desenvolvimento da criança e de suas possibilidades (mesmo que o resultado seja negativo).
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Tal perspectiva, por sua vez, nos faz pensar sobre os encaminhamentos e atendimentos oferecidos para estas crianças e suas famílias durante este período. Nesse sentido procuramos o Serviço de Aconselhamento Genético da Universidade Estadual de Londrina que realiza o trabalho de diagnosticar síndromes a partir de exames laboratoriais. Os encaminhamentos de pacientes para este serviço são realizados ou por médicos ou por instituições para crianças especiais.
Em nossos contatos iniciais com tal Serviço pudemos constatar uma série de dificuldades da parte daqueles que realizam a recepção de tal clientela, assim como na devolução dos resultados dos exames, tendo em vista o clima emocional implícito em tal situação.
Assim, propusemos ao coordenador do Serviço uma pesquisa exploratória para que pudéssemos caracterizar melhor os sentimentos, ansiedades e angústias vivenciados pelos familiares das crianças encaminhadas para a realização dos exames para, posteriormente, estruturarmos um atendimentos mais específico para os mesmos.
As pessoas que participaram de nossa pesquisa foram aquelas que procuraram o Serviço de Aconselhamento Genético da UEL no período de agosto a outubro de 1996. Estas pessoas chegaram até ali por encaminhamento médico ou institucional. Após um contato inicial, onde os interessados preenchiam formulário de identificação, a família e a criança sob suspeita eram encaminhadas paa o NUBEC - Núcleo de Bem Estar da Comunidade da Universidade Estadual de Londrina, para a coleta de material para a realização dos exames solicitados pelos médicos. Após a coleta, os familiares e as crianças eram encaminhadas para a sala onde realizamos as entrevistas. Apesar da presença das crianças, as entrevistas foram feitas com seus pais e/ou seus responsáveis*** .
A entrevista com os familiares foi realizada de maneira semidirigida. As informações requeridas diziam respeito à identificação da pessoa sob suspeita, sua gestação, antecedentes familiares, etc... Em seguida, eram apresentadas algumas questões referentes aos sentimentos, experiências, angústias expectativas e reações vivenciados pelos familiares quando souberam da suspeita da presença de alguma síndrome em seus filhos.
Foram entrevistados 20 (vinte) pessoas, sendo entre elas19 (dezenove) do sexo feminino (mães), destas apenas 03 (três) foram acompanhadas por seus respectivos esposos. Um pessoa do sexo masculino compareceu ao setor e para a entrevista.
As entrevistas foram conduzidas de forma que os entrevistados tivessem a liberdade para expressar seus sentimentos, explorar suas experiências. Notou-se que as pessoas nesta situação - a de suspeição - sentem necessidade de falar sobre o que estão sentindo e experienciando, e aquele momento era utilizado como um meio de desabafo para as tensões que vivenciavam.De uma maneira geral, os entrevistados expressavam descontentamento, dúvidas, tristeza, raiva, deixando no ar sentimentos muito contraditórios e a necessidade de superá-los. A questão era como?
Nesse sentido, entendemos que a oportunidade ofertada para estas pessoas possibilitou-lhes tomar mais contato com as angústias e as ansiedades que a situação de suspeita proporciona, transformando-se num momento de apoio, de reflexão, de orientação...
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Este estudo teve o propósito de identificar e apontar as necessidades, angústias, ansiedades e problemas sofridos pelas famílias, quando recebem a informação de que um de seus membros pode (suspeita-se) apresentar algum tipo de síndrome que pode comprometer seu processo de desenvolvimento. Abordamos tal questão de diversos ângulos; no entanto, neste momento, fixaremos nossa atenção às formas pelas quais os pais destas crianças expressaram sua revolta diante do que estava ocorrendo.
Os entrevistados levantaram suspeitas sobre o desenvolvimento de seus filhos, a partir de dois aspectos: pela aparência e pelo desenvolvimento motor. Somente um entrevistado foi alertado por outras pessoas acerca do desenvolvimento de seu filho.
Apesar de alguns entrevistados perceberem algo de errado com seus filhos, entendemos este momento - o da notícia - como o momento onde se consolidaram tais suspeitas ou onde elas se instalaram.
Apesar de alguns entrevistados perceberem algo de errado com seus filhos, entendemos este momento - o da notícia - como o momento onde se consolidam tais suspeitas ou onde elas se instalam.
Diante da dúvida verificamos vários sentimentos e reações: desespero, tristeza, solidão, revolta, choque, confusão, embaraço, etc... Estes dados nos sugerem que a dúvida e os sentimentos dela
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decorrentes podem comprometer a aceitação da criança caso a síndrome seja confirmada. Assim como pode influenciar negativamente a percepção dos pais sobre o desenvolvimento da criança caso a síndrome não seja confirmada e a criança apresentar dificuldades em sua vida futura.
Vale ressaltar alguns sentimentos e reações que os pais expressaram quando souberam da possibilidade de que seu filho pudesse ser portador de algum tipo de síndrome. Um deles é o da revolta. Esta sensação tem várias direções: alguns se revoltaram contra os médicos.
Chorei muito e fiquei desesperado e com raiva do médico, não rejeitei meu filho, passei uma noite inteira em claro, acho que o sentimento de dó é o início da derrota. (S19)
Eu fico revoltado, o médico falou que estava tudo bem e não está, agora que foi suspeitado que ela tem Síndrome de Down, não acredito que ela seja Down, li muito a respeito e não acho que ela se pareça.(S03)
Para mim tudo é um sonho, e com esse resultado negativo vou acordar e tudo vai dar certo. (S09)
Outros se revoltaram contra a criança, como nos sugere o seguinte depoimento.
