MAROLAS ANTROPOLÓGICAS:
IDENTIDADES EM MUDANÇA NA PRAIA DO SANTINHO

 

IV - OS SURFISTAS DO SANTINHO: ALGUMAS APROXIMAÇÕES

Quando elaborei meu projeto de pesquisa e realizei meu trabalho de campo tinha como preocupação a configuração das fronteiras de um grupo de surfistas que mora no Santinho.

Minhas idas e vindas sobre o material coletado neste período de "escrituração"; minhas observações posteriores ao trabalho de campo - realizadas em junho/julho de 1994 - e as "dicas" de minha orientadora me possibilitaram perceber que, ao "olhar" o jovem-surfista do Santinho, também "olhava" - liminrmente - para outros jovens pois eles estavam em relação; "olhava" também para os processos sociais que circunscrevem as identidades - do local, dos indivíduos, etc...; assim como para as transformações que aconteciam no bairro, em função do processo de urbanização e do turismo.

Nesse capítulo, tratarei de questões relativas aos jovens do lugar - especialmente dos surfistas - tendo como ponto de partida alguns mecanismos que possibilitam a inserção dos mesmos no universo do adulto - os processos de socialização - e das possibilidades que a "modernidade" oferece para a construção das identidades - do local e daqueles que ali moram e/ou passam.

1. A Inserção dos Jovens no Universo do Adulto

Os moradores de Santinho praticam várias modalidades esportivas: vôlei, surfe, futebol, etc..., entretanto, é o futebol o que tem mais adeptos; atividade da qual participa um número significativo de pessoas: jovens e adultos.

Inicialmente, entendia a predileção pelo futebol tendo em vista a existência de um time de futebol que representa o bairro de Santinho num campeonato municipal - o Estrela F.C. - campeonato este que envolve todos os bairros da cidade de Florianópolis. No entanto, um "olhar mais próximo", permitiu-me compreender que as "peladas" assumem outras conotações junto aos rapazes do local.

Os jogos ocorrem na praia e, durante o período da pesquisa de campo, eles ocorreram todos os sábados. Participam destas "peladas" tanto os indivíduos que defendiam a camisa do Estrela como pessoas que gostam de "bater uma bola", ou seja, é uma atividade que envolve nativo x não nativo. Não participam desta atividade os velhos, as "crianças" (garotos de 10/11 anos - a não ser que tivessem um "corpo" avantajado), as mulheres. Estas, esporadicamente, assistiam às partidas sentadas ao lado do campo.

Participando de algumas "peladas", pude observar que existe um alto índice de competitividade entre os que se envolvem na peleja. Esta competitividade, no entanto, não se restringe ao "bate bola" do futebol. Durante as partidas (assim como em outros momentos de encontro social), os jovens também desenvolviam entre si algumas "brincadeiras" que se caracterizavam por "simulações" de "lutas" que lembram a capoeira, o caratê.

Caldas (1991), analisando a presença da violência no futebol profissional, assinala que o esporte exige de seus atletas não apenas a técnica, mas, sobretudo, porte físico: é necessário exibir um "porte físico" que seja antes de mais nada, respeitado pelo adversário - intimidando-o. Para este autor, a competição não se inicia no local da disputa. Ela se estrutura sob uma outra concepção: a do culto ao corpo, a da exuberância física e a da preparação para a força bruta.

Observando as relações que são estabelecidas entre os freqüentadores da "pelada", pude notar que as perspectivas apontadas por Caldas estão presentes entre aqueles que "se confrontam" nas areias da praia do Santinho: a técnica pura e simples não é vista como suficiente, é necessário um excelente preparo físico, um corpo muito bem treinado e condicionado. Enfim, é necessário opulência física.

Isto me ficou mais claro através dos diálogos que se estabeleciam após os jogos - quando voltávamos para casa. Nestes momentos, geralmente, era comentada a baixa resistência de alguns; a velocidade do outro; a necessidade de aquele "tirar a barriga"; a "fraqueza" das pernas de outrem, etc... - raramente se falava ou se discutia o "gol" ou os dribles e tabelas desenvolvidos durante o jogo - a técnica era descartada.

