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III- FLORIANÓPOLIS/SANTINHO E O SURFE: NA ROTA DO TURISMO
1 - Florianópolis e o Turismo
Desde a década de 60 o turismo vem sendo estimulado junto aos países em desenvolvimento, como uma estratégia para a superação de problemas endêmicos, principalmente os econômicos (Lafant, 1980). Tal possibilidade levou países como o Brasil a abrirem suas fronteiras para empreendimentos desta natureza.
No caso do Brasil, esta perspectiva fica evidente ao vermos o empenho da EMBRATUR - Empresa Brasileira de Turismo - órgão vinculado ao Ministério da Indústria e do Comércio, em atrair investimentos internacionais para a implementação do turismo no litoral brasileiro (vide Figura 2).
INSERIR FIGURA 2
Este ideário implementado pelo governo federal terá desdobramentos em outras esferas da administração pública. Em Florianópolis, tanto a Administração Estadual como a Municipal têm se empenhado no desenvolvimento de projetos turísticos que possibilitem a inserção da Cidade e do Estado na "rota do turismo internacional".
Este trabalho, no entanto, não objetiva aprofundar esta discussão , tendo em vista que não tem este objetivo. Mas nele temos que "esbarrar", tendo em vista que a perspectiva turística que se colocou para a cidade de Florianópolis e suas Intendências, tem engendrado mudanças importantes tanto no que se refere aos aspectos culturais da cidade, como ao nível dos comportamentos dos que ali vivem.
O objetivo deste capítulo, portanto, é o de caracterizar as maneiras pelas quais o turismo foi pensado na Ilha de Santa Catarina, tendo como pano de fundo as políticas implementadas pelos órgãos públicos no período de 1987-1991 . Além disso,caracterizaremos o "como" a "freguesia" do Santinho assimilou esta perspectiva, assinalando as mudanças que ocorreram no lugar a partir da implementação do turismo ali desenvolvido.
Neste capítulo, abordarei também o desenvolvimento do surfe em Florianópolis tendo em vista que este esporte vem sendo operacionalizado pelas administrações públicas como um elemento constituinte da identidade florianopolitana.
1 - Florianópolis e o Turismo
Florianópolis é uma cidade com muitos contrastes e, pelo fato de ter sido fundada no séc. XVIII , ela se apresenta aos nossos olhos como uma confrontação entre o "velho" e o "novo".
O "velho" e o "novo" estão aí: no traçado das ruas encontramos as grandes avenidas percorrendo a cidade ao lado das vielas do seu traçado original; na arquitetura, os edifícios da chamada era pós-moderna disputam a paisagem com prédios, casas, fortes remanescentes "daqueles tempos"; em termos culturais, algumas manifestações populares como o Boi de Mamão e o Pau de Fita, assimilam características dos padrões estéticos modernos, principalmente aqueles divulgados pela mídia; a carroça (meio de transporte muito utilizado na cidade) concorre no estacionamento com o último modelo do carro do ano; a pesca desenvolvida nas colônias de pescadores da Ilha, se confronta cotidianamente com os grandes barcos na caça do peixe em alto mar, enfim, poderíamos enumerar vários exemplos deste contraste.
"Velho" x "Novo" são aqui abordados não como um sistema de oposição "tradicional" x "moderno", "atrasado" x "desenvolvido"; nem sob uma perspectiva evolucionista dos "estágios", onde o passado é visto sempre como oposto ao que vem depois - o mundo civilizado contemporâneo, superior. A idéia é a de apontarmos o significado sociológico das relações sociais e culturais que se estruturam e se reestruturam, tendo como pano de fundo as contradições que "novo" x "velho", "tradição" x "moderno", propiciam.
Nessa busca, seguiremos com alguns dados históricos para tentar caracterizar o processo de "modernização" da cidade olhando para a emergência do turismo como uma atividade chave para a constituição deste processo nos últimos anos.
Como assinala Franzoni (1993), no início deste século, Florianópolis já apresentava em seu perímetro urbano algumas características das modernas sociedades brasileiras: água encanada, iluminação pública através da energia elétrica, rede de esgoto, avenidas, serviços públicos como atendimento à saúde, policia, etc..
É na década de 30, no entanto, que começa a se configurar a principal atividade econômica da cidade - o comércio. Para Franzoni (1993), a manutenção de Florianópolis neste período deu-se basicamente
"graças ao crescimento do setor público, pela injeção de recursos federais e estaduais, e pela pequena produção agrícola e industrial. Com o crescimento do setor público e suas necessidades, o comércio acabou se tornando a principal atividade econômica de Florianópolis." (Franzoni, 1993:26)
Esta atividade econômica, ainda sob a perspectiva de Franzoni (1993), cresceu consideravelmente a partir da segunda metade deste século, acompanhado por uma ampliação crescente da população. A implantação da ELETROSUL (empresa que gerencia a energia elétrica da região), UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e de várias outras estatais, propiciaram um intenso fluxo migratório de funcionários de nível médio e suas famílias para a cidade. Concomitantemente chegou em Florianópolis um número significativo de famílias pobres, tendo em vista as possibilidades de emprego que a "capital" oferecia.
Tais fatos, por sua vez, vão propiciar um redimensionamento dos contornos da cidade. Com o crescimento das camadas médias (em decorrência do fluxo de funcionários públicos), multiplicaram-se os loteamentos, os bairros residenciais, os prédios de apartamentos, as empresas e o comércio. Observa-se, portanto, o crescimento dos bairros como Agronômica, Trindade, Pantanal, etc., um aumento da população nas comunidades do Sambaqui, Campeche, etc. As populações de baixa renda, no entanto, que também acompanharam este fluxo migratório, localizaram-se nas áreas da periferia urbana da cidade, nos espaços vazios, nos morros, e, em termos de trabalho, ocuparam as vagas abertas nas atividades da construção civil.
A valorização imobiliária decorrente deste processo de ocupação do solo urbano, não se restringiu somente ao perímetro urbano, mas ampliou-se para toda a Ilha, principalmente em decorrência da exploração do turismo ocorrida - mais entusiasticamente - a partir da década de 1980.
Nesta década os argentinos - pela proximidade e pela desvalorização da moeda brasileira - elegeram Florianópolis como um dos balneários de Santa Catarina para passarem suas férias; e a cada verão, um contingente cada vez maior de turistas estrangeiros desembarcava na cidade.
Este "boom" turístico - cuja perspectiva de internacionalização se expressa nos projetos políticos para o setor apresentados pela administração pública da cidade (assim como pelos empresários) - coloca em evidência problemas de diversas ordens, os quais passam a ser objeto de conflitos que envolvem vários atores sociais. Questões como: a preservação da natureza, a manutenção dos mangues, a preservação do acervo e patrimônio históricos, o destino do lixo, a ocupação dos espaços no interior da Ilha, etc. passam a ser problematizadas publicamente na tentativa de equacionar a relação "turismo" x "Florianópolis".
Nesse sentido, vale lembrar a polêmica sobre a "Farra do Boi", cuja tentativa de repressão nos remete aos conflitos emergentes neste processo de desenvolvimento. Vinculando tal polêmica aos processos simbólicos envolvidos na ocupação do espaço urbano, Menezes Bastos (1993) assinala:
"Noto que os habitantes do Conjunto Guarani são vistos basicamente como invasores pelos nativos do lugar. Eles - pelos nativos chamados de eles em contraposição ao nós que os aponta a si mesmos - são a recordação presente de um a história de desterro e de desapropriação, uma história que transformou chacareiros auto-suficientes em assalariados pobres, matos e campos verdejantes em ruas cinzentas." (Menezes Bastos, 1993:10)
A implementação do turismo na cidade, por sua vez, exigia dos empreendedores (públicos e privados) a "criação" de um "produto limpo" que assegurasse seu lugar no mercado internacional. Como nos assinala Lafant (1980)
"o produto turístico é uma combinação de elementos heteróclitos: os serviços (alojamentos, restaurantes, transportes e serviços anexos, especialmente de lazer), os objetos culturais (os patrimônios culturais, artísticos, o folclore, as festas), as particularidades geográficas (as paisagens, os lugares) e muitos elementos menos palpáveis, tais como hospitalidade, a ambiência, as curiosidades étnicas, os costumes, etc... Esses diferentes elementos são amalgamados dentro de um produto que é em suma um pacote de serviços e de imagens sedutoras." (Lafant, 1980:25)
No sentido de buscar alternativas para adequar as estruturas básicas da cidade às necessidades do turismo internacional - que implicava numa infra-estrutura apropriada (hotéis, aeroporto, sistema de telecomunicações, a informática que confere a essa indústria os meios mais poderosos de organização e gestão, o marketing) - e às da demanda cada vez maior, foram efetivados alguns projetos - principalmente arquitetônicos.
Nesse sentido, ampliou-se a rede de hotéis, principalmente nas praias; vários empreendedores - grandes e pequenos - construíram casas para serem alugadas no verão. Alguns investimentos mais sofisticados foram colocados no mercado, como por exemplo os de Jurere Internacional, Praia Brava, Costão do Santinho. Em termos de serviços públicos temos a ampliação da rede de ônibus urbanos que liga o centro da cidade às praias, a construção da rodoviária e sua posterior informatização, a construção de um "Sambódromo" para grandes eventos (como shows, carnaval, etc...), etc.
Em termos culturais temos a institucionalização de algumas festas populares no verão: a Florifesta, no centro da cidade; a Festa do Marisco, em Morro das Pedras; a do Camarão, no Ribeirão da Ilha; a da Lula e do Siri, em Carianos; festas que passaram a compor - ao lado da Oktoberfest de Blumenau e da Fenarreco de Joinvile - o roteiro turístico da Região Sul divulgado nacionalmente. Nestas festas o toque do exótico é oferecido pelos grupos folclóricos - geralmente boi de mamão e/ou pau de fita - além dos temperos e pratos típicos .
Em 1987 esforços são envidados pela Santur (Santa Catarina Turismo, órgão vinculado ao Governo do Estado ) - e pela SETUR (Secretaria de Turismo, órgão vinculado à Administração Municipal), no sentido de implementar uma estratégia de marketing publicitário via folderes, panfletos, vídeos, etc., onde apresentavam algumas peculiaridades da cidade e do Estado. Com este movimento, verifica-se que alguns traços característico da Ilha - "o exótico" - passaram por uma releitura e uma reapropriação, sendo inserido dentro da "lógica do espetáculo".