A vida para mim ficou muito mais difícil, faço tudo que ela quer para ela ficar quieta. (S20)
Ainda outro se revolta contra a possibilidade de o exame dar positivo.
Não sei o que fazer da vida, não aceito a possibilidade do resultado dar positivo, fico revoltada. (S02)
Este testemunho nos sugere a impotência diante do exame, pois será ele que confirmará ou não a presença da suspeita da síndrome.
A revolta também é dirigida para o cônjuge. Esta suspeita pode gerar dúvidas quanto à fidelidade no casamento. Um dos entrevistados disse estar muito embaraçado, pois seu cônjuge desconfiava de sua fidelidade, pois [seu cônjuge] não geraria uma criança doente.
Outras reações que nos chamaram atenção foram a da mãe que expressou que não desejaria que seu filho fosse para a APAE, e de uma outra que que sentiu pavor quando ouviu a palavra síndrome. Tais dados nos confirmaram a percepção desta instituição como um espaço discriminador e estigmatizador, e a da criança com necessidades especiais como alguém sem futuro, ou seja, os entrevistados preocuparam-se muito com a questão da inserção social de seus filhos e os seus desdobramentos.
Os sentimentos e as reações apresentados pelos entrevistados foram muito diversificados. Esta gama de sentimentos e reações perante a dúvida pode ser sintetizada pelas respostas de duas entrevistadas: a primeira, sente-se insegura e, a segunda, imobilizada. A convivência com a dúvida, portanto, torna-se muito difícil, principalmente quando não há informação sobre o problema, bem como quanto as possibilidades de amenizá-lo e ou superá-lo.
DOS ENCAMINHAMENTOS
Mas como atender esta população? Como abordar as várias dimensões implicadas com a excepcionalidade? Entendemos que somente a ampliação da discussão - uma discussão sem preconceitos - sobre a questão das pessoas ditas diferentes poderá subsidiar as famílias que vivenciam esta situação. À medida que elas tiverem informações mais precisas a respeito dos tratamentos, recursos e encaminhamentos, elas poderão lidar melhor com as angústias e ansiedades que permeiam suas vidas, o que as auxiliarão no relacionamento com a pessoa que apresenta algum tipo de síndrome.
Silva (1988) nos aponta para a necessidade de um envolvimento da família no atendimento das crianças com necessidades especiais com a equipe que delas cuida. É necessário que se desenvolva entre profissional x paciente x família, uma aproximação mais adequada que possibilite o esclarecimento de dúvidas.
A falta de informação, a falta de um espaço para esclarecimento dos pais ou responsáveis e as dificuldades de superar os conflitos decorrentes da dúvida nos levam a supor que o sofrimento da família será superado mediante o resultado do exame. Vale lembrar, no entanto, que este é um longo período (geralmente o resultado do exame demora um mês) e, em função do estado de suspeição, os entrevistados criam uma série de expectativas frente ao resultado dos mesmos, o que pode dificultar o relacionamento com seus filhos.
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Estas entrevistas nos mostraram o grito de socorro das famílias que vivem tal situação e tentam fazer-se ouvir.
As famílias que entrevistamos estavam passando por um momento muito delicado: o momento da dúvida. Momento este que gera muita angústia e muita ansiedade para o porvir - principalmente dentro de uma sociedade como a nossa, onde espera-se que os indivíduos cresçam e produzam.
Nesse sentido, entendemos que pela fragilidade do momento - e pelos seus possíveis desdobramentos - há que se oferecer a estas famílias um momento para desabafo, um momento onde possam expressar suas dúvidas, angústias, ansiedades, e prepararem-se caso se confirme a síndrome em seu filho.
O debate sobre os diferentes nos remete para a certeza de que este grupo deve ter assegurado seus direitos e espaços de convivência social, e que esta empreitada implica no desenvolvimento de uma nova ética social - mais solidária, mais compreensiva, etc... - o que implica no envolvimento de todos os segmentos sociais, um compromisso dificil, mas possível.
NOTAS
* - Este trabalho apresenta
resultados parciais da Monografia de mesmo título apresentada
por Angela Denise D.H. Pereira para a obtenção do título de
Especialista junto ao curso de Especialização em Educação
Especial da Universidade Estadual de Lodnrima, orientada pelo
Prof. João Batista Martins.
** - Nesse sentido, vale a pena recuperar o estudo clássico de Goffman (1982) sobre o estigma.
*** - Entendemos que tal encaminhamento pode ter constrangido as crianças, mas não houve condições de encaminhá-las para um lugar mais adequado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Goffman, E. (1982). Estigma: notas sbre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.
Omote, S. (1990). Aparência e competência em Educação Especial. Temas em Educação Especial 1. São Carlos, Programa de Pós-Graduação em Educação Especial - UFSCar, p.11-26.
Schneider, D. (1985). Alunos excepcionais: um estudo de caso de desvio. In: Velho, G. (org). Desvio de divergência: uma crítica da patologia social. 5 ed., Rio de Janeiro:Jorge Zahar, p. 52-81.
Silva, S. F. da (1988). Experiências e necessidades de mães após o diagnóstico de deficiência mental do filho. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação Especial. Universidade Federal de São Carlos.