|
I - MIRADAS TEÓRICAS
1 - A Alteridade e a Antropologia
Durante este trabalho várias vezes será dito que a identidade é circunscrita pelas condições sociais que se estabelecem na vida dos sujeitos. Como o leitor terá a oportunidade de perceber nesta aproximação, praticamente todas as teorias que trabalham com o tema da identidade supõem que a construção da identidade alimenta-se de alteridades.
Para a Antropologia a questão da identidade é fundamental pois ela se construiu, enquanto disciplina científica, a partir da questão da "alteridade". Dito de outra forma, a questão da identidade confunde-se com a história da Antropologia na medida em que tomou o "outro" como seu principal objeto de estudo, donde podemos depreender que o conhecimento por ela produzido implica sempre uma relação.
Esta questão, no âmbito da disciplina, vem paulatinamente se complexificando, pois as novas relações de produção - que se pretendem globais - colocam para a Antropologia novos problemas, tanto de ordem metodológica como conceitual.
Assim, discutiremos nessa sessão, como a Antropologia se constituiu como disciplina científica, e como os problemas que as atuais relações de produção que se estruturam em nível internacional têm para ela colocado.
1.1 - Identidade, Relações de Poder, Antropologia
Partimos do pressuposto de que a questão da identidade e a história da Antropologia estão indiscutivelmente ligadas. Como nos assinala Copans (1974): "a antigüidade das preocupações etnográficas seria um indício da curiosidade das nossas sociedades relativamente aos outros grupos humanos, a fim de entre todos estabelecer as diferenças e as semelhanças." (:17).
Esta preocupação - a da inquirição sobre os outros - é tão antiga quanto a História. O funndador do estudo dos sistemas culturais é Heródoto (século V a.C.) que, com a preocupação de afirmar a diversidade humana, viaja e documenta. "Na verdade ele funda a Antropologia por meio de um grande número de diligências que fazem de seu inquérito um verdadeiro manual de Antropologia regional da Antigüidade." (Auzias, 1978:13).
Necessário chamar a atenção para o duplo aspecto que toma, logo desde o início, o discurso sobre os "outros": os não gregos são os "bárbaros" e, todavia, é preciso descrevê-los para saber em que é que eles são ou não são "bárbaros". O duplo aspecto da exclusão ideológica e da inclusão "científica" sustenta, portando, todo o discurso etnográfico desde as origens.
Para Copans (1974) a Idade Média dá uma nova forma a esse duplo aspecto do discurso sobre os outros, tendo como ponto de partida o processo de cristianização européia. A diferença - bárbaros x não bárbaros - é substituída por outro denominador - cristãos x não cristãos. É aliás em nome desta diferença que se justificarão as primeiras conquistas e explorações coloniais do Renascimento.
É no Renascimento que se inicia a expansão mercantil e política do Ocidente europeu - e é neste momento que se estabeleceram possibilidades de um discurso etnológico sobre todo o planeta. Com efeito, durante os quatro séculos que se sucederam ao Renascimento, o Ocidente vai estabelecer progressivamente (e violentamente) o seu domínio sobre as sociedades até então desconhecidas. Tal expansão tornar-se-á uma nova e importante fonte para a reflexão teórica ocidental.
A partir dos séculos XVII e XVIII vemos emergir empiricamente os contornos de uma reflexão mais sistemática sobre as sociedades não européias e sobre a natureza das sociedades e do homem em geral. Os relatos de viagem levam cada vez mais explicitamente ao comparativismo (com a Antigüidade, com as sociedades européias contemporâneas, com outras sociedades não européias). Assim, as narrações dos missionários, dos descobridores, dos viajantes, refletem uma curiosidade didática que, sistematizada sob a forma filosófica (Rousseau, Monstesquieu, etc.), invocava questões relacionadas com a diferença, com a alteridade:
"Tais são as diferentes construções em presença ... dessa alteridade fantasmática que não tem muita relação com a realidade. O outro - o índio, o taitiano, mais recentemente o basco ou o bretão - é simplesmente utilizado como suporte de um imaginário cujo lugar de referência nunca é a América, Taiti, o País Basco ou a Bretanha. São objetos pretextos que podem ser mobilizados tanto com vistas à exploração econômica, quanto ao militarismo político, à conversão religiosa ou à emoção estética. Mas, em todos os casos, o outro não é considerado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele." (Laplantine, 1988:52 - assinalamentos no original)
Como o critério que caracterizava o estatuto de "humanidade" era o religioso, tal atribuição foi negada - a princípio - a esses "seres" desconhecidos, pois os "índios" têm uma religião que não contempla as "especificidades humanas" preconizadas pela religião católica.
Na medida em que não acreditavam em Deus, não tinham "alma", não tinham acesso à linguagem, sendo "feios" (para os padres europeus) e alimentando-se como um animal; o "selvagem"
"... é apreendido nos modos de um bestiário. E esse discurso sobre alteridade ... abre o grande leque das ausências: sem moral, sem religião, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem passado, sem futuro." (Laplantine, 1988:41)
Estas "faltas" foram apreendidas através de duas variantes: de um lado "eles" não tinham futuro e "deles" nada se podia esperar e, de outro lado, havia a possibilidade de fazê-los evoluir: pela ação missionária1 .
Sob essa perspectiva justificava-se a ação civilizadora dos europeus, ação que se caracterizou pela imposição aos nativos das colônias um paradigma de humanidade que não lhes dizia respeito. Concomitantemente a esse etnocentrismo positivo2 , a expansão territorial do Ocidente implicou numa submissão, dos "colonizados", a um projeto de enriquecimento e de expansionismo econômico de seus colonizadores, o que levou - já naquela época - as sociedades "primitivas" quase à extinção. Morgan (1976 [1877]), vislumbrando as conseqüências desta modalidade de relação, advertiu:
"E se os fósseis se conservarão na terra, intactos para o estudante do futuro, os vestígios das artes, da língua e das instituições índias desaparecerão. Extinguem-se diariamente, e isto desde há três séculos. (Morgan, 1976:10 - assinalamentos nossos)
Explicar as diferenças e as semelhanças, as origens e as evoluções do homem e das sociedades: tal é o programa dos pensadores da segunda metade do século XVIII. É pois, este contexto - o de expansão colonialista do ocidente europeu e de uma reflexão filosófica sobre o homem - que possibilita a emergência das ciências humanas 3. Nele aparece pela primeira vez o emprego dos termos etnologia e etnografia. O primeiro vinculado à filosofia da história e depois à análise das características raciais; o segundo, designa a classificação dos grupos humanos a partir de suas características lingüísticas (Copans, 1974), ou seja, a Antropologia surge no cenário filosófico europeu tendo como ponto de partida a questão da "alteridade", o problema da "identidade".
1.2 - A Questão da Identidade e a Formação dos Estados Nações
A revolução industrial inglesa e a revolução política francesa proporcionaram, por sua vez, a emergência de algumas mudanças fundamentais na sociedade européia: instaurou-se na Europa um novo momento filosófico e ideológico; o estabelecimento dos Estados Nações se consolidou a partir da Revolução Francesa; a superação dos dogmas da Igreja possibilitou que as ciências emergentes delimitassem os parâmetros de verdade; o ideário do progresso, da civilização e da razão implícitos na Revolução Industrial superou os valores da Idade Média. Todas essas mudanças circunscrevem uma nova perspectiva para os horizontes da humanidade - a Modernidade .
Nela
"Os indivíduos estariam iguais e livres das amarras da antiga sociedade. Não mais linhagens, famílias, comunidades, Igreja fornecendo de antemão os parâmetros para o pensamento e a ação do homem. O advento do indivíduo, da fragmentação social da antiga ordem acelerada pelo crescimento das cidades e da indústria, com a mobilidade horizontal entre campo e cidade, tem funcionado igualmente como um indício de modernidade." (Oliveira, 1990:46)
As teorias de identidade, por sua vez, vão desempenhar um papel importantíssimo para a constituição de tal momento histórico, principalmente no que se refere a constituição dos Estados-Nações. Aqui, os escritos de Herder, Goethe, Rousseau, H. G. Mead, etc..., vão concorrer para a construção da identidade dos Estados Nações. Contudo, é com a Revolução Francesa que esta possibilidade começa a se consolidar:
"A Revolução Francesa foi pródiga em construir os símbolos nacionais capazes de garantir a coesão social em substituição à antiga tradição monárquica e autocrática... A criação de bandeiras, hinos, datas comemorativas, cerimônias, heróis, objetiva garantir a obediência, a lealdade e a cooperação dos súditos..." (Oliveira, 1990:48/49)
Ruben (1988) ao indagar sobre a relação entre o valor heurístico e a intencionalidade política no interior da teoria da identidade recupera, de maneira sucinta, o itinerário histórico da teoria da identidade em sua dimensão macro-social.
Nesse empreendimento ele identifica no desenvolvimento do pensamento social três concepções de identidade que, vinculadas às circunstâncias históricas em que foram desenvolvidas, foram cruciais para a compreensão da sociedade. São as formulações de Hegel, H. G. Mead e a operacionalizada pelas ciências sociais do Ocidente. As primeiras são concebidas pelo autor como pertencentes ao período clássico do pensamento social e a última a um período contemporâneo.
Este autor, comparando a abordagem de Hegel - elaborada a partir da sociedade alemã do séc. XIX - e a de Mead - desenvolvida a partir da sociedade americana do início deste século - salienta que ambos estavam preocupados com os fundamentos da formação dos Estados-Nações:
"O conceito de identidade é levado por Hegel para o interior do Estado considerado como um Todo, onde se minimizam as diferenças e as desigualdades e se racionaliza uma unidade que contém a multiplicidade. Este é o idealismo em Hegel. Para Mead o caminho é inverso: o conceito de identidade é levado ao interior da sociedade através do "outro generalizado", que permite a formulação ... de um modelo de sociedade organizada na qual a presença deste "outro generalizado" (único e universal para toda a sociedade) minimiza os conflitos, diferenças e desigualdades. Este é o idealismo em Mead." (Ruben, 1988:81).