É neste sentido que podemos entender, por exemplo, a campanha publicitária promovida pela Secretaria Municipal de Turismo intitulada "Florianópolis - Ilha da Magia". Ela foi elaborada a partir das estórias sobre bruxas e bruxarias recolhidas por Franklin Cascaes, junto à população que mora no interior da Ilha . Tal campanha foi implementada através da performance de alguns artistas de teatro, fantasiados de "bruxas" e "monstros". Eles percorreram uma feira da ABAV - Associação Brasileira de Viagens - realizada em São Paulo, em Setembro de 1988, distribuindo "poções mágicas".
Assim, a estratégia de marketing foi administrada no sentido de inserir a cidade no mercado do turismo internacional: a publicidade da cidade passou a ser feita via mala-direta, atingindo brasileiros e estrangeiros que por ali passaram durante os verões anteriores; além disso, tal propaganda também atingiu vôos nacionais e internacionais, através das agências de viagens espalhadas por todo o país.
Esta perspectiva - a da internacionalização do turismo - assume um contorno mais definitivo quando a cidade passa a ser administrada por Espiridião Amin, a partir de 1990. Franzoni (1993) assinala que esta administração tinha como plataforma política tornar Florianópolis uma "Capital Turística Internacional". Para tanto, ele propunha uma série de projetos para modernizar e trazer o progresso para a cidade.
"Isto significou já aos primeiros meses de administração, uma tentativa de construir uma nova imagem para a cidade ... desencadeada por um verdadeiro bombardeio publicitário na televisão e nos jornais locais, com repercussão nacional." (Franzoni, 1993:46).
Franzoni (1993) ainda assinala que os "grandes projetos" propostos por esta administração demarcavam determinados territórios - "águas e terras" (sic) - onde a administração, através da atividade privada, executaria uma profunda modificação nos contornos do Município. Tal perspectiva visava não a população local mas o uso que deles fariam os turistas que periodicamente passariam pela cidade deixando suas riquezas e seus dólares .
Na medida em que a Administração Municipal e Estadual assumem a vocação turística da cidade, a contradição "velho" x "novo", "tradicional" x "moderno" começa a ser equacionada pois, paralelamente à modernização da cidade (com a instalação de hotéis, rodoviária, pontos turísticos, reforma do mercado público municipal, etc.), temos uma "atitude preservacionista" para com os valores culturais tradicionais da terra. Atitude que se expressa pela valorização do artesanato produzido na Ilha (rendas, os trançados das redes dos pescadores, a farinha de mandioca); assim como a rearticulação de suas manifestações folclóricas (boi de mamão, pau de fita, etc.) e das festas populares. Ou seja, os investimentos públicos em atividades culturais passaram a estar relacionadas com a atividade turística, na medida em que elas vão caracterizar o "exótico", o "característico da ilha" .
Podemos dizer que foi através de uma re-significação dos conhecimentos, dos hábitos e dos valores culturais que caracterizam a cidade; através de uma estratégia de marketing que atinge uma população nacional e internacional; e a partir de uma política para o turismo que objetivava assegurar o conforto, a beleza e o exótico para seus visitantes - Florianópolis se insere, a partir da atividade econômica do turismo, num sistema global.
Pude observar mais de perto este processo - o da internacionalização do turismo da cidade - quando estive em Santinho fazendo minha pesquisa de campo. Em 1987, a Câmara Municipal de Florianópolis aprovou a construção de um hiper-empreendimento turístico na Praia do Santinho (norte da Ilha de Santa Catarina) - denominado Costão do Santinho. Os empresários se propuseram construir em dez anos (previsão feita antes do Plano Collor em 1989) vários condomínios, um hotel de nível internacional, um "spa", conjuntos poliesportivos, áreas de lazer e para compras, etc. preservando-se o meio ambiente (através de um sistema próprio de compostagem de lixo e tratamento de esgoto) e o "característico do lugar" - os engenhos de farinha (pois estes estão próximos da área onde o empreendimento está sendo erguido), os pescadores e seus instrumentos de trabalho, etc.
Tais perspectivas nos fazem refletir sobre as novas relações que vem se estabelecendo no universo das sociedades capitalistas. Como assinala Canclini (1988), o sistema mundial que vem se configurando se apóia e se afirma, não mais pela imposição das culturas metropolitanas, nem pela internacionalização do capital de países centrais.
Trata-se sim de buscar, na implementação de projetos com pretensões internacionais - como é o caso do Costão do Santinho - a adaptação do "produto" - no caso lazer, beleza, exótico, etc. - às exigências do mercado, superando as dificuldades e as diferenças que as situações específicas lhes impõem, atingindo, dessa forma, vários setores da sociedade.
O projeto proposto e que vem se desenvolvendo em Florianópolis - cuja direção é a ampliação do mercado turístico - foi e é dirigido pelas classes dominantes da cidade (representada principalmente pelos empresários ligados ao turismo). No entanto, a sua efetivação depende da sensibilização e do apoio das classes populares, na medida em que elas também estão inseridas em tal processo. Com o intuito de buscar este apoio, desenvolve-se em Florianópolis desde 1989 várias campanhas cujo teor é: "Receba bem um turista" (Campanha publicitária veiculada pela TV desde 1989), pois estes trarão benefícios para a cidade .
A partir deste processo de sensibilização, o encontro "turista x nativo", bem como as "expectativas da temporada", têm proporcionado algumas mudanças no comportamento e no cotidiano dos ilhéus, reafirmando as representações (compartilhadas com as classes dominantes) e a vocação turística da cidade.
Cabe assinalar, no entanto, que esta relação que se estabelece entre classes dominantes e classes populares não se estrutura a partir de um poder de direção única, pois como assinala Canclini (1988):
"Os bens e mensagens hegemônicos [referentes às classes dominantes]... interatuam com os códigos e com os hábitos cotidianos das classes populares condicionando as opções dos setores subalternos, mas estes selecionam e combinam os materiais recebidos - na percepção, na memória e no uso - e constroem com eles outros sistemas que nunca são o eco automático da oferta hegemônica." (Canclini,, 1988:24 - assinalamentos nossos)
Uma perspectiva similar pode ser vislumbrada a partir do posicionamento de Godelier (1981) quando analisa as relações de poder que se estabelecem entre os So, uma população de agricultores estabelecidos em Uganda.
"Todo poder de dominação se compõe de dois elementos ... entrelaçados que lhe dão força: a violência e o consentimento. Nossa análise nos leva necessariamente a afirmar que dos dois componentes do poder a força mais forte não é a violência dos dominadores mas o consentimento dos dominados em sua dominação. Para colocar e manter no poder, isto é, acima e no centro de uma sociedade uma parte da sociedade ... importa menos a repressão que a adesão, a violência física e psicológica menos que a convicção do pensamento que ocasiona a adesão da vontade, a aceitação, seno a cooperação, dos dominados." (Godelier, 1981:192)
Mais adiante ele complementa
"... só nos resta um meio de explicar como os indivíduos e os grupos dominados podem consentir espontaneamente na sua dominação. É preciso, portanto, que dominadores e dominados partilhem as mesmas representações, para que nasça a força mais forte do poder de uns sobre os outros: um consentimento fundado no reconhecimento dos benefícios e da legitimidade desse poder, um consenso fundado no reconhecimento de suas necessidade." (Godelier, 1981:193/194)
Queremos dizer com isto que o processo de dominação/subordinação que se estabelece na relação entre classes dominantes e classes populares não é total, pois esta articulação traz resistência dentro de si - talvez a "Farra do Boi" seja o melhor exemplo disso.
Assim, podemos dizer que o turismo em Florianópolis foi e vem sendo implementado tendo como suporte a estruturação de um campo de relações onde se posicionam classes sociais diferentes, ambas buscando soluções para as necessidades oriundas do turismo, sem afastar-se de suas raízes culturais - estas se reorganizam na medida em que são reproduzidas com a reprodução da estrutura .
Mediando esta relação, encontramos os mais variados meios de comunicação de massa (rádios, TV, jornais, etc.) . Tal situação possibilita o engendramento de uma nova maneira de se abordar o turista, no sentido de que tanto a população como o turista possam superar futuras divergências . É através destes enunciados semióticos (Guattari, 1987) que tanto os turistas como os "locais" estabelecem suas relações e, onde tentam conviver um certo período de tempo juntos. Entretanto, pelo fato de serem os "receptores" cabe aos "locais" adaptarem-se a esta nova situação; assim, várias pessoas, na medida em que estavam envolvidas em algumas atividades econômicas (taxistas, guias de turismo, lojistas, etc.) aprenderam o "castelhano" para poderem receber bem o "visitante".
Este encontro - classes dominantes x classes populares - na medida em que não é uma relação totalizadora no que diz respeito aos aspectos políticos e ao poder aí implícitos - possibilita a emergência de manifestações culturais espontâneas dentro da cidade de Florianópolis. É o que podemos depreender das farras do boi que acontecem em diversos lugares da cidade - apesar das diversas manifestações contrárias a elas dirigidas e das tentativas de contenção por parte da polícia para sua eliminação (Menezes Bastos, 1993).
Assim, se o capitalismo desenvolvido pelas nações industrializadas pode ser considerado um sistema global - transnacional (como sugere Guattari, 1987, com relação aos aspectos culturais e Lafant, 1980, com relação ao turismo) suas formas concretas de realização estão longe de serem uniformes, uma vez que os efeitos específicos de suas forças materiais vão depender das diversas maneiras pelas quais elas são mediadas em esquemas culturais locais, como bem o mostrou Marshall Shalins em seu texto "Cosmologias do Capitalismo: o setor trans-pacífico do Sistema Mundial" (1988).
Na perspectiva de Shalins, a cultura global capitalista em constituição - oriunda dos centros de poder econômico, político e financeiro - é apropriada desigualmente pelos diferentes grupos sociais que constituem este centro .