A partir destas considerações, podemos dizer que estas atividades - futebol, "lutas", etc... - permitem aos rapazes além do exercício coletivo dos "valores" socialmente reconhecidos como masculinos (força; coragem, etc.), estabelecerem - a partir destes valores - diferenças entre si, marcando posições no universo juvenil do lugar. Os atributos do "corpo", portanto, são operacionalizados socialmente para marcar as diferenças, pois os parâmetros utilizados para as "comparações" efetivadas por esses jovens, o implicam.

Esta hierarquização, por sua vez, recoloca e reafirma valores que também estão implícitos em outras atividades sociais do lugar. O ser viril, a força, a coragem , etc... são "conteúdos" que estão presentes na farra do boi; na pesca em alto mar; e, geralmente, são objetos de discussões nas mesas dos bares.

Enquanto os jovens jogam o futebol, as jovens geralmente jogam o vôlei. No entanto, elas não o praticam na praia, mas sim na rua central do Santinho. A organização do jogo não se dá a partir da formação de dois times (como no futebol), mas caracteriza-se por uma roda onde a bola é trocada entre as participantes. Aquela que deixar a bola cair sai da roda. Vale notar que esta atividade não é exercitada com "agressividade", as "jogadoras" não passam a bola com violência ("cortando a bola") mas sim de modo que suas companheiras possam dar continuidade ao jogo.

Assim, podemos depreender dessas duas atividades - o futebol e o vôlei - que a primeira, enquanto tem como perspectiva a "violência", a "competitividade", a segunda prima pela "solidariedade", pela "amizade" . Além disso, estes dois esportes são objetivados no contexto social do Santinho de tal modo que, a partir deles, os jovens - moças e rapazes - constroem e exercitam suas identidades a partir das noções - socialmente construídas - sobre gênero.

Enfim, o esporte - especialmente o futebol e o vôlei - e o trabalho - conforme vimos no capítulo anterior - são atividades que têm a função social de estabelecer a noção de gênero entre os jovens do lugar.

No capítulo anterior, assinalamos, a partir de uma conversa com "Seu" Bilé, que o engenho era um espaço onde os adolescentes - "meninos e meninas" - desenvolviam práticas sociais conjuntamente - jogos, brincadeiras, etc. Atualmente, isso não é mais comum no lugar, como diz o próprio "Seu" Bilé: "com essas coisas modernas que estão por aí - referindo-se à droga, liberdade e informações sexuais, AIDS - não pode deixar junto as meninas com os meninos". Assim, na medida em que as moças e rapazes participam de atividades que têm um caráter socializador - no caso das regras de comportamento sexual - eles vão internalizando os valores e as expectativas sociais referentes a cada sexo.

O esporte e o trabalho, por sua vez, também delimitam os espaços físicos onde estas identidades sexuais devem ser construídas e exercitadas: para o homem, cabe o mar, a praia; para a mulher, a casa; o engenho . Os primeiros exercem plenamente sua "liberdade"; as segundas submetem-se às expectativas sociais relativas às moças do lugar: geralmente não passeiam sozinhas (mas com irmão, namorado ou amiga) : quando saem sozinhas, devem voltar em horários determinados, etc...

As considerações acima fazem-nos pensar que, em Santinho, existe um controle social muito rígido sobre o comportamento sexual - principalmente sobre o das mulheres. No entanto, acontece em Santinho um fenômeno onde este controle é superado ou mesmo "transgredido", - é o fenômeno da fuga. Vim saber da ocorrência de sua existência conversando com "Seu" Bilé e "Seu" João, pois ambos se utilizaram deste expediente para constituírem suas famílias, ou seja, no que se refere a Santinho, apresento aqui uma versão masculina do fenômeno.

A fuga se dá, geralmente, pela saída da moça da casa paterna que acompanha o namorado. Este a leva ou para sua própria casa (caso de "Seu" João) ou para a casa de seus pais (caso de "Seu" Bilé). Após alguns dias o casal vai até a casa dos pais da moça para a aprovação da união. Alguns meses depois (às vezes, anos), a união é oficializada em cartório.

"Seu" João, durante o relato de sua experiência, enfatizou que quando ele foi falar com o pai de sua esposa, empenhou a sua palavra ao assumir o "sustento da mulher". A partir daquele momento, ela estava sob sua responsabilidade.

Durante a conversa com "Seu" Bilé ele assinalou que seu filho também se casou (em 1992) utilizando-se deste recurso. Justificou a fuga - tanto a sua como a de seu filho - pela falta de condições econômicas para realizar "uma cerimônia bonita e uma grande festa para os amigos do bairro", (cabe notar que o tom de ‘Seu" Bilé ao comentar estes fatos era de lamentação).