Tais concepções de identidade - consideradas a partir dos contextos originais em que foram elaboradas - sugerem a minimização das contradições reais, dos conflitos, das diferenças e das desigualdades.
"Ambas as soluções representam, pois, estratégias políticas instruídas por uma teoria da identidade que, neste contexto original, apresenta-se como a teoria da não contradição, como a teoria da unidade, como a teoria da não diferença." (Ruben, 1988:83).
Ao se referir à concepção de identidade desenvolvida pelas ciências sociais contemporâneas, Ruben assinala que ela é remetida para um contexto no qual a multiplicidade, a diferença e o contraste são privilegiados, o que nos sugere uma ruptura com o pensamento clássico.
Entretanto, ao aprofundar a análise desta oposição, este autor esclarece que as contradições entre a formulação clássica da teoria da identidade e a teorização realizada pelas ciências sociais contemporâneas representam contradições superficiais, pois trata-se de um único conjunto teórico que é acionado em contextos históricos diferentes.
Tal constatação se apóia na análise das noções do "outro" e de "irredutibilidade" concebidas por essas teorias, o que estabelece entre elas um continuum tanto teórico como histórico.
Para demonstrar sua hipótese, e com a perspectiva de superar os impasses metodológicos e a diversidade que a noção de identidade vem tomando, Ruben constrói uma nova e provisória definição operacionalizando vários conteúdos implícitos aos conceitos de identidade desenvolvidos pelas ciências sociais:
"No nível de abstração que proponho operar parece não ter sentido tratar de uma identidade adscritiva, étnica, lingüística, religiosa, política, contrastiva, sexual, nacional, cultural, ideológica, camponesa, proletária, urbana, processual, ou, finalmente, estrutural, pois o que interessa definir (...) é o tipo de fenômenos que se vinculam correntemente à versão atual da noção em questão. É este tipo de fenômenos que interessa deixar claro (...) Neste sentido, a definição de identidade é a determinação e certa dimensão irredutível da qual toda sociedade ou grupo humano seria portador." (Ruben, 1988:84- assinalamentos no original).
Apesar das teorias analisadas trabalharem com a categoria do outro, existem diferenças entre os outros da teoria clássica e os outros da teoria contemporânea. A principal diferença:
"reside no fato de que em oposição à versão clássica, onde o outro é sempre seu semelhante definido como simultaneamente idêntico e diferente (tanto em Hegel como em Mead), embora também próximo e necessário para a constituição de uma sociedade unida, na versão contemporânea o outro é imediatamente remetido ao distante e é sistematicamente definido como o diverso, em alguns casos também como o desigual. Em outras palavras, a versão contemporânea da teoria da identidade opera descentralizando o outro do próprio universo e colocando-o além dos limites do grupo." (Ruben, 1988:86)
Neste movimento, a abordagem contemporânea se encarrega de explicitar a dimensão - a condição - de irredutibilidade, isto é, os limites, as condições necessárias para a permanência do outro - e do si mesmo - como diferente, distante, único e irredutível.
A noção de irredutibilidade, por sua vez, diz respeito às marcas e aos limites socialmente elaborados que permitem a reprodução da sociedade, evitando a cisão entre esta e o indivíduo, ou seja, a desagregação social.
A idéia de limite, por sua vez, está intimamente relacionada à noção de marca, pois
"cada grupo social, na escolha da sua marca, no sentido da teoria da identidade, determina ao mesmo tempo, as condições de sua perpetuidade como grupo. (...) A marca é, pois, (...) a própria condição da existência da sociedade. Ela a funda, confunde-se e é, justamente, este o aspecto da função que denominei de limite que o emprego da idéia de irredutibilidade transfere à teoria da identidade." (Ruben, 1988:90)
Sob estas perspectivas podemos dizer que os grupos sociais estabelecem suas marcas e seus limites, e que na medida em que os indivíduos as "introjetam" ("internalizam") sentir-se-ão integrantes dos mesmos, e que esses elementos, operacionalizados nas relações sociais, lhes permitirão diferenciarem-se do "outro" .
1.3 - Expansionismo Econômico e Antropologia
Na medida em que se estabelecia uma nova estruturação geo-política e econômica na Europa proveniente dos desdobramentos da Revolução Industrial, ao problema colocado pela existência de sociedades que tinham permanecido fora dos progressos da civilização, eram dadas duas respostas:
"[aquela] resposta que confia nas vantagens da civilização e que considera totalmente estranhas a ela própria todas essas formas de existência que estão situadas fora da história e da cultura [e aquela] ... que se expressa na nostalgia do antigo que ainda subsiste noutro lugar: o estado de felicidade do homem num ambiente protetor situa-se ao lado do "estado de natureza", enquanto que a infelicidade está do lado da civilização." (Laplantine, 1988:64)
Analisando a busca de solução para esta questão e suas implicações para a Antropologia, podemos estabelecer uma íntima vinculação entre a história da Antropologia e a história das relações entre as sociedades européias e as sociedades não européias - o Colonialismo. Desde o princípio, a etnologia participa de um certo contexto político e econômico, e o etnólogo tomou posições políticas em função da natureza de seu trabalho. Assim, podemos dizer que a ideologia colonial e a emergência da etnologia fazem parte de uma mesma configuração histórica e que existe entre estas duas ordens de fenômenos um jogo que condiciona o desenvolvimento de ambos.
Os desdobramentos da Revolução Industrial permitiram aos ingleses, durante a primeira metade do século XIX, um desenvolvimento tecnológico de tal monta que eles aumentaram consideravelmente a rapidez em sua produção assegurando a entrega de suas mercadorias para todas as partes do mundo. No entanto, durante o último quartel do século passado, ocorreu uma modificação importante na política econômica internacional. Através de tarifas protetoras estipuladas por países como Estados Unidos (após a Guerra Civil), na Rússia, etc. os industriais ingleses experimentaram dificuldades em colocar suas mercadorias no mercado internacional, pois seus fregueses já podiam fabricá-las atendendo suas próprias necessidades. Atrás dos muros tarifários, indústrias incipientes transformaram-se em indústrias "gigantescas".
A partir de 1870, assinala Huberman,
"entramos num período de trustes nos Estados Unidos, de cartéis na Alemanha. A concorrência foi substituída pelo monopólio. Os pequenos negociantes foram expulsos do mercado pelos grandes negócios, ou com ele se fundiu para um negócio ainda maior. Em toda parte houve crescimento, fusão, concentração - indústrias gigantescas se formavam, indústrias que buscavam o monopólio." (Huberman, 1976:252)
A indústria em grande escala e monopolista trouxe um aumento em sua capacidade industrial de produzir mercadorias maior do que a capacidade de consumo. Na medida em que os industriais tinham como perspectiva usar suas máquinas para produzir o máximo de mercadoria, era necessário encontrar mercados estrangeiros que absorvessem os excedentes da produção. Assim, as colônias se tornam uma saída para solucionar tal problema: ali seria despejado todo o excedente da produção industrial (Huberman, 1976).
Por outro lado, as colônias além de se constituírem um mercado para os artigos excedentes, tinham uma outra utilidade: a de suprir as indústrias com matéria prima, pois uma produção em grande escala necessita de grande suprimento de matérias primas.
"Borracha, petróleo, nitratos, açúcar, algodão, alimentos tropicais, minerais - essas, e muitas outras, eram as matérias primas necessárias ao capitalista do monopólio, em toda parte. Os donos das indústrias não queriam depender de outros países para as matérias primas que lhes eram essenciais. Desejavam controlar ou possuir as fontes dessas matérias primas." (Huberman, 1976:260)
Na medida em que a relação colonizador x colonizado vai se tornando mais complexa, a necessidade de um conhecimento mais específico sobre as populações não européias se torna mais premente. Para superar tal dificuldade, os países conquistados passam a ser povoados por um número considerável de emigrantes europeus - os administradores . Tal empreendimento possibilita o estabelecimento de uma rede de informações entre a colônia e a metrópole, informações estas que se constituirão, durante a segunda metade do século XIX, em objeto de estudo para os primeiros trabalhos de Antropologia.
O pensamento evolucionista predominante entre os antropólogos da época, na medida em que tomava como objeto de estudo as informações oriundas das ditas "sociedades primitivas", afirmava o atraso das mesmas, tendo como critérios aqueles estabelecidos pelo mundo ocidental. Na medida em que o progresso técnico e econômico do Ocidente era considerado a prova da evolução histórica (cujas características deveriam ser almejadas pelas sociedades primitivas), e os antropólogos, ao definirem seu objeto de estudo em áreas não ocidentalizadas identificando as vantagens da civilização a qual pertenciam; eles aparecem com o seu trabalho, como a justificativa teórica da prática colonialista.
Kuper (1978) ao escrever sobre o desenvolvimento da Antropologia na Inglaterra aponta a perspectiva que se tinha da disciplina quanto a sua operacionalização na relação metrópole x colônia:
"... o Coronel Sir Matthew Nathan, representando a African Society, contribuiu com esta avaliação: A aplicação do estudo difere alguma coisa na África Oriental e Ocidental, em comparação com a África do Sul. No primeiro caso, queremos saber tudo a respeito do nativo a fim de desenvolver sua capacidade ao máximo e aumentar gradualmente essa capacidade, de modo que, no futuro, nos auxiliem na administração do governo e nos negócios do seu próprio país. Na África do Sul, queremos que o estudo de Antropologia nos assista na solução dos onipresentes problemas nativos. Sempre achei, e penso ter dito algumas vezes que quanto mais encararmos o nativo da África do Sul como um problema científico, menos sentiremos que ele representa um perigo social. Com as nações ocorre o mesmo que com os indivíduos: tout savoier, tout pardonner." (Kuper, 1978:125)
Como a política britânica na África começou a mudar na década de 30, com a perspectiva de desenvolver as colônias econômica e administrativamente, o conhecimento antropológico desta população era imprescindível pois a interpenetração na vida africana de idéias e forças econômicas européias poderiam acarretar a desintegração da mesma e, conseqüentemente, impossibilitar as formas de cooperação entre esta e a civilização ocidental.