Vale ressaltar que a promoção do turismo propicia um processo de integração cultural muito significativo para as sociedades que se vêm envolvidas neste intercâmbio. Os signos de identidade social são exibidos dentro dos produtos turísticos, expressando as diferenças e as singularidades nacionais, regionais e locais. Estas podem recuperar tanto as produções culturais mais profundas dentro da memória coletiva como as expressões mais vivas das culturas contemporâneas, tornando-se o pretexto para as operações de marketing, o que possibilita a restauração de patrimônios culturais em decomposição e a reanimar as culturas em vias de extinção. Sob a perspectiva de uma política para o turismo em nível internacional, tais ações, na medida em que se referem à cultura, permitem às sociedades investirem em sua identidade cultural, vindo a se reapropriarem de sua singularidade, tendo como pano de fundo comum a cultura universal.
No entanto, apesar de os indivíduos oriundos das classes populares poderem superar as contradições impostas pelo capitalismo fazendo uma leitura própria - a partir de sua prática social - da "semiótica" que lhe é impingida; não podemos deixar de considerar que o sistema capitalista, ao disseminar seu ideário e ao criar mecanismos e instrumentos que lhe dão sustentação, opera no sentido de engendrar subjetividades que vão assegurar a sua dominação e manutenção (como sugere Guattari & Rolnik, 1986); não propiciando às classes populares superarem sua condição, pois seus integrantes não detêm os meios nem as oportunidades para tanto.
2 - O Surfe em Florianópolis: Esporte e Turismo
O surfe é um dos esporte que mais se desenvolveu nos últimos anos em Florianópolis, e neste processo de desenvolvimento observamos que as administrações públicas - Municipal e Estadual - têm se apropriado do esporte caracterizando-o como uma atividade vinculada a identidade da população que vive em Florianópolis - colocando-o ao lado da renda, da pesca artesanal, etc.
Em termos históricos, principalmente no que tange à história do surfe no Brasil, o papel de Santa Catarina é considerado pelos "empreendedores do surfe" como fundamental para o desenvolvimento do surfe nacional, pois os catarinenses se empenharam em organizar o esporte no Estado em termos de associações e de campeonatos. Tanto que, o Olimpikus, o primeiro evento com grande divulgação após a decadência do esporte em nível nacional, ocorreu em Florianópolis em 1982 (Gutenberg, 1989).
O surfe, no entanto, começou a ser praticado na cidade no início da década de 70. Ivan - surfista nativo - informou-me durante uma entrevista, que, naquela época, "tinha alguns surfistas já com pranchões de madeira ... mas havia já alguns surfistas do Rio de Janeiro fazendo prancha com resina de poliuretana, já havia um movimento, o movimento era pouco..."
Gutenberg (1989), complementa esta informação assinalando que
"O surf teve início em Florianópolis, na opinião de Paulo "Piu" Guinle, quando ele esteve na capital catarinense em 1971 pela primeira vez. Pegou ondas, gostou e depois de fazer algumas viagens ... voltou em 1973... Os primeiros surfistas naturais de Florianópolis foram provavelmente os irmãos Paulo de Geraldo Correa. No final de 1973 eles aproveitaram as férias com a família no Rio de Janeiro e compraram uma prancha ... animados que estavam com alguns "estrangeiros" que divertiam-se em suas praias pegando ondas." (Gutenberg, 1989:146)
Segundo nosso informante Ivan, o surfe era praticado nas praias da Joaquina e Barra da Lagoa. Apesar das dificuldades de acesso, essas eram as praias preferidas pelos surfistas: "depois foi o espírito de aventura ir descobrindo outras praias da Ilha e depois fora da Ilha - Embaú, Imbituba, Garopaba...".
Quanto à aceitação do esporte e dos surfistas, Ivan observa que eles não eram "bem vistos" pela sociedade: "A gente não era bem aceito não pela sociedade: cabelo comprido, calça jeans, os carros cheios de pranchas, as meninas rodeando, pegando carona nas estradas... óculos escuros, chinelão, calção. Na época a sociedade nunca nos aceitou bem. Então éramos chamados os play-boys da cidade".
Os surfistas eram considerados "loucos", malandros, maconheiros, vagabundos de praia; imagem que se constrói num momento em que o país estava recebendo influências do movimento "hippie" - donde podemos supor que a imagem do surfista foi confundida com a dos "hippies". Os praticantes do esporte sempre foram perseguidos pela polícia que os consideravam maconheiros/traficantes.
Cabe assinalar ainda que, paralelamente à evolução do surfe, instalava-se no país o governo e o movimento de contracultura. E, este último, influenciou muito os praticantes do surfe.
"Havia um desejo de liberdade no ar. Os jovens queriam se libertar e o surfe era uma das válvulas de escape para essa geração, que pouco suportava o sistema.(...) Mais de 90% dos surfistas do final dos anos 60 eram cabeludos, não estavam nem aí com a ditadura militar. (...) O surfista ficou tachado, por muitos setores da sociedade, como um alienado, um perdido ou mesmo um drogado" (Gutenberg, 1989:109)
Por outro lado, com a implementação da ideologia do milagre brasileiro, fruto da revolução de 64, assim como o enfraquecimento dos movimentos populares, instalação do AI-5, etc..., o surfe, com seu espírito de aventura e curtição, não encontrou terreno propício para se desenvolver, reforçando-se seu aspecto marginal.
Em Florianópolis, esta percepção era, de uma certa forma, confirmada na medida em que acontecia na cidade várias brigas entre os grupos de surfistas: "E depois", nos conta Ivan, "vinha o pessoal de fora, do Rio de Janeiro e São Paulo, e havia brigas, como eles estavam invadindo nossa praia. Então fechou muita pauleira aqui em Florianópolis. Estacionava um carro de fora na Joaquina nossa turma não deixava entrar nágua... Na época era uma loucura" .
Quanto à organização dos surfistas, Ivan relata que, bem antes do Olimpikus (1982), já aconteciam campeonatos na Joaquina: "sem associação, nem federação. A gente mesmo reunia o grupo de surfistas e botava os mais antigos - que eram mais entendidos - pra jurar a gente e pronto". A competitividade não era uma "marca" do esporte: "a gente queria mais é curtir a natureza, o mar". (Ivan).
É no final da década de 70 que o surfe, em Santa Catarina, começa a se estruturar. Em 1979 é criada a Associação Catarinense de Surf. Esta Associação e a Secretaria de Turismo do Estado, idealizaram um circuito estadual que se tornou modelo para os que viriam ocorrer, na década de 80 no território nacional. As etapas do campeonato estadual, desde então, passaram a ser disputadas nas mais diversas praias do Estado.
O esporte, a partir de então, começa a se organizar em todo o Estado: foram fundadas várias associações, o que culminou com a criação da FECASURF - Federação Catarinense de Surf - em 1988.
Tais empreendimentos possibilitaram um crescimento paulatino do esporte tanto na Cidade como no Estado - em Florianópolis o surfe é exercitado praticamente em todas as praias da Ilha; realizam-se freqüentemente campeonatos locais, estaduais, nacionais e internacionais. O crescimento do esporte, por sua vez, possibilitou um aumento do número de empresas que trabalham e/ou fabricam equipamentos e/ou produtos relacionados ao surfe: pranchas, roupas, etc.
Apesar de ser um esporte praticado por poucas pessoas (em comparação com o números de habitantes da cidade de Florianópolis), ele é bastante apreciado pela população em geral , podendo ser considerado um esporte de massa. Além disso, é grande o número de pessoas que não pratica o esporte, que não entende o que se passa quando o surfista está nágua e que acompanha os campeonatos da areia da praias .
Gostaria de ressaltar que o papel dos órgãos públicos na implementação do esporte na Cidade e no Estado foi marcante, na medida em que propiciou apoio logístico e financeiro na estruturação do surfe - patrocinando eventos, cedendo instalações, etc...
Além disso, os órgãos públicos (municipais e estaduais) e os empresários da cidade - principalmente aqueles ligados ao turismo - através das campanhas publicitárias sobre a Ilha, passaram a considerar o surfe como um elemento característico da cidade: praticamente toda a publicidade elaborada e divulgada sobre Florianópolis - como por exemplo a campanha da Prefeitura Municipal "Florianópolis vale a pena" - coloca a prática do surfe como um dos signos - juntamente com o mar, rendeiras, danças folclóricas, etc... - que caracterizam a cidade.
Os desdobramentos desta parceria ficam muito claros no artigo de David Husadel - diretor da Revista INSIDE (uma revista especializada no surfe produzida em Florianópolis - onde nos aponta que o processo de implementação do surfe teve um ótimo apoio financeiro por parte das estruturas governamentais e
"que, junto ao esporte focalizaram um grande potencial turístico e de marketing para Florianópolis e todo o litoral catarinense. [...] No decorrer da década de 80, grandes campeonatos aconteceram aqui em Florianópolis e a repercussão de propaganda para a cidade realmente foi enorme, talvez, quase com certeza, o surf tenha sido o principal veículo de propaganda em prol do turismo para o município. A praia da Joaquina saiu do anonimato para a mídia internacional. Grandes surfistas e pessoas ligadas ao quadro técnico de um campeonato foram criados por aqui, ou seja os frutos apareceram para todos os lados." (David Husadel, Frutos de um trabalho, INSIDE, 1992, 43:65)
O surfe, na medida em que é apropriado pelas administrações públicas e pelos empresários da cidade enquanto um signo que a representa, e ao inseri-lo num sistema nacional e internacional através do turismo - via publicidade (vide Figura 3) - recupera e reafirma, também, algumas características deste esporte que nos permitem situá-lo na dimensão da globalidade (Ver Anexo I).
Por outro lado, a relação surfe x turismo propiciou a emergência de uma gama de produtos que reforçam a idéia de que o surfe é um dos elementos constituintes da identidade da cidade. São chaveiros, camisetas, plásticos, adesivos, adereços de decoração, lembranças da cidade, etc... que divulgam, confirmam e asseguram a equação surfe-Florianópolis.
FIGURA 3 - Propaganda publicada pela administração estadual em revista de distribuição nacional. Surfe, descanso, lazer e Santa Catarina são os motes para mensagem publicitária - ISTO É - 01.12.93, p. 94
3 - Santinho: o Turismo... as Mudanças...
3.1 - Sobre o Nome do Local
Santinho se localiza ao norte da Ilha de Santa Catarina, ficando cerca de 35 kms do centro de Florianópolis, entre os bairros dos Ingleses (ao norte), Rio Vermelho (a oeste) e Moçambique (ao sul) e, a leste, fica o mar (Figura 4). O bairro denomina-se Santinho, pois em um dos morros que circunscreve os limites da praia (Costão dos Ingleses, segundo os nativos) encontrou-se, inscrita numa pedra, a imagem de um "Santo", desconhecido pelos moradores do lugar; imagem esta que foi levada para o Museu Arqueológico do Colégio Catarinense (centro da cidade) pelo Padre Rohr .