Em ambos os discurso, podemos vislumbrar que a "honra" masculina está colocada em jogo. No caso de "Seu" João, a questão passou pela afirmação de sua palavra e, implicitamente, também pela afirmação de sua masculinidade, na medida em que, através da palavra assumia os papéis de um "chefe de família" - o trabalho, e o sustento da mulher e da prole.

Já "Seu" Bilé, pelo tom de lamentação em sua voz, vê a fuga de seu filho como um motivo de "vergonha", pois ele, como pai, não teve condições de assumir as formalidades sociais do casamento - principalmente as "festas". Quanto à honra da família de sua nora, "Seu" Bilé entende que ela já foi "reparada", pois seu filho "é honesto, montou uma casa, tem um bom emprego, cuida da mulher, não deixa faltar nada em casa e regularizou a situação no cartório".

Na medida em que eu não ouvi as mulheres sobre este fenômeno, explicitarei este fenômeno a partir do trabalho de Marineide Silva (1994) - "Isso é feio" "isso é bonito": casamento, fuga e honra em Ponta das Canas. Ela discute o fenômeno da fuga sob a perspectiva de algumas mulheres que se utilizaram deste recurso para se casarem.

As entrevistas que a autora realizou - com nove mulheres, cuja faixa etária variava entre 17 a 59 anos - apontam que o desejo de toda família que mora em Ponta das Canas - localidade situada ao norte da Ilha de Santa Catarina - é realizar o casamento; sendo a fuga motivo de vergonha e de desonra para as famílias, pois deixa pública a situação econômica das mesmas, que não as possibilita arcar com as despesas do casamento - festas, cerimônia religiosa, construção de uma casa, enxoval da noiva, etc...

Apesar disso, ali a fuga é freqüente entre os casais de namorados e, de uma certa forma, ela é induzida pelas famílias envolvidas no processo. Geralmente, a fuga ocorre em função de um impedimento dos familiares da moça: após um certo tempo de namoro, a família começa a se opor a ele, o que obriga o casal a preparar a fuga para poderem ficar juntos.

A partir dos depoimentos das mulheres que confirmam esta hipótese, Silva (1994) caracteriza a fuga como um drama social, uma encenação donde participam vários atores sociais: ela é planejada, e neste planejamento conta-se com a ajuda de amigos, parentes, pais (geralmente do noivo), na consecução do projeto.

A autora assinala também que a responsabilidade pela fuga, geralmente, é atribuída ao homem. Em Ponta, no entanto, durante as entrevistas que realizou, as mulheres admitiram uma certa cumplicidade entre homens e mulheres na consecução do ato.

Se para as famílias do casal de namorados a fuga é motivo de vergonha, pois expressa a situação econômica desfavorável das mesmas; para as mulheres entrevistadas por Silva, a utilização desta forma de acasalamento, tem outro significado:

"No entanto, para essas mulheres que, para sair de casa, ir a uma festa necessitavam da intervenção da mãe ou parente junto ao pai para que este pudesse deixar, ou que trabalhavam na roça como ‘homens’ para ajudar a família, fugir, sai escondida para formar uma nova família era sem dúvida um sonho que necessitava de muita coragem e mesmo heroísmo para se concretizar. Um sonho que remete ao desejo de independência em relação aos pais. Sair de casa representa o ‘se tornar adulta! mãe, dona de sua própria casa’." (Silva, 1994:38)

Analisando o fenômeno da fuga a partir da contribuição de Silva (1994) e dos relatos de "Seu" Bilé e de "Seu" João, podemos vislumbrar este fato social como um mecanismo utilizado pelos moradores de Santinho e de Ponta das Canas que viabiliza a inserção do jovem/adolescente no universo do adulto.

A fuga, como notou Silva (1994), caracteriza um ritual - tendo em vista suas regras padronizadas. Além disso, ele é um ritual de passagem, na medida em que assegura a passagem dos jovens (moças e rapazes) ao universo adulto, sem colocar em risco os valores implícitos nas relações sociais destas comunidades - tendo em vista que este é um fenômeno que está dentro das expectativas das mesmas.