Não quero tratar aqui de retornar à discussão da vinculação da Antropologia com Colonialismo, ou situar a Antropologia como uma ideologia que oferece ao colonialismo uma oportunidade de sobrevivência, principalmente neste momento quando vemos reaparecer vários movimentos de xenofobia na Europa, caracterizados pela exclusão (Stolcke, 1993).
Mas gostaria de assinalar que tanto o Colonialismo quanto a Antropologia trazem - enquanto fenômenos sociais - questões relativas à alteridade e à identidade, e foi a partir da compreensão desta problemática - situada nos mais variados momentos históricos, políticos e econômicos - que pudemos perceber que o homem jamais entenderá a si mesmo enquanto houver um único povo ou raça subjugado - seja política, econômica ou socialmente.
1.4 - A Internacionalização do Capital e Identidade
A indústria monopolista desenvolvida nos finais do século XIX trouxe grandes lucros ao empresariado culminando com uma superacumulação de capital. Este capital excedente encontrou escoadouro nos países colonizados, pois tais países precisavam de estradas de ferro, eletricidade, gás, rodovias, etc. Por outro lado, a exportação do capital excedente também permitiu aos industriais um certo controle na exploração das matérias primas que eram encontradas nas "colônias". Este tipo de operação mercantil - a internacionalização do capital - possibilitou a constituição de grandes empresas de caráter transnacional implementadas, principalmente, depois da Segunda Guerra Mundial.
As empresas transnacionais e a internacionalização do capital são as principais características de uma nova ordem econômica internacional. Nas últimas décadas, anota Varis em 1986, estas empresas se tornaram tão poderosas que têm colocado num segundo plano outros sistemas econômicos internacionais.
Os problemas de ordem internacional e a força econômica destes empreendimentos junto aos países que não se incorporam neste sistema mundial foi observado pelo presidente chileno Salvador Allende num discurso proferido em 1972 nas Nações Unidas nos seguintes termos:
"Nos encontramos frente a uma confrontação direta entre as corporações transnacionais e estados. As corporações interferem nas decisões básicas políticas, econômicas e militares dos estados. As corporações são organizações que não dependem de estado algum e cujas atividades não são supervisionadas nem são responsáveis frente a nenhum parlamento ou qualquer outra instituição que represente o interesse coletivo. Em resumo, a base está sendo arrancada da estrutura política no mundo inteiro..." (apud in Varis, 1986:148)
Nesse sentido, podemos dizer que a expansão do capitalismo e o estabelecimento de uma ordem econômica de dimensões globais fortalecem, ainda mais, a soberania dos países desenvolvidos sobre os países periféricos (principalmente no que se refere ao domínio e desenvolvimento da tecnologia), de tal modo que aqueles determinam a inserção dos países periféricos dentro do mercado internacional.
Segundo Varis (1986), nos anos 70 as Nações Unidas tentaram colocar o problema transnacional sob controle, e para isso fundaram o Centro para Corporações Transnacionais em Nova Iorque. Apesar desta tentativa, não se têm encontrado soluções para definir as corporações transnacionais.
"Segundo os documentos das Nações Unidas, as corporações transnacionais se definem de acordo com quatro critérios: 1) o tamanho; 2) a natureza oligárquica; (...) 3) o grande número de sucursais estrangeiras e oficinas derivadas; 4) o fato de que este tipo de empresa é produto dos chamados países desenvolvidos." (Varis, 1986:149)
No entanto, o caráter colonizador e imperialista que tem marcado as atuais relações entre "países desenvolvidos" x "países periféricos" não se baseia exclusivamente no domínio da tecnologia e do capital, mas também no controle da informação e do marketing, o que estabelece novas bases para estas relações.
Hoje, o caráter transnacional do sistema se afirma através da reorganização eletrônica da informação e da comunicação. A distância e a dependência dos países periféricos das metrópoles se pauta pelos múltiplos usos de computadores e satélites na investigação científica; mediante o domínio da comunicação (vide CNN - empresa de telecomunicação norte-americana que teve exclusividade na transmissão da guerra Irã/Quait em 1991) e da difusão cultural; e pela informatização dos processos produtivos e do controle social.
Por outro lado, entre as várias e complexas conseqüências desse processo de internacionalização do capital, está a que diz respeito aos mecanismos de incorporação da periferia do mundo ao sistema mundial.
Para Barbero (1987), essas tecnologias representam uma nova etapa de um processo contínuo de aceleração da modernidade, processo do qual nenhum país pode estar ausente, sob pena de morte econômica e cultural.
Para este autor, tanto na racionalidade que materializam como em seu modo de operação, estas tecnologias colocam em crise, e em certos caso dissolvem a "ficção de identidade" que na maioria dos países latino-americanos se configuram como a "identidade nacional" (Barbero,1993).
Considerando tal situação Canclini nos diz:
"é muito distinto lutar por independentizar-se de um país colonialista no combate frontal com esse poder geograficamente definido a lutar por uma identidade própria dentro de um poder transnacional, difuso, completamente inter-relacionado e interpenetrado. Se trata do início de uma nova configuração cultural, de uma rearticulação das identidades a partir de uma racionalidade tecnológica que se constitui em motor de um projeto de nova sociedade." (Canclini apud Barbero, 1987:206)
No entanto, não há como resistir à expansão da economia capitalista pois, de um lado, como já foi apontado, a lógica capitalista penaliza as economias que não agem no sentido da maximização dos lucros. Ou seja, cedo ou tarde todas as regiões do globo serão incorporadas na divisão mundial do trabalho, numa posição central ou periférica. Ao lado desse processo econômico, temos o fato de que a incorporação de uma nova região periférica no sistema traz como conseqüência política imediata a submissão de suas estruturas tradicionais de poder a uma lógica colonial.
Além disso, esses processos (políticos, econômicos...) se enfatizam através de mecanismos culturais: os estados hegemônicos procuram garantir suas vantagens de produtores e legitimar seu papel no sistema inter-Estados pela imposição de sua dominação cultural sobre o mundo.
Nesse sentido, a repressão dos particularismos culturais e a criação de uma única cosmologia têm sido a moeda de troca da edificação das idéias de universalismo, progresso e civilização.
Universalismo, progresso e civilização, nos aponta Fortuna:
"são... uma construção cultural que acompanha, descreve e justifica a edificação de uma economia que hoje abrange todo o globo. São construções culturais que se mostram unificadoras face ao global e repressoras e distintivas face aos elementos identitários particulares." (Fortuna, 1991:272)
Em função destas tendências, aumenta a dificuldade individual de situar e definir uma identidade e uma subjetividade pessoais. Somos universalistas ou particularistas? Guiados por um espírito global ou fiéis a uma crença identitária de interconhecimentos? podemos dizer que vivemos num mundo em que o particular se universaliza e o universal se particulariza? O nosso local pode ser universal e o universal pode ser local, na certeza que nem um nem o outro vivem sem o seu oposto?
Tais perspectivas têm colocado alguns problemas para as etnografias contemporâneas, pois as mudanças que estão ocorrendo nas relações de produção em nível internacional, tornaram cada vez mais visível a trama das relações mundiais que perpassa os sistemas culturais e políticos. Com efeito, os processos mundiais colocam em relação esferas culturais heterogêneas - tradições indígenas e a cultura de massas, as religiões e a produção científica, etc. - criando circuitos mundiais de circulação de idéias e de quadros que aproximam lógicas diferenciadas .
Os estudos antropológicos têm mostrado que o fenômeno da mundialização das culturas acaba afetando um dos alicerces fundamentais da metodologia antropológica pois retira o distanciamento geográfico e cultural: a "garantia de objetividade" (Lèvi-Strauss, 1975). Assim, a compreensão dos fenômenos sociais, na medida em que assumem proporções internacionais, nos obrigam a fazer "explodir" os universos etnográficos. Fica cada vez mais evidente que a investigação antropológica não pode mais circunscrever-se a universos de observação isolados e microscópicos.
Uma Antropologia que se proponha a levar em conta os processos de mundialização precisa enfrentar-se desde logo com o problema do recorte etnográfico. Por um lado, é preciso definir a melhor posição para analisar a sociedade mundial (do ponto de vista das nações dominantes? de classe? das nações dependentes?), a opção por qualquer referência sempre será limitada. Assim, devemos abarcar o mundo a partir de vários pontos de vista ao mesmo tempo. Por outro lado, essa complicada teia de relações que articula o nacional e o mundial, nos coloca o problema da definição dos limites da observação antropológica: é preciso determinar o ponto de vista que equacione as questões que nos propomos investigar: como observar ao mesmo tempo os processos mundiais e locais?; o que privilegiar, a leitura dos documentos, ou a fala dos atores e suas trajetórias?
A partir de tais perspectivas, consideraremos neste estudo que a identidade - de uma pessoa, de um grupo ou até mesmo de uma sociedade inteira - se produz simultaneamente em muitos locais de atividades diferentes, por muitos agentes diferentes e por muitas finalidades diferentes.
Ela - a identidade - mantém um caráter próprio, individual, vivenciado por indivíduos e grupos, mas se projeta e se confronta com uma realidade que extrapola os limites da realidade em que foi circunscrita - casa, bairro, cidade, estado, nação - tomando dimensões globais. É o que desenvolveremos mais adiante, ao tratarmos mais especificamente da construção da identidade de jovens sob situação de mudança social.