"Nos paredões de basalto da Praia do Santinho existe ainda grande número de inscrições rupestres e o nome daquela praia originou-se devido a uma inscrição rupestre em forma de boneco, existente num bloco de basalto". (Rohr, 1959a:205)
A presença destas inscrições torna o local propício para passeios tanto para os turistas como para a gente do lugar. Vale notar que uma destas inscrições é a logomarca do empreendimento turístico "Costão de Santinho", referido anteriormente.
INSERIR FIGURA 4
FIGURA 4 - Mapa da Ilha de Santa Catarina
Segundo Rohr (1969), o local onde se localizava a "imagem do Santo" passou a ser lugar de várias manifestações religiosas - novenas, missas, etc., e corria o risco de ser danificada. Com intuito de preservar a inscrição, ele e sua equipe, por volta de 1930 (data aproximada), recortaram o pedaço da pedra em que estava desenhado a "figura do Santo", levando-o para o Museu do Colégio Catarinense.
Este fato, segundo o próprio Pe. Rohr, criou várias polêmicas com os moradores do local as quais, até o momento, não foram superadas, principalmente pelos jovens do lugar.
Indagando um morador antigo do local - "Seu" Bilé - sobre o "Santo", vim a saber que ele era "adorado" pela população. Muitas novenas, muitas missas foram rezadas no local onde se encontrava. Até que um dia, "dormi sabendo que ele estava ali e quando acordei ele não estava mais lá". Durante a conversa, o filho de "Seu Bilé" (jovem de 23 anos) manifestou-se, dizendo que "a pedra estava escondida no Colégio Catarinense e que os padres não queriam devolvê-la para o bairro".
Dinalto, um dos jovens que faz parte da "Galera", em nosso último encontro em Julho/94, várias vezes se referiu ao fato do Santinho não estar mais no bairro, demonstrando uma certa insatisfação e indignação pelo fato de os padres terem tirado o que ele chamou de "essência do bairro". Questionado sobre se ele sabia qual era a forma do "Santo", disse de imediato: "Segundo meu pai, era a figura de Jesus Cristo".
As reclamações sobre tal fato e a sensação de expropriação são muito comuns quando se toca no assunto o que nos leva a pensar que a "história do Santinho" é uma história marcada pela "perda" de um elemento fundamental para sua identidade - a imagem do "Santo" inscrita na pedra. Imagem que os unia - nas missas, nos rituais, nas festas, etc. - imagem que lhes dava proteção em terra e no mar - afinal a praia é "DO SANTINHO".
3.2 - O Povo, as Atividades Econômicas, as Relações...
Moram no local cerca de 4000 pessoas, sendo sua maioria descendentes de açorianos. Entretanto, há várias famílias que vieram de outras cidades e de outros Estados, alguns acompanhando o fluxo migratório acontecido na década de 1980, outros, mais recentemente, acompanhando o desenvolvimento do turismo na região (trabalhadores do Costão do Santinho, por exemplo). Apesar de não serem em grande número, alguns "estrangeiros" desempenharam papéis importantes dentro da organização social do bairro: por exemplo, no início da pesquisa, o presidente da Associação dos Moradores do bairro era um gaúcho.
Segundo os moradores mais antigos, Santinho sempre recebeu pessoas durante o verão, principalmente depois de 1966, quando abriram a estrada até a Praia dos Ingleses. Os visitantes, geralmente acampavam na praia e no morro que faz limite com a praia de Moçambique - Morro das Aranhas. Dona Nilza e Seu" Jorge, em nossas conversas, sempre recuperavam a "imagem" das várias barracas instaladas na areia da praia e no morro, "dando um colorido todo especial para o lugar".
Este contato - nativo x turistas x "os de fora" propiciou mudanças significativas na estrutura urbana do bairro, no cotidiano das pessoas, nos processos de socialização, nas atividades tradicionais que ali se desenvolviam.
I
A atividade econômica mais comum no bairro é a pesca, que pode ser desenvolvida nos barcos da Colônia - ponta da Praia de Ingleses - e na própria praia do Santinho - "linhada". Tal atividade é estritamente masculina. Como veremos mais adiante as mulheres e crianças ajudam a puxar a rede quando nos lances de tainha. A maioria dos pescadores que moram em Santinho não possuem barco próprio; eles trabalham como empregados nos barcos que ficam alocados em Ingleses. Nesta pequena colônia encontram-se "barracos" para onde se dirigem os interessados em comprar peixes. A pesca por "linhada" por sua vez não tem finalidade comercial, o produto desta é para o consumo do pescador e de sua família.
A partir desta atividade econômica pude identificar uma trajetória profissional que é "trilhada" por alguns jovens do local. Pude observar tal trajetória, quando em dezembro de 1990, encontrei vários jovens que até então para mim eram desconhecidos. Vim saber que eles estavam de férias e que trabalhavam nos barcos de pesca no Rio de Janeiro e em Rio Grande (RS) e, após Natal e Ano Novo, retornariam para o mar.
Em 1994, esta trajetória, comum entre os jovens do local e também para os de outras comunidades da Ilha (Maluf, 1989, Rial, 1988, Beck, 1989, Lago, 1983), não era mais considerada como uma boa alternativa de trabalho, pois com a pesca predatória desenvolvida pelos grandes barcos, não existe "mais cardume bom de matar" (segundo "Seu" Bilé).
A saída dos jovens do lugar para os barcos de pesca em alto era muito comum e este movimento migratório ocorre há muitos anos. "Seu" Bilé, "Seu" João e tantos outros depois deles, saíam de casa em busca de trabalho nos barcos com a finalidade de "fazer um pé de meia" para depois retornarem, casando-se ou montando um negócio.
Em 1990 pude verificar quanto o retorno destes jovens é um momento especial ("Seu" Bilé nos conta que chegou a ficar "embarcado" durante dois anos) para aqueles que ficam no lugar. Eles trazem novidades das mais variadas (informações sobre pessoas conhecidas, discos, revistas, etc.), contam suas aventuras, descrevem os lugares por onde passaram, as oportunidades financeiras que tiveram, o dinheiro que tal atividade lhes proporcionou, etc.
Apesar de estar vinculada à pesca - uma atividade característica do bairro na qual praticamente todos se envolvem desde pequenos - esta trajetória vem deixando de ser opção para os jovens que pretendem se inserir no mercado de trabalho, principalmente em função das oportunidades que foram aparecendo com o crescimento do turismo na cidade e no bairro.
Entretanto, seja ele qual for, o trabalho é uma questão fundamental para os moradores do bairro. Geralmente as crianças na idade de 10/12 anos já acompanham seus pais seja nas atividades relacionadas à pesca (na Colônia dos Ingleses e/ou na linhada), seja ajudando-os em outras atividades como, por exemplo, na construção civil (em casa ou para alguém), no comércio, etc.
Paralelamente a estas atividades, a maioria destes jovens também estuda, ou na escola do bairro ou na de Ingleses (alguns freqüentam escolas no centro de Florianópolis). Para os adultos, o jovem ou estuda ou aprende uma profissão - melhor se fizer as duas coisas. Justificam suas preocupações em função das dificuldades da vida e, para enfrentá-las, "eles precisam de ter uma profissão, e sem estudo não dá prá ficar" (Dona Nilza).
A importância do trabalho para os rapazes de Santinho ficou-nos bastante clara ao escutarmos o depoimento de um deles (ele já esteve nos barcos do Rio Grande e naquele momento estava pretendendo ajudar seu cunhado no atendimento de um mercadinho) . Segundo ele, com o dinheiro que se consegue com o trabalho, pode-se ter as coisas que se quer, comprar alguma coisa que o pai não pode oferecer (e às vezes até emprestar dinheiro para ele), pagar as próprias contas, beber uma cerveja; enfim, ser independente ... Esta idéia - a da independência paterna - é comum na maioria das expectativas doos jovens quanto às perspectivas do trabalho .
Em várias oportunidades, principalmente nas rodas de "bate papo" pude verificar que para os rapazes do lugar, o trabalho, além de tornar o homem independente, também o "dignifica"; é através dele que se chega a um "status superior" e, além disso, aqueles que não trabalham (mantendo-se dependentes dos pais) são fontes de fofocas e intrigas de parte daqueles que desenvolvem alguma atividade econômica.
Aqueles que não fizeram a opção de trabalhar nos barcos geralmente procuram trabalhar na cidade (ou mesmo por ali - Ingleses e/ou Santinho). Na cidade, geralmente se envolvem em atividades como ofice boys, escriturários, balconistas, vendedores, etc. Para aqueles que não saem do bairro, resta-lhes desenvolverem atividades relacionadas ao comércio - balconistas, caixas, frentistas, etc. - ou se inserirem no trabalho da construção civil - e aqui o Costão do Santinho é visto como um empreendimento que lhes oferece boas oportunidades de trabalho.
Neste momento, cabe uma reflexão, tendo em vista a percepção dos moradores do Santinho sobre tal empreendimento.
Como assinalei anteriormente, o empreendimento "Costão do Santinho" implantou-se no projeto de inserção da cidade de Florianópolis no universo do turismo internacional. De uma maneira geral ele foi bem aceito pelos moradores do Santinho, tendo em vista as perspectivas de emprego, desenvolvimento, progresso, etc.
Segundo um dos moradores do lugar - Popó (Apolinário, 36 anos) - este projeto começou a ser divulgado formalmente entre os moradores do Santinho em meados de 1987; no entanto, para nosso interlocutor, ele já estava sendo "gestado" há muito tempo.
Para este nativo, tal processo iniciou-se com o cerceamento dos animais - bois, vacas, cavalos, ovelhas, etc. - no Morro das Aranhas - que faz limite com a praia de Moçambique. Até então, o gado vivia solto no lugar, "zanzando" pelas ruas ...
Na medida em que começaram a aparecer os loteamentos e a chegar os novos proprietários dos terrenos, passou-se exercer uma certa pressão para que os animais ficassem presos. Assim, o gado foi sendo preso no referido morro, que, mais tarde, foi cercado com arame, dificultando o acesso ao mesmo (cerca que existe até hoje).