Frente ao fenômeno, todos agem e fazem de conta que o casamento resultante da fuga ocorreu por insensatez do casal de namorados (Silva, 1994). Esta percepção - onde se deposita a responsabilidade pelo ato no casal - na medida em que é construída socialmente pelos atores sociais envolvidos, evita a "vergonha" das famílias - principalmente se acontece o casamento no cartório.

A fuga, portanto, possibilita a inserção de moças e rapazes no mundo adulto através da "transgressão". De um lado, assegura-se a efetivação dos desejos adolescentes de liberdade e independência familiar. De outro, assegura-se ao jovens assumirem os papéis sexuais aprendidos durante seu processo de socialização: o homem cuida do trabalho para o sustento da mulher; esta "torna-se mãe, dona de sua própria casa."

No entanto, cabe ressaltar que o significado deste fenômeno vem se modificando. Em função do processo de mudanças a que estas comunidades estão sujeitas devido à urbanização, as novas relações econômicas implementadas principalmente pelo turismo, e o contato com novas idéias sobre casamento, virgindade, maternidade, etc... novas modalidades de relacionamentos (pais x filhos, marido x mulher, mãe x criança, etc...) são engendradas, assim como novas dimensões simbólicas são atribuídas ao fenômeno da fuga.

Nesse sentido, nota Silva (1994), a geração mais nova, "naturalizou" o fenômeno da fuga, desconsiderando o aspecto heróico e corajoso que lhe é dado pelas mulheres mais velhas. Além disso, nestas comunidades é possível encontrarmos casais que mantêm um relacionamento alternativo, como o "morar junto"; ou mesmo mulheres com filhos que moram com seus pais sem terem passado pela experiência do casamento.

Assim, podemos depreender que as mudanças que estão acontecendo, nestas duas comunidades, permitiram a emergência de novas possibilidades para os jovens solucionarem os problemas inerentes à entrada no mundo do adulto - e a fuga é uma delas.

Além disso, no que tange às relações de conjugabilidade, podemos dizer que estas comunidades têm proporcionado aos jovens maiores oportunidades para experienciar o que a sociedade lhes pode oferecer - principalmente diante das possibilidades que o "mundo moderno" propicia. A passagem da puberdade para o mundo adulto, portanto, vem se caracterizando como um período - denominado por Erikson (1976a) de &quoot;moratória psicossocial" - onde "há uma certa tolerância seletiva por parte da sociedade e uma atividade lúdica por parte dos jovens."

2 - O Surfe em Santinho

O surfe sempre foi um esporte praticado no Santinho. Dona Nilza dá notícias de que algumas pessoas que acamparam por ali no início da década de 70 praticavam este esporte. No entanto, é no ano de 1979 que o primeiro nativo do Santinho começa a praticar o surfe, Popó (Apolinário, irmão de Dinalto).

Em "bate-papos" com este "pioneiro" vim saber que ele ao escolher o surfe como um esporte tinha a perspectiva de estabelecer - para si - uma trajetória diferente daquela que o bairro lhe oferecia - trabalhar na pesca: o surfe era visto por ele como uma possibilidade de profissão.

Na medida em que percebeu que era um esporte caro e, em função da pressão de seus familiares para que se inserisse no mercado de trabalho, abandonou o surfe, indo trabalhar nos barcos do Rio Grande - na época tinha 18/19 anos, e chegou a praticar o surfe durante dois anos. Lembra que - ao deixar o surfe - doou as duas pranchas que possuía para o bar do "Seu" Jorge (na época este bar ficava ao lado da praia), as quais foram utilizadas por vários jovens do lugar.

Comentando sobre sua experiência no esporte, Popó assinala que foi bastante discriminado por seus amigos vindo a ser chamado de "louco", "bicha", "menininha da praia", etc. Este mesmo tipo de comportamento ainda pode ser observado nas atitudes dos jovens não surfistas em relação aos surfistas.

Dentre as pessoas que fazem parte da "Galera", somente Dinalto participa dos jogos de futebol (esta circulação de Dinalto será abordada mais adiante). Quando os demais surfistas que fazem parte da "Galera" foram questionados sobre o fato de não participarem das "peladas" na praia, responderam: "Surfista não joga futebol, ele surfa, e nós preferimos surfar", ou seja, o surfe é um esporte que é operacionalizado nas relações sociais marcando algumas fronteiras entre os jovens do lugar - ora tomando um caráter moralista (por parte dos não surfistas), ora tomando um caráter de exclusão/inclusão (por parte dos surfistas).