2 - Identidade: Uma Possibilidade Interdisciplinar
O conceito de identidade, por se caracterizar como um objeto que diz respeito a várias disciplinas, situando-se e, por vezes, se confundindo entre suas fronteiras, tem assumido n facetas. Nesse sentido, sem a pretensão de fazer um levantamento exaustivo sobre o tema, discutirei alguns pontos que nos possibilitarão operacionalizar o conceito para uma posterior discussão sobre a identidade do adolescente num processo de modernização.
De uma maneira geral, podemos dizer que a Psicologia centra-se, quando trata da questão da identidade, em sua expressão individual, através da análise de atitudes, comportamentos, sentimentos, etc. A psicanálise segue esta mesma direção considerando, além disso, a influência de fatores biológicos - implícitos ao desenvolvimento dos indivíduos - na formação da identidade.
A Antropologia, a Sociologia e a Psicologia Social, abordam o tema da identidade tendo como ponto de partida as relações sociais, considerando as condições econômicas, políticas e culturais que circunscrevem a sua construção.
Apesar da variedade das "entradas" relativas a esta problemática todas as abordagens que têm adotado o conceito de identidade partem de seu princípio iminentemente relacional, ou seja, a construção de identidades alimenta-se de alteridades.
2.1 - A Psicologia e a Psicanálise
Entre os psicólogos clínicos e os psicanalistas, o conceito de identidade se propõe a explicar o sentimento pessoal e a consciência de um "eu", de um sujeito único, de uma realidade individual, o que implica, ao mesmo tempo, o reconhecimento individual dessa exclusividade.
Os acontecimentos da vida de uma pessoa - desde a mais tenra idade - produzem sobre ela uma imagem de si mesma, uma imagem que se constrói a partir das relações que ela estabelece com os outros - pais, família, parentela, amigos, ou seja:
"é um processo de crescente diferenciação e torna-se ainda mais abrangente a medida que o indivíduo vai ganhando cada vez maior consciência de um círculo em constante ampliação de outros que são significativos para ele." (Erikson, 1976a:21)
Erikson, em função de sua especificidade profissional - psicanalista - e, no que se refere ao processo de construção da identidade, interessa-se principalmente pela
"continuidade genética de tal representação do eu, uma continuidade que deve ser atribuída, certamente ao trabalho do ego. Nenhuma outra agência interna poderia realizar a acentuação seletiva de identificações significativas durante toda a infância e a gradual integração de imagens do eu que culmina num sentimento de identidade." (Erikson, 1976a:210)
O que podemos abstrair desta citação é que Erikson considera a identidade enquanto um continuum, e que ela se estrutura e se reestrutura no decorrer da vida do sujeito. O "motor" desse processo é, por um lado, o desenvolvimento biológico e, por outro, as relações sociais que se estabelecem no decorrer de sua vida .
Erikson, considerando a questão em termos psicológicos, afirma que a
"formação da identidade emprega um processo de reflexão e observação simultâneas, um processo que ocorre em todos os níveis do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz daquilo que percebe ser a maneira como outros o julgam, em comparação com eles próprios e com a tipologia que é significativa para eles; enquanto que ele julga a maneira pela qual eles o julgam, à luz do modo como se percebe a si próprio em comparação com os demais e com os tipos que se tornaram importantes para ele. Este processo é, ... em sua maior parte inconsciente." (Erikson, 1976a:21).
Em tal processo estão implicados elementos de ordem psicológica, social e histórica. Estes, ao serem considerados por Erikson, levam-no a abordar a identidade como uma espécie de "relatividade social" (Erikson, 1976a:21).
Em suas considerações, Erikson salienta que o ser humano tem uma necessidade de sentir-se único, necessidade esta que provém do esforço para manter a continuidade e a uniformidade da experiência - o seu estilo pessoal. Além disso, o indivíduo só desenvolve este sentimento de ser único e de possuir um destino próprio e singular dentro de sua cultura.
A cultura na medida em que proporciona os cuidados e a consistência necessários para o desenvolvimento do "ego", também fornece um conjunto de rótulos e diretrizes que permite ao "ego" estabelecer sua identidade durante o processo de desenvolvimento do sujeito.
Assim,
"uma criança, ao crescer, deve derivar um sentimento vitalizador da realidade a partir da consciência de que o seu modo individual de dominar a experiência, a síntese de seu ego, é uma variante bem sucedida de uma identidade grupal, e está de acordo com o seu espaço-temporal e plano vital." (Erikson, 1976a:48 - assinalamentos nossos)
É a vida social, portanto, que proporciona o quadro das trocas afetivas que, desde o começo da vida da criança, vão construindo sua identidade através de estruturas culturais (como por exemplo a família) e dos mecanismos que toda sociedade cria para codificar e controlar o cotidiano da vida dos seus membros (como por exemplo a linguagem). Ou seja, há uma transferência do "todo social" para cada ser do grupo, desde o começo da vida do indivíduo no grupo - uma identidade grupal. Uma identidade que é dele, como uma pessoa, mas que é também a do grupo, através dele.
Nesse sentido, Erikson sustenta que as dimensões da identidade se estabelecem num processo localizado no indivíduo e, também, no núcleo central de sua cultura; e que a análise de tal processo nos possibilita caracterizar essas duas identidades - a do indivíduo e a do grupo (ou sociedade em que o indivíduo está inserido).
2.2 - As Ciências Sociais
Os psicólogos sociais, sociólogos e antropólogos interessam-se - na questão da identidade - pela tessitura das várias formas de relações entre pessoas. Importa compreender a estrutura e o processo das diferentes trocas de bens materiais, de serviços e de símbolos entre diversas categorias de sujeitos e o modo como acontecem aí ações e reações de atribuição de nomes, de títulos, de determinação de semelhanças e diferenças que tanto se manifestam na maneira como as pessoas vivem os códigos de seus contatos umas com as outras, quanto na forma pela qual representam os seus relacionamentos e o reconhecimento de quem são, a partir deles. Assim, interessa a esses pesquisadores os mecanismos sócio-culturais que traçam para os indivíduos os caminhos para a construção de sua identidade.
Nossa experiência pessoal confirma, entretanto, o quanto é difícil separar a dimensão individual da construção e o exercício cotidiano da identidade de sua dimensão social; pois estamos num mundo que, por um lado, predetermina as "posições" que nós podemos ser e nos relacionar; e, por outro lado, estabelece as categorias através das quais nós nos identificamos (tanto para nós mesmos como socialmente): João, psicólogo, branco, alfabetizado, etc... Tais identificações são, por sua vez, assumidas ao longo da história dos indivíduos em sociedade, e durante o processo de desenvolvimento dos mesmos, assumem várias conotações, tanto ao nível individual como social.
Cabe assinalar, no entanto, que a diversidade de posições assumidas pelos indivíduos em sua vida adulta não implica uma fragmentação de sua estrutura egóica , de seu "eu", como pode sugerir o parágrafo anterior, pois o adulto consegue estabelecer uma continuidade em sua experiência tanto no plano individual como social. Como veremos oportunamente, o mesmo já não acontece na adolescência, momento em que os indivíduos freqüentemente estão sujeitos a crises devido às dificuldades inerentes à sua inserção no universo do adulto (Erikson, 1976a).
Com o objetivo de compreender como os homens constroem as idéias que fazem dos homens pessoas de seu mundo, Mauss (1974a) traçou a história social da noção de pessoa e da noção de eu. Neste trabalho ele mostra as maneiras pelas quais tais conceitos se desenvolveram na vida dos homens em sociedade, segundo seus direitos, religiões, costumes, etc.. Apesar de deixar de lado os aspectos lingüístico e psicológico da questão, ele leva em consideração o fato - cuja dimensão é psicológica - de que
"jamais houve ser humano que não tenha tido o sentido, não apenas de seu corpo, como também de sua individualidade a um tempo espiritual e corporal." (Mauss, 1974a:211)
A noção de pessoa, como se pode abstrair do trabalho de Mauss, não é universal. Tal idéia é uma construção cultural e seu sentido varia de sociedade para sociedade; de época para época, na história de uma mesma sociedade. Tal construção tem como ponto de partida as maneiras pelas quais os homens pensam sobre suas relações - homem x natureza, homem x homem, mulher x mulher, mulher x criança, etc. - o que lhes possibilita apreenderem-se como um ser total.
A evidência de que a "pessoa" - o "si mesmo", o "self" - é uma lenta construção da sociedade sobre seus membros, através de um ensino-aprendizagem de formas de sentimento, pensamento e ação, permitem a H. G. Mead (1970), sob uma perspectiva fenomenológica, concluir que o sujeito transformado "em pessoa", "ele mesmo" (o "self"), é uma expressão individualizada da estrutura de símbolos do mundo social em que vive.
"The self, as that which can be an object to itself, is essentially a social structure and it arises in social experience. After a self has arisen, it in a certain sense provides for itself its social experiences, and so we can conceive of an absolutely solitary self. But it is impossible to conceive of self arising outside social experience" (Mead, 1970:43)
Em qualquer sociedade, a noção de pessoa surge e se desenvolve a partir das representações do seres humanos no grupo social. Tais representações, Conforme Durkheim, na medida em que são coletivas,
"são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para as produzir, uma multidão de espíritos diversos associaram, misturaram, combinaram suas idéias e seus sentimentos, longas séries de gerações acumularam aí sua experiência e sua sabedoria". (Durkheim, 1988:158)
Essas representações coletivas, enquanto transcendem o "ser individual", exprimem uma realidade mais alta, a saber, a da própria sociedade. É uma realidade de ordem intelectual e moral, um ser social, irredutível - em sua totalidade - às consciências individuais que, por sua vez, em sua prática cotidiana, não poderiam apreendê-la senão fragmentariamente.