Outro passo no sentido de se implementar o projeto das "classes dominantes", segundo nosso interlocutor, foi a compra dos barracos dos pescadores e dos terrenos adjacentes ao Morro das Aranhas. A família proprietária das terras em questão era muito grande - seis irmãos - e na partilha dos bens - no decorrer do tempo - ela foi se diviidindo. Na medida em que os proprietários precisavam de dinheiro, ou em função das ofertas dos empreendedores, elas foram sendo vendidas .
Segundo "Seu" João - um membro da família que era proprietária das terras em que estão sendo realizadas as obras do Costão: "quando uma casa não tem um pau central firme, ela cai. Foi o que aconteceu. Meu avô deixou as terras para meus tios e meu pai. Meu pai deixou a terra para mim e meus irmãos. Estes venderam quase tudo, praticamente não sobrou nada para a família".
Antes do início da construção do empreendimento, prossegue Popó, e com o projeto aprovado na Câmara Municipal, os representantes dos empresários se reuniram com alguns moradores do local para explicarem como seria efetivada a construção do empreendimento. Nesse encontro, asseguraram a preservação do meio ambiente, a manutenção dos espaços característicos do lugar - como é o caso dos moinhos de farinha; da "vigia" que fica no Morro das Aranhas; das inscrições rupestres, etc.; a concessão para a utilização das dependências do empreendimento quando da pesca da tainha, e, o mais importante, oportunidade de emprego para a população.
Nesta reunião, ainda segundo nosso informante, praticamente não houve nenhuma manifestação dos presentes questionando o empreendimento, pois o que havia sido apresentado satisfazia as expectativas e necessidades dos habitantes do lugar.
Vale a pena ressaltar ainda que o símbolo escolhido como logomarca para o empreendimento é uma cópia estilizada de uma inscrição indígena localizada no morro que mantém os limites com Moçambique - Morro das Aranhas (ver Fotos 1 e 2), o que nos sugere uma reoperacionalização - uma releitura - da realidade simbólica dos que ali moram: o "mistério" das inscrições rupestres foi reapropriado como símbolo do "status", do lazer, do conforto, do "primeiro mundo".
FOTO 1 - Inscrição rupestre no Morro das Aranhas.
FOTO 2 - Placa indicando distância do Costão do Santinho - observar a semelhança entre a logomarca do empreendimento com a inscrição rupestre da foto anterior.
Na medida em que em Santinho não existe oportunidades de emprego, a opção de trabalhar no Costão do Santinho se torna bastante atrativa pois é um emprego que, além de ser no bairro, oferece alguns benefícios trabalhistas como carteira assinada, direito a FGTS, férias, etc. Nesse sentido, várias pessoas do local se engajaram na construção da obra e, quando questionados sobre o valor do empreendimento para o bairro, acharam que era muito bom para o Santinho, pois poderia ser uma fonte de geração de empregos para os moradores dali .
Outras atividades "profissionais" também são possíveis, principalmente para aqueles que não desejam manter um emprego fixo (como é o caso dos surfistas): ora na construção civil em locais que não exigem horário fixo, ora limpando uma roça, ora num posto de gasolina, ora como garçom; ou seja, onde houver possibilidades de ganhar "algum", eles "topam" (no verão, durante a temporada, como a população do lugar e de Ingleses aumenta, o número de oportunidades de trabalho cresce significativamente).
As mulheres geralmente cuidam das lides domésticas e das crianças. Em certos horários do dia - quando livres do trabalho de casa - elas desenvolvem outras atividades como a renda, capinagem de roças de mandioca, faxinas em casas de veraneio, etc. As jovens dirigem-se para o centro de Florianópolis a procura de trabalho e geralmente tentam vagas como recepcionistas, balconistas, etc. Aquelas que ficam no bairro tentam algum emprego ou ficam em casa ajudando as mães.
Uma atividade econômica que podemos considerar como tradicional no bairro é a desenvolvida nos engenhos de farinha de mandioca. Tal atividade caracteriza-se por algumas práticas relativas ao preparo da planta para a moagem e o fabrico da farinha, assim como o trato das roças. No lugar existem três moinhos, e aí trabalham tanto homens como mulheres, que fazem a moagem da mandioca, do milho, do café, etc.
Segundo "Seu" João, antigamente havia cerca de 21 moinhos no Santinho que se distribuíam pelas casas ao longo da estrada de terra. O trabalho da roça era dividido com o trabalho da pesca - aquele de manhã, este à tarde. A fartura era grande: plantava-se mandioca, feijão, milho, amendoim, melancia, etc. Ninguém passava necessidade. Esta era suprida à base de troca de serviços ou de alimentos. Assim, na perspectiva de "Seu" João, na medida em que havia fartura para todos, não se tinha para quem vender e a produção que excedia se perdia.
Atualmente os moinhos do lugar suprem as necessidades de algumas pessoas que ainda mantêm sua roça de mandioca, milho, café, etc. A produção da farinha é para o consumo próprio. O pagamento pelo trabalho da fabricação da farinha ou é feito em dinheiro ou com uma parte da produção - às vezes o dono do engenho se encarrega das roças de outras pessoas, responsabilizando-se por todo o processo desde a plantação até a fabricação da farinha .
Na última incursão no Santinho, pude observar o trabalho realizado por algumas pessoas em um dos engenhos quando descascavam a mandioca para a moagem. Participavam da função duas famílias: uma era constituída por um homem, sua esposa e filha - esta era mãe de duas crianças que estavam também por ali. Outra família era formada por uma mulher (irmã do homem que estava ali), sua filha e sua nora ( ver Fotos 3 e 4).
FOTO 3 - Carro de boi - utilizado para o transporte da mandioca - disputa paisagem com automóveis de última geração.
FOTO 4 - Família raspando mandioca para moagem. Notar presença de crianças ajudando na função.
Sentado na porta de entrada do engenho, acompanhando o movimento das pessoas verifiquei que "o cotidiano" do lugar passava pelas conversas que as mulheres travavam entre si - o homem ficou calado praticamente todo o tempo. As vezes em que falou referiu-se ao trabalho que estavam realizando.
Durante o trabalho as mulheres falavam da escola das crianças; da segurança no bairro, principalmente no local onde elas lavam roupa; chamavam a atenção das crianças; vez ou outra as mais velhas, lamentando o cansaço e o calor, pediam a Deus forças para terminarem o trabalho.
As crianças pululavam entre os adultos. Eram duas meninas - as "manas" - uma de sete e a outra de cinco anos. Geralmente a mãe chamava à atenção de uma/ou outra para brincarem ali perto; para não brigarem, etc. Vez ou outra, as crianças descascavam mandiocas - na medida em que "enjoavam" ou se "cansavam" deixavam a lide para mais tarde voltar, ou espontaneamente ou sob o apelo da mãe ou da avó.
Apesar das "chamadas" dos adultos, havia uma certa "complacência" na relação "adulto x criança" no que se referia às regras de conduta. Várias vezes a mãe e a avó chamaram a atenção das crianças, porém não se exaltaram, não gritaram e - frente a alguma resposta negativa das crianças - sorriam entre si deixando prá lá o que solicitaram.
O trabalho na roça fica, geralmente, a cargo dos homens que se encarregam da capinagem, plantação e colheita - à vezes, as crianças e as mulheres participam destas atividades. Na medida em que a maioria das propriedades não pertence mais aos "nativos",existe uma certa escassez de terra para o plantio da mandioca. Aqueles que desejam produzir a farinha e não possuem terras próprias, procuram plantar, conforme um morador, em áreas cedidas, por empréstimo, pelos proprietários de terrenos desocupados.
Numa conversa travada entre as mulheres e uma mulher que visitava o engenho, fiquei sabendo que aquela era época em que o engenho começaria a trabalhar - estávamos em Julho/94 - pois, com a colheita da mandioca, o proprietário do engenho começaria a preparar a terra para a próxima safra.
Conversando com seu "Seu" Bilé e "Seu" João sobre as atividades que desenvolviam quando adolescentes, eles se referiram às brincadeiras que realizavam nos engenhos. Ali desenvolviam várias atividades: brincavam de subir no telhado através de cordas; "matavam" passarinhos, etc. Durante a conversa falaram que os adolescentes - meninos e meninas - saíam em grupo e brincavam tanto no interior dos engenhos, como na estrada, na lagoa, nas plantações, durante as novenas, etc. - não havia discriminação de sexo em seus jogos. Ali, no engenho, ficavam sob a responsabilidade de suas mães, enquanto os pais e irmãos mais velhos iam pescar ou cuidar da roça. À medida que iam ficando velhos, passavam a acompanhar os homens, e as "moças" ajudavam as mães nas atividades de casa e no engenho.
Santinho acompanhou o processo de desenvolvimento da região (Franzoni, 1993, Lago, 1983) submetendo-se às regras da especulação imobiliária intensamente, processo esse acelerado pelo desenvolvimento do turismo. O crescente número de construções de casas de veranistas e toda a estrutura urbana que as têm acompanhado transfigurou por completo as "antigas comunidades pesqueiras da Ilha" (Beck, 1979).
Beck (1979), analisando o mesmo fenômeno no Sul da Ilha assinala que tal processo implicou na expropriação dos descendentes açorianos, desarticulando-se as antigas unidades de produção: a pesca artesanal, a agricultura, a produção de artefatos diversos, farinha, etc...
Para Franzoni (1993), os filhos e netos dos ilhéus na medida em que não são mais herdeiros da terra, passam a ser absorvidos pelo mercado de trabalho de maneira diferenciada: alguns, visualizando o desenvolvimento turístico e seus desdobramentos, conseguiram abrir pequenos negócios. Mas a grande maioria passou a assumir a condição de assalariado - abandonando a pesca na colônia - em serviços como na construção civil, como garçons, domésticas, faxineiras, arrumadeiras, etc.
As observações de Beck (1979) e Franzoni (1993) podem ser generalizadas para a realidade do Santinho, e é o que podemos depreender da fala de "Seu" João, quando analisa as mudanças ocorridas no lugar.
Para ele "o Santinho acabou!". Justifica sua afirmação assinalando uma certa desagregação do bairro que está relacionada com a falta de respeito entre as pessoas que ali moram: "não existe mais respeito entre as famílias, como antigamente, entre pais e filhos e irmãos há muita briga".