Assim, indivíduos que por serem capazes de viver segundo os padrões de uma cultura são, ao longo de sua história, considerados como pessoas pertencentes a esta sociedade. Isto pressupõe que tais indivíduos, ao se inserirem numa sociedade, assumem valores, sentimentos, etc. consagrados por tal grupo social, o que lhes permite identificarem-se - e serem identificados - como elementos de tal ou tal sociedade.
Em seu trabalho sobre técnicas corporais, Mauss (1974b) aponta uma relação estreita entre a sociedade ou grupo e as maneiras pelas quais os homens tratam os seus corpos, de modo que podemos reconhecer o andar americano, os gestos italianos, etc., ou seja, cada sociedade tem hábitos próprios. Tal noção - a de técnica corporal - nos parece útil pois ela viabiliza o estabelecimento de uma relação entre a construção da identidade e o grupo social.
Mauss, após enumerar algumas técnicas corporais, comenta:
"O que ressalta com muita clareza destas, é que estamos em toda parte em presença de montagens fisio-psico-sociológicas de várias séries de atos. Esses atos são mais ou menos habituais e mais ou menos antigos na vida do indivíduo e na história da sociedade ... uma das razões pelas quais essas séries podem ser montadas mais facilmente no indivíduo é, precisamente, o fato de serem montadas pela e para a autoridade social." (Mauss, 1974b:231 - assinalamentos nossos)
Dessa forma, na medida em que as técnicas corporais se caracterizam como as maneiras com que os homens servem-se de seus corpos - sociedade por sociedade - de maneira tradicional, os fatos de educação dominam pois, em toda sociedade, todos sabem e devem saber ou aprender aquilo que devem fazer em todas as situações .
"A noção de educação podia sobrepor-se à noção de imitação... O que se passa é uma imitação prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos que obtiveram êxito e que ela viu serem bem sucedidos em pessoas em quem confia e que têm autoridade sobre ela. O ato impõe-se de fora, do alto, ainda que seja um ato exclusivamente biológico e concernente ao corpo."(Mauss, 1974b:215)
Na perspectiva de Mauss, é esta noção de prestígio que torna o ato ordenado, autorizado e aprovado em relação ao indivíduo imitador; é através dela que podemos encontrar todo o elemento social implícito nas técnicas corporais, assim como o seu aspecto relacional. Já no ato imitador que se segue, encontramos os elementos psicológico e biológico.
Sendo assim, as técnicas corporais variam não simplesmente com os indivíduos, mas sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, com os prestígios. Considerando que cada sociedade tem hábitos corporais que lhe são próprios, podemos dizer que os indivíduos, ao internalizá-los através do processo educacional, constrói sua identidade, tanto ao nível pessoal como social - concomitantemente.
2.2.1 - A Identidade Contrastiva
A partir de uma aproximação com a psicanálise e com a psicologia, Roberto Cardoso de Oliveira (1976) desenvolveu o conceito de "identidade contrastiva", com o intuito de estudar as relações interétnicas que se processavam no Brasil na década de 60.
Ao discutirmos as perspectivas e os desdobramentos da teoria de Erikson sobre identidade, afirmamos que as dimensões da identidade se estabelecem num processo localizado no indivíduo e, também, no núcleo central de sua cultura. Isto significa dizer que a noção de identidade implica duas dimensões: a pessoal (ou individual) e a social (ou coletiva), o que nos possibilita, como aponta Cardoso de Oliveira, estabelecermos uma aproximação entre a pesquisa antropológica com a pesquisa psicológica.
Para Cardoso de Oliveira, a identidade social se constrói a partir das atualizações do processo de identificação - o que a situa numa dimensão histórica - e envolve a noção de grupo, particularmente a de grupo social. Porém
"a identidade social não se descarta da identidade pessoal, pois esta também de algum modo, é um reflexo daquela. (...) O conceito de identidade pessoal e social possui um conteúdo marcadamente reflexivo ou comunicativo, posto que supõe relações sociais tanto quanto um código de categorias destinado a orientar o desenvolvimento destas relações." (Cardoso de Oliveira, 1976:5)
No âmbito das relações interétnicas, Cardoso de Oliveira assinala que este código tende a se exprimir como um sistema de oposições ou contrastes, o que lhe possibilitou a elaboração da noção de identidade contrastiva.
"A identidade contrastiva parece se constituir na essência da identidade étnica, i.e., à base da qual esta se define. Implica a afirmação do nós diante dos outros. (...) É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente. No caso de identidade étnica ela se afirma negando a outra identidade, etnocentricamente por ela visualizada."(Cardoso de Oliveira, 1976:5/6)
Cabe assinalar que para este autor a identidade étnica se funda numa auto-apreensão de si em situação, e a peculiaridade da situação que a engendra é a situação de contato interétnico, sobretudo quando esta se caracteriza como fricção interétnica .
Sob esta perspectiva, um indivíduo ou um grupo afirma sua identidade contrastando-se com um grupo de referência, tenha ele um caráter tribal ou nacional. Na medida em que uma tal consciência etnocêntrica se desenvolve em larga escala, ela assumirá os contornos de uma ideologia .
Cardoso de Oliveira, concordando com Poulantzas, considera que a ideologia consiste em um conjunto de representações, valores, crenças com uma coerência relativa.
"A ideologia está a tal ponto presente em todas as atividades dos agentes, que não pode diferenciar-se de sua experiência vivida. Nessa medida as ideologias fixam em um universo relativamente coerente não só uma relação real como também uma relação imaginária, isto é, uma relação real dos homens com suas condições de existência investida em uma relação imaginária." (Poulantzas apud Cardoso de Oliveira, 1976:40)
Assim, a ideologia busca simplesmente inserir os agentes, assim como suas atividades práticas, numa determinada estrutura social, construindo num plano imaginário um discurso que serve de horizonte ao "vivido" dos agentes, dando forma as suas representações segundo as relações reais e inserindo-as na unidade das relações sociais.
Nesse sentido, o caráter contrastivo implícito na identidade étnica - na medida em que "nega a outra identidade" - nos remete a uma concepção "nativa" de si (individual), circunscrita por valores e atributos devidamente articulados (coletivamente), tendentes a reconstruir no plano do imaginário (portanto, ideologicamente) a experiência vivida do contato interétnico.
No entanto, vale ressaltar que Cardoso de Oliveira considera que as representações coletivas, as ideologias ou as identidades étnicas somente serão inteligíveis na medida em que forem consideradas dentro do sistema de relações sociais que lhes deram origem. "Nisto talvez esteja a peculiaridade de um conceito antropológico de identidade." (Cardoso de Oliveira, 1976:51)
2.2.2 - Identidade e "Habitus"
Partindo do princípio de que a identidade assume duas dimensões: a coletiva (seja numa perspectiva social, como é o caso das técnicas corporais, seja numa perspectiva ideológica, como é o caso da identidade contrastiva), e a individual, na medida em que o indivíduo percebe-se como tal, podemos vislumbrar a questão da identidade como a expressão da relação "posição social x habitus" dos indivíduos e dos grupos sociais, conceitos estes elaborados por Pierre Bourdieu (1983a).
Apesar de Bourdieu não trabalhar especificamente com o tema da identidade, suas teorias da ação prática e do campo social nos possibilitam dele nos aproximar. Para tanto, tomaremos como ponto de partida o conceito de habitus elaborado pelos escolásticos e reinterpretado por ele (1983a).
O problema central dos estudos de Bourdieu gira em torno da mediação entre o agente social e a sociedade, questão central na discussão entre dois tipos de conhecimentos: o objetivismo e o subjetivismo. Para superar tal embate, Bourdieu nos sugere um outro tipo de conhecimento - articulando dialeticamente o ator social e a estrutura social: o conhecimento praxiológico.
Do ponto de vista sociológico, a controvérsia objetivismo x subjetivismo é traduzida por Bourdieu pela oposição Durkheim x Weber. Por um lado, o pensamento weberiano, tendo como ponto de partida o sujeito, propõe uma sociologia da compreensão. De outro lado, a sociologia de Durkheim, reifica a sociedade, uma vez que a apreende como "coisa" (Durkheim, 1977).
Com efeito, a idéia de consciência coletiva supõe, para Durkheim, a existência de uma essência transcendental aos indivíduos e que os enquadra coercitivamente na dimensão da norma. A ação social é, assim, deduzida a partir de um sistema objetivo de representações que se encontra fora do alcance da consciência do ator social. Nesse sentido, as instituições sociais - família, escola, etc. - teriam um papel fundamental para a sociedade enquanto constituidoras do ser social e, enquanto tal, possibilitam a manutenção e a reprodução da ordem social. O individual é apreendido, em suma, como resíduo do elemento coletivo (tal perspectiva é claramente trabalhada por Mauss ao estudar as técnicas corporais).
A análise weberiana apresenta-se como contrapartida das posições de Durkheim, retomando - a partir da sociologia da compreensão - o pólo por ele recusado. Para tanto, Weber vai definir seu objeto de estudo - os fenômenos sociais - tendo como ponto de partida as condutas individuais.
"Por acción debe entenderse una conducta humana ... siempre que el sujeto o los sujetos de la acción enlacen a ella un sentido subjetivo. La acción social, por tanto, es una acción en donde el sentido mentado por su sujeto ou sujetos esta referido a la conducta de otros, orientándose por ésta en su desarollo." (Weber, 1974:5 - assinalamentos no original)
Para Weber não existe um mundo objetivo. A objetividade social só pode ser apreendida por meio das ações individuais; caracterizando-se através de uma rede de intersubjetividade enquanto resultado de ações dirigidas para o outro, cujo significado é determinado na medida em que este outro compartilha o mesmo mundo social no qual tais ações se desenrolam (Weber, 1986).
Bourdieu, na medida em que critica o objetivismo, se defronta com essa dimensão subjetiva da ação social, proposta pela análise weberiana. A ação, portanto, não é mais considerada como simples execução, mas sim como núcleo de significação do mundo; a sociedade não existe como totalidade, mas como intersubjetividade que tem origem na ação do sujeito .