Apesar das mudanças, avalia que vive melhor agora do que quando jovem: "antigamente tinha muita fartura em Santinho, mas também tinha muito sofrimento, muita gente morria por falta de assistência. Com a abertura da estrada de Ingleses em 1966 as coisas começaram a melhorar pois chegar a cidade ficava mais fácil em alguma emergência".
Além disso, o mundo hoje para "Seu" João está mais confortável, as coisas estão mais acessíveis, e "com a televisão o mundo se abre aos nossos olhos."
Na verdade, o que percebemos na fala do "Seu" João não é o fim do Santinho, mas a mudança. Novas perspectivas se abrem para os moradores do lugar com a chegada da estrada e dos serviços públicos. Tais mudanças, por sua vez, são implementadas com a chegada de novos moradores e a presença sazonal de turistas no bairro.
Em Santinho, este processo de mudança tem produzido "estranhas" combinações entre os produtos e as atividades que representam a "modernidade" com as atividades tradicionais do bairro. Na Foto 5, temos a imagem de um engenho de farinha - num dos pilares da "varanda" do engenho encontramos a placa - "Vende-se 6 aptos" - e ao lado esquerdo da foto podemos observar uma antena parabólica. Ou seja, as relações sociais que se estabelecem em Santinho - na medida em que ali se implementa um processo de "modernização"- possibilita a convivência de símbolos bastante contraditórios .
A perspectiva de que haja um aumento constante no fluxo de turistas a cada ano engendra uma outra atividade econômica junto aos moradores de Santinho: a de "alugar casas". Caracterizada como uma fonte de renda alternativa para muitos moradores do local, o "alugar casas" movimentou, durante o período de observação, muitos empreendimentos: ampliaram-se casas (ver Foto 6), construíram-se outras, adquiriram-se móveis e eletrodomésticos para dar conta das necessidades dos prováveis inquilinos, etc.
FOTO 5 - Engenho de farinha - vista externa - convívio entre o "moderno" e o "tradicional
FOTO 6 - Construção em Santinho - ampliação de residência para futuro aluguel para turistas
Tal perspectiva, no entanto, não é igual para todos. Existem aqueles que, além da casa onde moram, têm outras duas ou três casas (às vezes no mesmo terreno) de modo que estas últimas já são destinadas para essa finalidade - o aluguel. Outros, porque dispõem de uma única residência, chegam a sair dela para a alugar, indo morar - durante o verão - na casa de parentes e/ou amigos.
Este movimento - o preparar-se para o verão - ocorre durante todo o ano (mais intensamente na primavera), ou seja, os moradores do lugar sempre se envolviam em atividades cuja finalidade era a de organizarem-se a fim de oferecerem as comodidades para os visitantes que chegam por ali .
Já na temporada podemos notar uma certa divisão das tarefas que se estabelece em função do movimento de turistas: alguns cuidam dos aluguéis ou mesmo da venda de imóveis (os agenciadores); outros cuidam da propaganda - que se efetiva pela exposição de placas ao longo das vias de acesso ao bairro (geralmente executada pelas crianças); há aqueles que cuidam da manutenção das casas e de seus equipamentos; é neste período que as "faxineiras" têm mais trabalho; etc.
II
No bairro há vários estabelecimentos comerciais - tipo armazéns-bares, supermercadinhos, bares - onde além de venderem os mais variados produtos, caracterizam-se como pontos de encontro - normalmente noturnos - para os homens. Estes para ali se dirigem para tomar um "gole" ou uma cerveja e conversarem (geralmente depois do trabalho).
Nestes encontros discute-se sobre o "trabalho", os "velhos tempos", o "salário", os "preços", etc., ou seja, são espaços de socialização onde as "histórias" (passadas e presentes) dos indivíduos - velhos, jovens, crianças - são compartilhadas .
A vida noturna do bairro, durante a semana, restringe-se as "idas ao bar". Alguns estabelecimentos oferecem alguns jogos como dominó, baralho ou sinuca. Já nos finais de semana, além destes "bares", existe a possibilidade de se ir ao "Bailão do Albino" em Ingleses - salão de danças bastante freqüentado pelos moradores de Santinho (o "Bailão" fica cerca de três quilômetros da praia de Ingleses, na estrada principal que lhe dá acesso - ver Figura 4) .
Durante o inverno o "Bailão" é o principal ponto de encontro dos rapazes do Santinho. Acompanhando-os pude verificar que para ali se dirigiam com o intuito de se divertirem e para "paquerar". Entretanto, tendo em vista que não trabalham regularmente, geralmente não dispõem de dinheiro para pagarem suas entradas. Quando isto acontece - ou seja, não entram - ficam perambulando por ali, nas redondezas - indo ao "boliche", que fica no restaurante ao lado do "Bailão"; ou a um barzinho que fica ao lado da casa de dança (que geralmente abre na primavera e oferece música ao vivo aos fregueses). Quando os bares próximos a praia estão abertos, eles geralmente passam por ali antes de irem ao "Bailão".
A casa de danças oferece aos freqüentadores três tipos de músicas: vanerão, rock, e lenta. Os jovens do Santinho se dispersam entre as salas. Aqueles que pretendem arrumar uma "gata" para passar a noite procuram ficar na sala onde se toca música lenta, pois ali "podem paquerar e dar uns amassos nas garotas" enquanto dançam. No entanto, na volta para casa geralmente vêm desacompanhados, contando e comentando sobre a paquera e/ou o "malho" da noite.
Na primavera as idas e vindas noturnas - de Santinho a Ingleses - começam a se tornar mais freqüentes pois os bares, principalmente os de Ingleses, reabrem suas portas oferecendo aos freqüentadores música ao vivo - o que é muito apreciado pelos "fregueses", ampliando-se assim as oportunidades de lazer e de "paquera" para os moradores de Santinho.
Com a chegada do verão tanto as oportunidades de lazer como de emprego se ampliam. Os estabelecimentos até então fechados como restaurantes, hotéis, bares, etc., abrem-se para receberem os turistas. Entretanto, observou-se que alguns proprietários destes estabelecimentos em Santinho - principalmente os dos bares e os dos restaurantes - não oferecem "vagas" paras as pessoas do lugar. Questionando um destes empreendedores, vim saber que tal atitude estava relacionada com o fato de que os vínculos de amizade não poderiam ser confundidos com as relações de trabalho, e que as pessoas que ali moram - pelo fato de conviverem num mesmo espaço - não estabeleciam esta diferença com clareza (principalmente entre os mais jovens).
3.3 - Movimento Turístico e Temporalidade
Podemos depreender das observações acima que, à medida que o processo de modernização do lugar e contato nativo x turistas x "os de fora" se consolidaram no decorrer do tempo, criou-se uma perspectiva, por parte dos moradores de Santinho, de se beneficiarem das mudanças decorrentes destes "encontros".
As mudanças no cotidiano dos moradores do lugar, promovidas com a chegada do verão e com a dos turistas (principalmente aquelas relacionadas com atividades econômicas) ainda estão sendo "digeridas" pelos moradores do lugar. Assim, pudemos identificar um movimento através do qual o bairro - no início da temporada - se "abre" para o "outro", para "recebê-lo" vindo a "fechar-se" no final do verão, movimento este marcado ritualisticamente.
As mudanças acima referidas vêm sendo, de uma certa forma, internalizadas pelos moradores do Santinho no decorrer do tempo e, concomitantemente, alguns valores tradicionais locais são confirmados e reafirmados a partir de algumas situações sociais que qualifiquei de socializadoras. Pude acompanhar durante o trabalho de campo - 1990/91 - e nesta última incursão ao bairro - Julho/94 - que o movimento que identifico de "abrir-se" e "fechar-se" se configura numa dimensão temporal, marcado por vários "rituais", mais especificamente: o terno de reis, a farra do boi e a pesca da tainha. Assim, descreveremos em seguida como se caracteriza esse movimento e como os rituais marcam estes momentos.
Durante o outono e o inverno - abril até setembro - as pessoas estão envolvidas em atividades relacionadas principalmente com seu cotidiano - trabalho, estudo, lazer, etc., vez ou outra realizam atividades que estão vinculadas com a "vinda" dos "futuros visitantes" - reformas em casas, construções, etc., de tal modo que os moradores "fecham-se" para o "outro" - metaforicamente: "fecham para balanço" (lembro que eles estão saindo do verão).
Quando chega a primavera, notamos que estas últimas atividades começam a tomar mais tempo dos moradores do bairro: uma pressa em terminar os preparativos para o verão toma conta das pessoas. Isso ocorre de tal modo que, nas horas vagas, vira e mexe, elas se encontram envolvidas totalmente com estes afazeres (pintando, carpindo, cortando a grama, construindo, etc.). É neste período que começam a chegar as solicitações e/ou reservas de casas, estabelecendo-se assim uma rede que até então parecia "adormecida" .
No verão, o bairro está em "festa", é gente indo e vindo pelas ruas, os moradores de um lado e os turistas de outro: estes procurando a "novidade", o "lugar mais barato" para ficar, a "cerveja gelada e o peixe mais gostoso"; aqueles "mostrando o sorriso" oferecem uma casa aqui, outra ali... Carros trazendo e levando gente, invadem as ruas... os bares cheios... A sorveteria do lado da via principal que ficou fechada durante todo o outono/inverno abre de novo as suas portas. Aqui e ali aparecem, de "mansinho" os novos empreendimentos: um "restaurantezinho", uma "pastelaria"... As roupas do inverno são esquecidas e, novamente, guardadas nos armários; em seu lugar o calção, a camiseta, o biquíni... Santinho se "abre" para o verão e para o "outro" ...
Este movimento, por sua vez, é circunscrito por algumas atividades sociais que envolvem praticamente todo o bairro. Tais atividades, consideradas aqui como socializadoras, tentam recuperar e reafirmar alguns valores comuns aos moradores do bairro, como por exemplo, a força, a coragem, a virilidade, a feminilidade, a solidariedade, etc. atividades consideradas como tradicionais do lugar (conforme "Seu" Bilé e "Seu" João).
Assim temos, durante o inverno, logo após o verão, a farra do boi (Semana Santa) e em Junho/Julho a pesca da tainha; e no início do verão, o terno de reis. Tais "encontros" (que serão descritos com mais alguns detalhes adiante), neste contexto, são considerados como "rituais", na medida em que re-colocam alguns aspectos da vida coletiva do bairro, e propiciam a emergência de um espaço social capaz de "reinventar" uma "ordem" que está sob constante ameaça e em constante mutação.
Uma atividade social - também aqui considerada socializadora - que se mantém constante durante todo oo ano é o "encontro para o gole de cerveja" compartilhado nos bares todas as noites pelos homens que chegam do trabalho. Tal atividade é aqui considerada como "ritual social" na perspectiva apontada por Clarisse (1986).
Este autor nos aponta que o "aperitivo" - "o gole de cerveja compartilhado" no nosso caso - apresenta algumas características rituais pois a periodicidade e o seu caráter de comensalidade possibilitam a estruturação de um espaço social onde os seus participantes reconstituem a sociedade em que estão inseridos como um único "ser", como uma "totalidade". Esses momentos trazem implícito duas dimensões opostas - ambas relativas à construção da identidade social: "a da comunhão", "a da integração", onde as discussões partem de uma diferença para chegar a uma identidade; e a dimensão da distinção, da hierarquização, onde as ações partem de uma identidade para chegar a uma diferença.
Pude observar que em Santinho estes momentos propiciam a reelaboração do cotidiano dos que dele participam - geralmente homens - pois alguns valores sociais são colocados em discussão , histórias são recontadas, a política colocada em dia , negócios são fechados, as estratégias do futebol são discutidas, etc. Ou seja, neste espaço social exercita-se além da experiências passadas e presentes, as possibilidades que as mudanças promovidas pelos "tempos modernos" oferecem aos moradores do bairro. Assim, ao reconstituírem suas "histórias" os participantes destes encontros asseguram e reafirmam algumas características vitais para a identidade deste universo social o que, concomitantemente, estabelece as diferenças existentes entre os "nativos" e turistas/"os de fora".
Participei de vários encontros noturnos nos bares do Santinho e pude perceber que, em determinadas situações, sentia uma certa dificuldade em participar das discussões que se entabulavam em torno das mesas. Uma das estratégias que era utilizada pelos integrantes da roda para o estabelecimento de fronteiras entre "nativos" x "os de fora" (no caso eu) era o "falar ligeiro" e a utilização de "termos específicos" do lugar. Geralmente o tema destas conversas em que eu não tive acesso tratava de assuntos específicos do lugar: pesca, política local, etc...
Além destes espaços sociais - os bares - onde há uma grande freqüência por parte dos rapazes do Santinho, existem algumas "festas tradicionais" que se desenvolvem ao longo do ano e que se caracterizam como momentos de encontro para toda a comunidade. Durante nossa estadia no bairro observamos a saída do Terno de Reis em 12/90, a Farra do Boi, em 04/90, e o Lance de Tainha em junho 90, 91 e 94.
Início do Verão - o Terno de Reis : Conforme os organizadores do terno de reis "executado" em 1990 teve como objetivo propiciar o encontro das pessoas na casa de algum membro da comunidade e uma tentativa de manutenção de algumas tradições do bairro. Uma maneira de dar "peso" à "festa", foi a presença de uma senhora que viveu no bairro há muitos anos - cantadora dos "ternpos de antigamente".
O cortejo do terno - composto de tocadores e cantores - ao chegar na casa de uma pessoa escolhida previamente, cantava inicialmente algumas músicas próprias do ritual - de cunho religioso - sendo, em seguida, convidado a entrar na casa. Ali era oferecido ao cortejo e aos seus acompanhantes bebida e comida. Enquanto estavam na casa, os "cantadores" cantavam músicas que estavam nas paradas de sucesso - lambada, música sertaneja, etc... Após beberem, comerem e cantarem, os participantes do cortejo cantavam algumas músicas rituais cujo teor era de agradecimento e despedida e se encaminhavam para outra residência.
O cortejo era acompanhado por um número considerável de pessoas - desde os mais velhos até crianças - que ficavam ora fora da casa do "escolhido" ora dentro da residência em busca de alguma bebida ou comida.
Foram visitadas cinco casas na noite em que acompanhamos o terno. As duas primeiras eram residências de pessoas que tinham um vínculo familiar com aqueles que organizaram o evento. A terceira casa visitada foi a de um amigo de um dos organizadores que era novo no lugar. Sua casa recém tinha sido acabada e ele a estava mobilizando. A execução do terno nesta última residência nos sugere a "inclusão" do "novo" na sociedade local. As duas últimas casas eram de pescadores que ficam próximas ao Morro das Aranhas. Ali moravam algumas pessoas idosas que solicitaram a presença do terno em suas casas. A escolha destas duas residências, segundo os organizadores, estava relacionada aos vínculos de amizade e pelo respeito que os moradores do bairro tinham para com aquelas famílias.
Ali, além da cantoria de músicas próprias do ritual (no início e final) e de músicas populares, as pessoas que acompanharam o terno dançaram a chimarrita - dança típica gaúcha - e foi oferecido, aos presentes, uma bebida característica da região denominada "temperada" .
Vale a pena notar que as relações familiares e de amizade foram os determinantes na escolha das residências em que o terno passaria .
Pós-Verão - a Farra do Boi: Durante a observação da Farra do Boi acontecida em 1990 ficou bastante claro que nem todos os moradores do bairro aprovam esta "brincadeira", o que criou um certo clima de constrangimento entre algumas famílias do bairro (principalmente entre aquelas que não são oriundas do Santinho).
Algumas semanas antes da farra, os farristas fizeram uma "arrecadação" entre os interessados e, com o arrecadado, conseguiram comprar seis animais que "animaram" a "festa", culminando com dois churrascos (ver Foto 7).
Acompanhando a "farra" pude verificar que este era um momento onde valores como "coragem", "desprendimento", "virilidade", "força" mediavam constantemente as relações entre as pessoas. Estes estavam sempre presentes nas histórias contadas sobre experiências passadas e sobre as que eram experienciadas naquele momento.
Praticamente durante todo o tempo em que os animais ficaram presos - inclusive à noite - eles eram molestados pelos "farristas". Pendurados nas cercas do curral, eles gritavam, jogavam pedaços de madeira. Os mais corajosos entravam no cercado puxando o rabo dos animais - "enfezando-os" (ver Foto 8) - a idéia era a de deixar os bois bastante brabos para as corridas.
Aqui também se fez presente a bebida. O bar próximo ao lugar onde os animais ficaram estava cheio, rodas de cerveja e aguardente acompanhadas pelas histórias de coragem "esquentavam" a disposição dos farristas para o confronto com o boi (ver Foto 9).
Foram três dias de "festa". Os bois eram soltos geralmente no início da tarde e logo que saíam do curral, a correria começava - era gente para todos os lados com pedras, paus, camisas nas mãos correndo atrás dos animais. No final da tarde, ao meio da cerveja e aguardente, os farristas contavam a sua experiência, a coragem, o medo, a imprevisibilidade do encontro com o animal, etc... (ver Foto 10).
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FOTO 7 - A chegada do Boi
FOTO 8 - Boi no curral sendo "enfezado"
FOTO 9 - Confronto: homem/boi - boi/homem?
FOTO 10 - No bar - confraternização entre os farristas
Nesta "festa" houve também a "farra" das mulheres. Uma vaca, cujo nome era "Hebe" , foi objeto da brincadeira das mulheres. No entanto, não tive condições de acompanhar o desenvolvimento da mesma.
Na medida em que os animais se cansavam - ou quando os farristas deles se cansavam? - eles eram abatidos e servidos num churrasco no qual participavam todos os farristas (e não farristas) que por ali passavam (ver Fotos 11 e 12).
FOTO 11 - Boi abatido
FOTO 12 - Mais uma confraternização: o churrasco - rito da comensalidade
Em Julho/94, em conversa informal com alguns moradores do local, fui informado que a brincadeira do boi havia "sofrido" algumas modificações. Diante do aumento demográfico ocorrido no lugar nos últimos três anos, e com a chegada de famílias que não "compartilham" com a idéia da festa, a "correria do boi" deixou de acontecer nas ruas do Santinho - ela estava sendo exercitada nas dunas que fazem limite entre o bairro e o Rio Vermelho (a oeste).
Para os meus interlocutores, esta medida foi necessária para assegurar a manutenção da brincadeira, pois eles estavam à mercê das visitas dos policiais. Em função disso, também houve uma alteração na organização do "evento". Os "farristas" - a maioria "nativo" - se dividiram em três grupos ao longo da Estrada Geral do bairro - com cerca de trinta pessoas cada. Cabia a tais grupos, além de "festar", proteger o "boi", assegurar que ninguém matasse o animal. Durante esta conversa, um dos interlocutores justificou que este tipo de organização foi necessária pois na "farra" de 1993 a polícia esteve no local e atirou num dos animais. Os participantes daquela farra ficaram muito irritados com a atitude da polícia, principalmente pelo fato de que o animal não havia morrido com o tiro : o animal ficou "sofrendo" por algumas horas, até ser abatido pelos "farristas".
Tal conversa revelou o caráter de resistência e de conflito implícito nas relações que se estabelecem entre "nativos" x "os de fora". Apesar dos impedimentos legais, bem como os aborrecimentos da "vizinhança", a manutenção da farra tem propiciado, de um lado, uma reapropriação por parte dos nativos dos espaços livres do lugar, e por outro lado, o estabelecimento de estratégias que permitem assegurar um evento social importantíssimo para a identidade cultural do Santinho.
Durante o inverno - o Lance da Tainha: A pesca da tainha envolve praticamente todos os moradores do bairro. Os pescadores, dias antes da pescaria, chegam no bairro com seus barcos e os alocam em um dos barracões próximos da praia (pertencente ao hiper-empreendimento Costão do Santinho - ver Foto 13). Ali esperam até o momento em que as tainhas se aproximam da costa do Santinho para se lançarem ao mar e jogarem suas redes.
Em cima do Morro das Aranhas, um "olheiro" fica na "vigia". Suas funções são a de avisar o momento em que o cardume se aproxima das águas de Santinho, e orientar os "mestres" dos barcos no levar a rede até alto mar .
Quando o "olheiro" dava o sinal de que as tainhas estavam se aproximando, praticamente todas os moradores do bairro ficavam sabendo da informação e se dirigiam para a praia para ajudar a puxar a rede (ver Foto 14) - eram gritos e correria por todos os lados.