Entretanto, apesar de dirigir críticas ao objetivismo, a praxiologia não pretende simplesmente rejeitar o conhecimento objetivista mas superá-lo pois, como afirma Bourdieu:
"... o conhecimento praxiológico tem como objeto não somente o sistema de relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e tendem a reproduzi-las." (Bourdieu, 1983a:47).
Para superar o embate objetivismo x subjetivismo, e responder ao problema da mediação entre o agente social e a sociedade, Bourdieu desenvolve o conceito de habitus proposto pelos escolásticos. Para ele:
"As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio ... que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente reguladas e regulares sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente." (Bourdieu, 1983a:60-61)
O habitus está no princípio do encadeamento das ações - orientando-as e conformando-as - organizando-as objetivamente; mas na medida em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram.
"Cada agente, quer ele saiba ou não, quer ele queira ou não, é produtor e reprodutor do sentido objetivo: porque suas ações e suas obras são o produto de um modus operandi do qual ele não é o produtor e do qual não tem domínio consciente, encerram uma intenção objetiva, como diz a escolástica, que ultrapassa sempre suas intenções conscientes." (Bourdieu, 1983a:72)
A adequação entre as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo é assegurada através da interiorização - pelos atores - dos valores, normas e princípios sociais. A possibilidade de uma ação se exercer se encontra, assim, objetivamente estruturada, o que por sua vez não significa uma obediência às regras - o que nos remeteria ao pensamento de Durkheim -, ou a uma previsão consciente das metas a serem atingidas - o que nos remeteria ao pensamento de Weber. Ou seja, Bourdieu propõe uma teoria da prática na qual as ações sociais são realizadas concretamente pelos indivíduos, mas as possibilidades de elas se efetivarem são estruturadas objetivamente no interior da sociedade.
Ao considerar que a prática se traduz por uma "estrutura estruturada", predisposta a funcionar como uma "estrutura estruturante", fica claro que o conceito de habitus não se aplica somente à internalização de normas e valores sociais, mas incluem os sistemas de classificação que preexistem às representações sociais, ou seja, atuam na esfera do simbólico - o mundo social é tratado como um mundo lingüístico e cognitivo, cuja totalidade é mantida por relacionamentos intersubjetivos, dinâmicos e não-mecânicos.
"A prática é ... necessária e relativamente autônoma em relação à situação considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o produto da relação dialética entre uma situação e o habitus ... que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e ações - e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por estes resultados." (Bourdieu, 1983a:65)
O habitus se sustenta, pois, através de esquemas generativos que, por um lado, antecedem e orientam a ação e, por outro, estão na origem de outros esquemas generativos, que presidem a apreensão do mundo enquanto conhecimento.
O habitus se apresenta, portanto, em duas dimensões: como social e como individual - refere-se a um grupo ou a uma classe, mas também a um elemento individual. O processo de interiorização implica sempre a internalização da objetividade, o que ocorre de forma subjetiva, mas que não pertence exclusivamente ao domínio da individualidade.
"Dentro desta perspectiva, a história de vida de um indivíduo se desvenda como uma variante estrutural do habitus de seu grupo ou de sua classe, o estilo pessoal aparece como um desvio codificado em relação ao estilo de uma época, uma classe ou um grupo social." (Ortiz, 1983:18)
O trabalho pedagógico (da família, da escola, etc...), portanto, vai além da inserção dos indivíduos num sistema moral ou ideológico pois tem como função essencial administrar o processo de inculcação das próprias categorias que presidem a interpretação do real.
Na medida em que tais categorias são históricas e sociais, elas reproduzem o arbitrário social, ou seja, as relações hierárquicas da sociedade global. Assim, o controle e a dominação, por parte da sociedade, é dupla: primeiro enquanto discurso ideológico, segundo, enquanto sistema lógico que ordena a representação social .
Bourdieu, paralelamente à noção de habitus, desenvolve a noção de campo, que se caracteriza como um espaço social onde se expressam relações de poder político. Ele aborda o universo social como um espaço, com diversas dimensões, construído nas bases dos princípios de diferenciação ou de distribuição constituídas por uma série de propriedades ativas (habitus), conferindo força e poder dentro dessas dimensões. Agentes e grupos de agentes são, portanto, definidos por sua posição relativa dentro desse espaço. Espaço esse que se estrutura a partir da distribuição desigual de um "capital".
"A posição de um determinado agente no espaço social pode assim ser definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, quer dizer, na distribuição dos poderes que atuam em cada um deles, seja, sobretudo, o capital econômico - nas suas diferentes espécies -, o capital cultural e o capital social e também o capital simbólico, geralmente chamado prestígio, reputação, fama, etc., que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital." (Bourdieu, 1989:134/135)
A partir de tal perspectiva, pode-se conceber o espaço social como um campo de forças cujo conjunto de relações de poder impõe-se a todos que nele entram. A posição de um indivíduo neste espaço é determinada pela quantidade de volume de capital (econômico, cultural, social e simbólico) e de acordo com a composição de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo desses diferentes bens sociais dentro da totalidade social: "O conhecimento da posição ocupada neste espaço comporta uma informação sobre as propriedades intrínsecas (condição) e relacionais (posição) dos agentes." (Bourdieu, 1989:136) .
Assim, as relações de poder objetivas tendem a se reproduzir na visão do mundo social - cosmovisão - contribuindo para a permanência dessas relações; isto assim é porque os princípios estruturantes da visão do mundo estão enraizados nas estruturas objetivas do mundo social (elementos constituintes do "habitus"). Ou seja, a prática, conjunção do habitus e da situação social, ocorre no seio de um espaço que transcende as relações entre os atores. Sendo assim, a eficácia da ação se encontra circunscrita pela relação indivíduo x capital social.
Para Bourdieu, a análise do campo social deve integrar não só a representação que os agentes têm do mundo social, mas também a contribuição que eles dão para a construção da visão desse mundo e, assim, para a própria construção desse mundo, por meio do trabalho de representação que continuamente realizam para imporem a sua visão de mundo ou a visão de sua própria posição nesse mundo, a visão da sua identidade social.
Nesse sentido, as identidades não são a reunião de atributos dados para todo o sempre. São realidades vivas, em permanente processo de elaboração, que se desdobram nas coordenadas dos processos cognitivos e de significação simbólica, nas definições axiológicas e normativas, tendo como pano de fundo as relações de poder entre grupos e atores coletivos.
A partir destas considerações pode-se dizer que o conhecimento do mundo social e das categorias de sua apreensão se tornam, por excelência, objetos de luta política. O sentido da posição ocupada no espaço social está, portanto, no domínio prático da estrutura social no seu conjunto.
Assim, a capacidade de fazer existir em estado explícito, de tornar público, quer dizer, objetivado, visível, dizível (e até mesmo oficial), aquilo que está em estado de experiência individual (mal estar, ansiedade, expectação, inquietação, etc.) representa um considerável poder social, o de constituir os grupos: constituindo o senso comum, o consenso explícito, de qualquer grupo. De fato, esse trabalho de categorização, quer dizer, de explicitação e de classificação, faz-se sem interrupção, a cada momento da existência corrente, a propósito das lutas em que se opõem os agentes acerca do sentido do mundo social e da sua posição nesse mundo, da sua identidade social.
Com os progressos da diferenciação do mundo social e a constituição de campos relativamente autônomos, o trabalho de produção do sentido faz-se tanto no seio das lutas no campo de produção cultural como por meio delas mesmas (e sobretudo no campo político): ele é a função própria, o interesse específico dos produtores profissionais de representações objetivadas do mundo social, ou melhor, de métodos de objetivação (e, conseqüentemente de subjetivação).
Se o modo de percepção legítimo é objeto de lutas tão importantes, é porque, por um lado, a passagem do implícito ao explícito nada tem de automático, pois a mesma experiência do social pode ser reconhecida em expressões muito diferentes e, porque, as diferenças objetivas mais acentuadas podem estar dissimuladas por diferenças mais imediatamente visíveis.
"Se é verdade que existem na objetividade das configurações perceptivas, Gestalten sociais, e que a proximidade das condições, portanto, das atitudes, tende a retraduzir-se em ligações e em reagrupamentos duradoiros das unidades sociais imediatamente perceptíveis, tais como regiões ou bairros socialmente distintos ..., também é verdade que só há diferença socialmente conhecida e reconhecida para um sujeito capaz não só de perceber as diferenças, mas também de as reconhecer como significantes, interessantes, quer dizer, para um sujeito dotado da aptidão e da inclinação para fazer as diferenças que são tidas por significativas no universo social considerado. (Bourdieu, 1989, 143/144)
Dentro desta perspectiva resgata-se para o mundo social, suas características de sistema simbólico que, à maneira de um sistema de fonemas, se organiza segundo a lógica da diferença, constituído assim em distinção significante. O espaço social e as diferenças que nele se desenham "espontaneamente" tendem a funcionar simbolicamente como espaço dos estilos de vida, isto é, de grupos caracterizados por estilos de vida diferentes.
A partir das idéias esboçadas acima podemos dizer que 1) apesar da identidade se expressar como um sentimento, ou uma sensação de um "eu" , sua construção se efetiva na relação que o indivíduo estabelece com seu meio social - família, escola, amigos, etc... 2) a identidade é circunscrita pelo meio social, ou seja, este estabelece alguns parâmetros a partir dos quais e na medida em que há um processo de internalização dos mesmos, os indivíduos se sentem ou não integrados a ele; 3) este meio oferece as condições objetivas para que o indivíduo possa desenvolver sua identidade tanto pessoal como social, possibilitando-lhe reinterpretar e reinventar (a nível de significados) a realidade a que está sujeito, 4) a identidade se constrói tendo como referência a posição social dos indivíduos e o habitus a ela correspondente, pois, na medida em que o acesso aos bens materiais e culturais é diferenciado em função da hierarquia social, a identidade se estabelece a partir do campo onde os agentes sociais se posicionam e, enfim que, 5) na medida em que a identidade se circunscreve pela posição que o indivíduo ocupa no espaço social, ela também é circunscrita a partir das lutas em que se opõem os agentes acerca do sentido do mundo social e da sua posição nesse mundo, da sua identidade social, ou seja, as imagens do mundo e as identidades se estabelecem enquanto propriedades de coletividades e são o resultado - sempre provisório - das relações entre diversas subjetividades - individuais/coletivas - as quais determinam padrões cognitivos, axiológicos e normativos.
3 - Adolescência e Identidade
Quem já não ouviu falar da "crise da adolescência"? Em nossa sociedade ela é caracterizada como um momento de grandes transformações (tanto a nível biológico como social) na vida do ser humano - momento em que o jovem estabelece sua identidade psicossocial.
Várias são as disciplinas que estudam este período do desenvolvimento humano: a psicologia e a psicanálise tentam compreender o significado desta "crise do crescimento" (Arminda Aberastury, 1980; Arminda Aberastury & Mauricio Knobel, 1981; Erikson, 1976a). A psicologia social e as ciências sociais lançam luzes sobre o problema destacando a importância dos fatores sócio-culturais na determinação fenomenológica expressiva desta etapa da vida (Mead, 1961; Brito, 1968; Velho, 1990).
Tendo em vista que a adolescência é um tema central para nosso estudo: a situação dos jovens numa sociedade em mudança, apresentaremos algumas idéias desenvolvidas por estas disciplinas, tentando levantar alguns pontos que nos permitirão abordar tal situação posteriormente.
3.1 - A Abordagem "Psi"
Literalmente adolescência significa a condição ou processo de crescimento. O termo se aplica especificamente ao período de transição entre a puberdade e o estado adulto do desenvolvimento humano, o que varia de sociedade para sociedade assumindo configurações específicas, assim como varia o reconhecimento da condição adulta que se atribui aos indivíduos.
Apesar da psicologia e da psicanálise reconhecerem a relevância dos estudos desenvolvidos pelas ciências sociais na compreensão da adolescência, a elas lhes são dirigidas algumas críticas (Knobel, 1981) pois a predominância de critérios diferenciais de caráter social, sociocultural, econômico, etc..., se desvia, pelo menos em parte, do problema básico fundamental da circunstância evolutiva que significa esta etapa.
Para os psicanalistas/psicólogos (que trabalham sob uma perspectiva psicanalítica) a base de todo o processo de construção da identidade do adolescente está situada nas mudanças corporais que este indivíduo "sofre" . Tal situação, para estes teóricos, obriga o indivíduo a reformular conceitos que tem a respeito de si mesmo, o que o leva a abandonar sua auto-imagem infantil e a projetar-se no futuro de sua vida adulta.
Aberastury (1980), abordando a questão a partir da psicanálise, salienta que as modificações psicológicas que se produzem neste período - que são correlatos de modificações corporais - levam o adolescente a estabelecer um nova relação com os pais e com o mundo, o que só se torna possível quando elabora o conflito pela perda do corpo de criança, ou seja, sua identidade infantil.
"Todas as modificações corporais incontroláveis, como os imperativos do mundo externo, exigem do adolescente novas pautas de convivência, são vividas ao princípio como uma invasão. Isto o leva, como defesa, a reter muitos dos ganhos infantis, ainda que também coexistam o prazer e o afã de realmente ocupar seu novo "status"... Estas mudanças, nas quais perde seu esquema corporal e sua identidade de criança, implicam a busca de uma nova identidade, que se vai construindo em um plano consciente e inconsciente..." (Aberastury, 1980:25)
Durante este processo, o adolescente passa por desequilíbrios e instabilidades extremas. Os adolescentes que convivem em nosso meio cultural - as sociedades complexas (Velho, 1987a, Velho & Viveiros de Castro, 1978), mostram-nos períodos de elação, de introversão, alternando com audácia, timidez, descoordenação, desinteresse ou apatia, etc.; características que podem ser sucedidas ou concomitantes com conflitos afetivos, crises religiosas, intelectualizações e postulações filosóficas, ascetismo, condutas sexuais dirigidas para o hetero-erotismo até a homossexualidade ocasional . Tais características do comportamento adolescente levaram Knobel (1981) a considerá-las como uma síndrome: a "síndrome da adolescência normal" .
É preciso destacar que, para os psicanalistas, o poder chegar a utilizar a genitalidade na procriação determina uma modificação essencial no processo de conquista da identidade adulta o que engendra a turbulência e a instabilidade da identidade adolescente.
Eles consideram que o corpo e o esquema corporal - cujas percepções ficam comprometidas com as mudanças biofisiológicas - são duas variáveis que estão intimamente relacionadas na equação do processo de definição da identidade adolescente: o esquema corporal é uma resultante intrapsíquica da realidade do sujeito, ou seja, é a representação mental que o sujeito tem de seu próprio corpo como conseqüência de suas experiências com o meio social em que vive. Esta noção vai se estabelecendo desde os primeiros movimentos dinâmicos de introjeção e projeção que permitem o conhecimento do self e do mundo exterior. A perda do corpo infantil, portanto, obriga o adolescente a uma modificação de seu esquema corporal e do conhecimento físico de si mesmo, o que se expressa de uma maneira bastante específica neste período do desenvolvimento.
Como assinalamos no início deste trabalho, a conquista de um "autoconceito" - que podemos chamar também de identidade, ego, self - vai se desenvolvendo à medida que o sujeito vai mudando e vai integrando as concepções que as pessoas, os grupos, as instituições têm a respeito dele; ou seja, o indivíduo, na medida que vai se inserindo em sua sociedade, assimila os valores que a constituem. Concomitantemente, o sentimento de identidade vai se formando como uma verdadeira experiência de autoconhecimento, na medida que o indivíduo se reconhece pertencente a um determinado grupo.
No processo adolescente, no entanto, é necessário integrar todo o passado, o experimentado, o internalizado (e também o rejeitado) com as novas exigências do meio e com as urgências instintivas emergentes em função do desenvolvimento físico e biológico dos indivíduos.
Além disso, para que esta experiência - a da construção da identidade - se consolide é necessário que o indivíduo desenvolva um sentimento de continuidade e semelhança consigo mesmo. Assim, o problema chave da identidade adolescente consiste na capacidade do ego de manter esta semelhança e continuidade frente a um destino mutável e desconhecido (Erikson, 1976a).
Este momento, portanto, requer dos diferentes indivíduos e em diferentes sociedades, grandes variações na duração, intensidade e ritualização da adolescência, possibilitando períodos intermediários, mais ou menos sancionados entre a infância e a idade adulta. Tais períodos foram designados por Erikson (1976a) de moratória psicossocial, onde não se requer do adolescente papéis específicos e lhe permitem experimentar o que a sociedade tem para oferecer com a finalidade de definir sua personalidade:
"...por moratória psicossocial entendemos um compasso de espera nos compromissos adultos e, no entanto, não se trata apenas de uma espera. É um período que se caracteriza por uma tolerância seletiva por parte da sociedade e uma atividade lúdica por parte do jovem." (Erikson, 1976a:157)
Nesta busca de identidade o adolescente recorre a situações que se apresentam como mais favoráveis no momento. Uma delas é a de uniformidade - geralmente exercida dentro de um grupo - o que lhe proporciona segurança e esttima pessoal. Ocorre aqui o processo de dupla identificação em massa, onde todos se identificam com cada um, e que explica pelo menos em parte, o processo grupal do qual participa o adolescente.
Ou seja, é a partir da busca da uniformidade que surge o espírito de grupo pelo qual o adolescente mostra-se tão inclinado. Tal uniformidade é alcançada na medida em que todos os membros do grupo se identificam entre si. Em função disso, o adolescente submete-se às regras do grupo em relação a modas, vestimentas, costumes, preferências, etc.. Às vezes este processo é tão intenso que a separação do grupo é quase impossível, o indivíduo pertence mais ao grupo de pares do que ao grupo familiar.
Além disso, as atuações do grupo e dos seus integrantes individualmente representam a oposição às figuras parentais e uma maneira ativa de determinar uma identidade diferente da do meio familiar. Nesse sentido, os adolescentes vão procurar "modelos" para se identificarem fora do ambiente familiar: professores, artistas, etc.; e é no grupo que o indivíduo adolescente encontra o espaço social necessário para vivenciar os aspectos mutáveis do ego que se produzem neste período da vida.
Desta maneira, o fenômeno grupal adquire uma importância transcendental para o adolescente já que se transfere para o grupo grande parte da dependência que anteriormente mantinha com a estrutura familiar e com os pais especialmente. É nesse espaço que o adolescente elabora e exercita sua autonomia, e isso em todos os sentidos:
"autonomia intelectual de início, pois deve libertar-se inteiramente de seu realismo infantil e aprender a julgar as coisas e as pessoas por critérios objetivos; autonomia afetiva, uma vez que deve, paralelamente a sua evolução sexual (biológica) orientar sua afetividade para o futuro, libertando-a por completo dos laços familiares da infância." (Fau, 1968:43)
É na procura de sua autonomia que o adolescente percebe a necessidade de se agregar a um grupo. No entanto, a adaptação em um grupo, se bem que necessária, é essencialmente transitória: um espaço onde ele pode experimentar e exercitar alguns passos no sentido de superar o que denominamos anteriormente de "crise da adolescência", inserindo-se, definitivamente, no universo do adulto.