FOTO 13 - No primeiro plano os "barracões dos pescadores". O do lado esquerdo é utilizado pelos pescadores durante a pesca da tainha como alojamento. O da direita é um bar. Ao fundo os prédios do empreendimento Costão do Santinho
FOTO 14 - Velhos, jovens, crianças, mulheres, homens, etc...praticamente todos os moradores do Santinho participam nos lances de tainha
Os lances que observei foram uma "festa"... mulheres, crianças, velhos, jovens, enfim, todos os que ali estavam ajudaram de uma certa forma na realização da tarefa. Rede puxada, em meio à curiosidade das crianças que brincavam com os peixes, o responsável pelos barcos distribuía o produto do trabalho: primeiro entre aqueles que estavam no barco, nos remos, e depois entre aqueles que ajudaram a puxar a rede (ver Foto 15).
FOTO 15 - Pescador recolhendo os peixes - produto do lance. Ao fundo - lado direito - turistas curiosos observam o trabalho
Nos lances que observamos em 1990/91, como a quantidade de peixe havia sido bastante reduzida, cada pessoa que ajudou a puxar a rede ganhou uma tainha, enquanto aqueles que estavam no barco ganharam cerca de cinco peixes .
No lance de Julho/94, ficou mais claro para mim como a pesca da tainha é um ritual que marca os limites entre "nativos" x "turistas" x "os de fora". Enquanto a rede estava sendo levada para o alto mar, vários turistas que estavam hospedados no Costão do Santinho - empunhando máquinas fotográficas e filmadoras - vieram ter com os que esperavam na areia para saber o que estava acontecendo. Informados, ficaram por ali esperando e registrando o "espetáculo".
Na medida em que começamos a puxar a rede, mais turistas se aproximaram inquirindo sobre o peixe, como comprar, etc. Nesse momento de "encontro" registrei um diálogo entre uma criança - cerca de 9/10 anos - com um turista bastante esclarecedor sobre as fronteiras que ali estavam sendo estabelecidas:
Turista: Que peixe é esse?
Criança: Tainha
Turista: Como eu compro?
Criança: Esse peixe não é pra vender. Como tem pouco será distribuído entre os camaradas!
Turista: Camaradas???...
Criança: É os que participaram da pesca
Turista: Mas eles não vendem para o hotel?
Criança: Se eles quiserem eles vendem para o hotel e aí o senhor pode comprar!
Esse diálogo, assim como o lance, a partilha e seus desdobramentos, nos permitem afirmar que esta atividade recupera e afirma aspectos da identidade dos nativos do local, e é tal perspectiva que possibilita a manutenção desta atividade - tendo em vista que a cada ano diminui a quantidade de peixes nas redes .
Assim, pode-se afirmar que esta atividade social fortalece o sentimento de solidariedade entre os moradores do bairro. Além disso, ela tem um caráter pedagógico na medida em que socializa as crianças numa atividade laboral realizada coletivamente: o trabalho no lance da tainha une as pessoas, fortalece as relações sociais que configuram a trama social do local.
Embora tais rituais - o "gole de cerveja"; o "terno", a "farra" e o "lance da tainha"- não sejam objetos desta pesquisa eles foram aqui destacados pois representam algumas tentativas dos moradores do Santinho na manutenção de algumas características sociais que identificam o bairro como tal. O contato com os meios de comunicação, o contato com outras culturas (turistas, pessoas que ali chegaram e ficaram) e a proposta de transformar o bairro num polo turístico de primeira linha colocam em risco aquilo que é do bairro, pois "não levaram nosso Santinho embora?" (lamenta Dona Nilza).
Tais situações, por sua vez, agenciam alguns valores consagrados pela comunidade: amizade, cooperação, coragem, força, virilidade, etc. o que as caracteriza como mecanismos através dos quais se efetivam além da afirmação dos "nativos", o processo de socialização dos jovens (rapazes e moças) e crianças, de tal modo que estes, ao participarem das mesmas, vão internalizando os valores ali implícitos - o que contribuirá para a construção da identidade social e individual dos mesmos.
Além disso, através de tais "rituais" os nativos resgatam alguns significados comuns, através dos quais asseguram as fronteiras simbólicas na relação com o "turista", com "os de fora", reatualizando e confirmando sua identidade.
Antes de terminar esta sessão, gostaria de assinalar algumas percepções daqueles que moram no lugar, mas não são nascidos ali - refiro-me aos "os de fora" . Em minha última incursão no Santinho - realizada em Julho/94 - pude "olhar" de uma maneira diferente os modos pelos quais "os de fora" apreendem os nativos e, assim, constatei quanto essa apreensão é preconceituosa.
Numa mesa do bar - cujo proprietário não é nativo - que fica ao lado da areia da praia, conversando com alguns fregueses - que também não são nativos - discutíammos a necessidade de o empreendimento que se estabelecia no Santinho - o Costão do Santinho - ofertar mais empregos para as pessoas do lugar. Nesse bate-papo um dos interlocutores apontou que é muito difícil relacionar-se com os nativos, principalmente no ramo da hotelaria, pois "falta-lhes higiene, informação, postura profissional, etc. - requisitos imprescindíveis para que um empreendimento do porte do "Costão" seja reconhecido".
Rebati esta afirmação acenando com a possibilidade de o empreendimento vir a treinar seus funcionários, profissionalizando os que ali moram. A resposta, para essa minha sugestão, foi a de que os empresários do ramo preferiam contratar pessoas mais especializadas para exercer algumas funções do que os próprios nativos. Dito em outras palavras, aos nativos cabe o subemprego, pois eles não têm condições de aprender, etc.
Popó, em uma de nossas conversas, analisando as diferenças de oportunidades de emprego que existem entre os nativos e "os de fora" faz a seguinte observação:
"... os de fora, os que vêm morar aqui, têm mais oportunidades que o nativo, porque têm escola. Já o nativo não, ele tem que trabalhar desde cedo para ajudar nas despesas e, além disso, o pescador, o nativo, não tem condições de agüentar um filho na escola até o segundo grau ou faculdade. As diferenças são grandes e as dificuldades dos nativos maiores ainda." (Diário de Campo)
Uma outra situação bastante curiosa que também esteve recheada por alguns preconceitos com relação aos "nativos" foi caracterizada por um diálogo entre o dono deste bar com um freguês - também de "fora". Embravecido, o primeiro reclamava para o segundo que os nativos não vendiam tainha para seu bar. Em seguida, referiu-se aos nativos como "caras broncos" e justificou sua percepção relatando uma briga ocorrida entre um turista do Rio de Janeiro com os pescadores. O motivo da briga estava relacionado com as "regras" implícitas durante a pesca da tainha.
Segundo o dono do bar, seu freguês saiu à noite do seu estabelecimento e, ao sair da praia acendeu a luz do seu automóvel sobre o mar - o que não é permitido, neste período do ano, pois a luz pode espantar os peixes que se aproximam da costa. Quando isso aconteceu, os pescadores a ele se dirigiram e formou-se a briga. Após esse relato, nosso interlocutor passa a dizer que os pescadores não podiam fazer aquilo pois o turista não sabia - e nem era obrigado a saber - que não podia acender a luz etc. Após comentar o incidente, ele arrematou "pois eles são invejosos, mesquinhos, querem ser donos do mar, eu não posso colocar uma rede para pescar aí em frente [mostrando o mar em frente do bar]...". O rapaz que conversava com o dono do bar, à medida que o papo fluía, ia concordando, lembrando de situações onde os nativos foram "mal agradecidos, invejosos, etc...".
Achei estas situações bastante curiosas, pois sempre imaginei que existia uma "relação harmoniosa" entre "os de fora" com os nativos. No entanto, pude verificar que elas não estão bem equacionadas.
No entanto, cabe assinalar - a título de hipótese - que o sentido da percepção e da ação que o nativo estabelece na relação é o da manutenção de alguns aspectos de sua identidade, o que no confronto com o outro pode tomar matrizes bastante violentas; como foi o caso da briga acima citada . Já "os de fora" se posicionam na relação com a perspectiva de anular "o outro", desqualificando o nativo e seu universo "atrasado", demonstrando um certo "ar de superioridade" no contato que estabelece com os da terra.
O processo de transformação que atingiu Santinho foi impulsionado pelo projeto turístico que se projetou para a cidade de Florianópolis, o que culminou com a construção de um hiper-empreendimento turístico - o Costão do Santinho - "símbolo do primeiro mundo" (vide Figura 5).
FIGURA 5 - Folder do Costão do Santinho - atenção para o ideário primeiro mundista.
Em visita ao Costão do Santinho, conversando com os vendedores dos apartamentos, vim saber que está prevista a construção de um hotel de cinco estrelas sobre o Morro das Aranhas. Sua inauguração está prevista para o dia 31.12.1999 - a "entrada para a modernidade". Este caráter primeiro-mundista assim como o ideário modernizanante a ele implícito, por sua vez, estabelece uma contradição com o atrasado e o tradicional que representa Santinho.
Tal perspectiva nos sugere que o irreversível processo de desenvolvimento que se projeta para o lugar poderá engendrar a necessidade dos moradores nativos na construção de novas estratégias rituais de modo que possam assegurar alguns elementos identitários da comunidade e, por outro lado, internalizar valores que não são característicos do Santinho.
A instalação deste empreendimento no lugar foi acompanhada de um aumento significativo de novos proprietários e passou a ser mais procurado pelos veranistas que chegam na Ilha para a temporada. A instalação de equipamentos para atender a demanda criada por esse aumento demográfico-turístico, como asfaltamento, ônibus urbano, rede de água, etc. tornaram o cotidiano dos nativos mais confortável, mas o preço que pagam por isso é muito alto, o que é por eles sentido como um processo de espoliação. Nas palavras de "Seu João": "todos viraram empregados!
Nesse sentido, entendemos que este movimento de abrir/fechar para os turistas/"os de fora" que caracterizamos, assim como os rituais socializadores que o acompanham e o circunscrevem no tempo, são estratégias utilizadas pelos nativos do Santinho para a re-ordenação - e aqui para internalização das mudanças a que estão sujeitos - e para a re-apropriação (afirmação e re-elaboração) dos valores que os identificam enquanto tais.
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