Vale assinalar que por "crise" entendemos algo assim como uma ruptura de uma forma de relação. Esta imagem esconde, muitas vezes, uma idéia que a complementa: a de passagem, de reajustamento, de uma nova forma de adaptação. Em termos psicológicos, crise relaciona-se com a idéia de desestruturação e reestruturação da personalidade, a algo que morre e a algo que nasce (Erikson, 1976a; Bohoslavsky, 1987). Assim, podemos traçar um paralelo entre tais idéias com as de Turner (1974), quando ele trabalha com os fenômenos rituais e com as de Van Gennep (1975) quando ele descreve as características dos ritos de passagem.
3.2 - A Abordagem "Sócio"
Como apontamos anteriormente, são as sociedades que caracterizam os parâmetros através dos quais os jovens se inserem na vida adulta, ou seja, a adolescência é uma categoria construída socialmente, que tem contornos específicos de sociedade para sociedade, e configurações próprias no decorrer da história de uma mesma sociedade .
Numa perspectiva do comparativismo cultural, os antropólogos tentam apreender como as culturas se definem, "se expressam", e instituem as relações entre as camadas de idade, a socialização dos indivíduos e sua própria "reprodução".
A partir desta visão, o trabalho desenvolvido por Margaret Mead nos parece paradigmático. Ela se interessou em estudar as possíveis relações entre indivíduo x personalidade x sociedade . Para tanto, partiu da idéia segundo a qual o conhecimento de modos de vida diferentes favoreceria o povo americano a empreender importantes modificações em seu próprio modo de vida. Assim, esta pesquisadora compara o estereótipo do adolescente da camada média americana com o adolescente em Samoa (Nova Guiné), descobrindo a profunda incidência de mecanismos de condicionamentos fisiológicos, psicológicos, e não só culturais, desenvolvidos por essa cultura nessa fase da vida dos indivíduos.
Em seu trabalho (1961) ela verificou que na educação em Samoa, não existe uma descontinuidade entre o universo infantil e o universo do adulto. O adolescente não sofre nenhuma quebra brusca de suas atividades e expectativas sociais. O homem adulto que se pretende será submisso, conformista, calmo, indiferente ao prestígio material ou social. A sociedade, portanto, será homogeneizada através do encorajamento do indivíduo lento e da contenção do talentoso. A disciplina familiar não é sistemática, mas se estabelece conforme suas conveniências, pois as responsabilidades do indivíduo aumentam gradativamente, à medida que se torna adulto.
Se a intenção de Mead ao estudar Samoa é mostrar que a psicopatologia dos adultos americanos liga-se a sua infância, à relação com os pais, ao modo pelo qual foi veiculado o comportamento sexual, torna-se evidente que um tipo diferente de socialização contribui para determinar profundas transformações culturais e psicológicas no interior da sociedade, e que um crescimento como o das crianças em Samoa poderia afastar "neuroses" muito difundidas nos Estados Unidos.
Em seu "Sexo e Temperamento" (1979) ela mostrou, a partir de um estudo comparativo sobre diferenciação de papéis sexuais entre algumas tribos da Nova Guiné, que os problemas dos adolescentes são solucionados de formas diversas.
Neste estudo a autora demonstra a existência de processos de interiorização das regras sociais tendo como ponto de partida os mecanismos psicológicos da adoção dos papéis, em particular, os sexuais. Assim, ela observou que entre os "Arapesh" homens e mulheres eram treinados a serem cooperadores, ternos e a responderem às necessidades dos outros. Entre os "Mundugumur" homens e mulheres aprendem a ser agressivos, competitivos, lutadores, impiedosos. Entre os "Tchambuli" as mulheres tinham o poder, eram responsáveis pela pesca e pela fabricação dos artigos de comércio da tribo. O homens se dedicavam a atividades artísticas: dança, escultura e pintura. Para Mead, as expectativas psicológicas e sociais dos integrantes destas sociedades vão circunscrever todo o processo social do adolescente de tal modo que ao jovem restava submeter-se aos padrões predeterminados pela cultura.
Héritier (1976) ao estudar a relação adolescência e sexualidade em algumas tribos africanas, confirma a perspectiva apontada por Mead. Nesse sentido, ela assinala
"O estado paradoxal do adolescente ... a oposição aos parentes, a revolta diante da autoridade, a angústia do futuro ... são fenômenos que não encontramos onde a estrutura social é particularmente rígida o que define aos adolescentes um lugar e um papel compartimentado. Estritamente regidos pelas regras constringentes [como é o caso nas sociedades africanas estudadas] ... o percurso [do adolescente] à idade adulta é obrigatório de qualquer modo." (Héritier, 1976:6)
Balandier (1976), a partir de uma outra perspectiva, situa a questão da adolescência sob a ótica da reprodução social. Problematizando a "ordem social" ele aborda o problema da unidade da sociedade e o de sua continuidade ou reprodução de formações sociais e culturais. Para tanto, interpreta a lógica social a partir de três recortes: as fronteiras traçadas em função do sexo, da idade, e do sistema de desigualdades.
Comentando as maneiras pelas quais as "sociedades avançadas" tratam a questão da adolescência, Balandier assinala que o "problema do jovem"
"dá, atualmente, a tonalidade a todos os outros [problemas], dá novo rumo aos projetos, alimenta as reflexões e as especulações. A escola, a profissão a cultura, a moda, assim como a política, a religião, o sexo são reconsiderados em função das rejeições, das contestações, das exigências e das iniciativas jovens." (Balandier, 1976:67)
Ele assinala ainda que a juventude tornou-se objeto de múltiplas pesquisas - desdobrando-se em uma sociologia da juventude desde os finais da década de 50 - e tal fato possibilitou o seu reconhecimento (da juventude) enquanto um fenômeno social, passando a ser considerada a partir das formas de expressão e de organização que lhe são próprias. Entretanto, este objeto parece escapar a qualquer abordagem desde o momento em que se tenta dar-lhe uma definição em função da crise de continuidade das sociedade urbanas.
"Novos meios sociais e espaços culturais se formam; os indivíduos encontram-se cada vez menos ligados uns aos outros por relações consideradas mais naturais do que constringentes, e os antigos quadros de socialização - família, escola, comunidade ou vizinhança perderam sua eficácia." (Balandier, 1976:68)
Sob estas circunstâncias - comuns às sociedades em constante movimento, sujeitas aos efeitos das técnicas expansivas da contínua organização - a adolescência caracteriza-se como um período do desenvolvimento humano menos definido e mais perturbador pois, na medida em que as instituições que asseguram a integração social perdem sua eficácia, o processo de socialização realiza-se cada vez mais entre "pares", através do jogo de relações constituídas "horizontalmente" e cada vez menos no quadro das relações "verticais", entre as gerações sucessivas.
Os jovens buscam, assim, viver sua situação coletivamente: em quadros sociais que lhes são próprios e nos lugares em que se reúnem, cuja multiplicação é favorecida pelo espaço urbano . Desse modo, uma sociedade jovem se delineia na tessitura da sociedade global, onde ela se reforça e se torna autônoma a ponto de parecer separada.
Apesar de reconhecermos que os jovens estabelecem uma relação de tensão com o universo dos adultos; que existe uma "cultura dos jovens" que compreende toda uma gama de atitudes distintas, de posturas, de estilos de vida e de modelos de ação; e que suas posições e iniciativas adquirem uma significação política, pois refletem uma sociedade que se desfaz, posicionando-se como o artesão de uma nova sociedade que tenta nascer ; a definição de "juventude", "adolescência", não pode ser generalizada pois são tantos os contextos sócio-culturais que compõem as sociedades e, em especial, as do meio urbano , que encontramos nela uma pluralidade de formas de ser jovem . Ou seja, em nossa sociedade distinguimos não uma, mas várias juventudes.
Nesse sentido, Bourdieu (1983b) aponta que as divisões entre as idades são arbitrárias, objeto de manipulação e de disputa em todas as sociedades. Apesar de podermos caracterizar a adolescência a partir de um dado biológico, ela é um "ato do homem", isto é, é uma categoria social definida a partir de dados biológicos socialmente manipuláveis e manipulados. Nesse sentido, na medida em que falamos dos "jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e relacionar estes interesses a uma idade definida biologicamente, já constitui uma manipulação evidente." (Bourdieu, 1983b:113) .
É por isto que os cortes - sejam em classes de idade ou em gerações - variam inteiramente e são objetos de manipulações sociais, pois ser jovem ou velho implica sempre um outro - pois se sou velho, o sou em relação a alguém (o que implica relação, cognição, percepção, conflito, etc.).
Juventude x adolescência, identidade x alteridade são enfim categorias relacionais que devem ser abordadas tendo-se como pano de fundo as relações que os indivíduos estabelecem com o meio em que se localizam, e é somente neste espaço relacional - com todas as suas vicissitudes - que podemos tentar estabelecer as formas pelas quais os fenômenos a eles imbricados se processam.
NOTAS
1 - Nesse sentido ver Todorov (1987) no que se refere à conquista da América. Ver também Revista da USP n.12: nela encontramos uma coletânea de artigos sobre os “Quinhentos Anos da América”, onde os articulistas fazem uma análise crítica sobre os acontecimentos da época e seus desdobramentos. VOLTAR
2 - É Hus (1979) quem propõe este conceito para explicar os modos pelos quais os povos se relacionam. Para ele todos os povos tendem a “ver alguém do seu grupo como sempre certo e todos do outro grupo como errados quando diferentes.” Mas, as relações mediadas pelo etnocentrismo positivo, o grupo desejar mudar os modos daqueles que são vistos como inferiores ou errados. VOLTAR
3 - Foucault (1966) considera que as “ciências humanas apareceram no dia em que o homem se constitui na cultura ocidental ao mesmo tempo como o que é necessário pensar e o que há a saber...”(:48), ou seja, na medida em que ele é sujeito e objeto de conhecimento. VOLTAR
[1] Para Berman (1988) o renascimento possibilitu a emergência do que temos denominado de modernidade, caracterizada pelo autor como um tipo particular de experiência: a da diversidade e da ruptura.
_______________
Ir para