Ao ser operacionalizado como uma "marca" (Ruben, 1988, Mauss, 1974b) nas relações sociais, o surfe introduz novas dimensões para a trajetória dos jovens do lugar, o que possibilita aos surfistas assumirem um "estilo de vida" que não é comum para os nativos do lugar.

A análise de Pociello (1982) sobre a introdução dos esportes californianos - surfe, wind-surfe, asa delta, etc. - na França, nos indica que esses esportes trazem uma nova dimensão na relação que os esportistas estabelecem com seus corpos, com o esporte e entre si. A transformação das práticas esportivas promovidas por eles apresenta alguns senões frente ao jogo de forças dos esportes tradicionais naquele país (rúgbi, futebol) e a recusa dos confrontos agressivos, instaurando, em contrapartida, a busca da qualidade e da intensidade das sensações dentro de situações de alto risco.

A partir destas considerações, podemos compreender algumas atitudes dos moradores de Santinho frente aos surfistas que moram por ali. Eles ainda são considerados como "loucos", na medida em que se arriscam em alto mar buscando suas ondas. "Bichas" na medida em que assumem uma nova relação com seus corpos (vide Foto 16) - primando por uma estética que os diferenciam radicalmente no contexto social do bairro; folgados, pois passam boa parte do tempo no mar, etc..

FOTO 16 - Surfista nativo - Xeroca. Observar semelhanças com desenho da Figura 1

Estas categorias, por sua vez, na medida em que são operacionalizadas na relação jovens não surfistas x jovens surfistas, assumem um caráter acusatório de desvio (Velho, 1985).

Tomando a noção de desviante elaborada pelos "interacionistas" (Velho, 1985:23), podemos dizer que o grupo de surfistas é "acusado" de, através de seu "comportamento", estarem quebrando - consciente ou inconscientemente - limites e valores característicos do bairro.

Como pudemos assinalar no capítulo anterior, alguns "rituais" desenvolvidos no Santinho são perpassados por valores como "a solidariedade", "a virilidade", "a força", "o respeito pelo perigo" (representado na figura do boi na Farra), etc. O surfe, por sua vez, é um esporte que contradiz alguns destes valores: é um esporte individual; afirma-se não sobre a força bruta, mas sobre uma técnica - a de "deslizar sobre as ondas"; inaugura uma nova relação com o mar - "a do desbravamento" - diferente daqueles que vêm o mar como um espaço para o trabalho, e até com um certo temor.

Além disso, os surfistas - principalmente os "surfistas nativos" - concretizam o caráter desigual, contraditório e político que caracteriza as relações sociais no bairro. Os nativos, através da prática deste esporte, desvelam as diferenças - sociais, econômicas, culturais - que permeiam as relações sociais entre as várias famílias do Santinho - pois, como veremos mais adiante, o surfe não é um esporte para todos.

Além disso, a prática do surfe possibilita aos nativos apropriarem-se de uma série de informações que lhes permitem inserirem-se, de uma maneira diferente, no universo simbólico do Santinho. A partir do surfe eles fazem uma leitura diferente da realidade social em que estão inseridos - traçando, para o futuro, trajetórias sociais diferentes daquelas que o lugar oferece.

Tais considerações nos sugerem que os surfistas desenvolveram um "habitus" (Bourdieu, 1983a) - na medida em que se apropriaram de alguns elementos característicos do universo do surfe - linguagem, gestos, roupas, comportamentos, etc., - a partir do qual assumem uma determinada "posição social" dentro do universo do Santinho, diferenciando-se - o surfe, portanto, caracteriza-se como uma marca de distinção (Bourdieu, 1989), pois quem o pratica, detém um capital que não é acessível à maioria dos jovens do lugar (ver Foto 17).

 

FOTO 17 - Grupo de jovens - em visita à minha casa. Apesar de o grupo se organizar para a foto como um time de futebol, notar que dois deles - um em pé e outro ajoelhado - fazem com as mãos gesto característico do universo do surfe. Este gesto é utilizado como cumprimento entre os surfistas.

O surfe, na medida em que é um esporte caro, que consome muito tempo - principalmente para aquele que deseja se profissionalizar - torna-se impraticável para a maioria dos jovens do lugar - especialmente para os nativos. Estes, por sua vez, necessitam se inserir no mercado de trabalho muito cedo, tendo em vista as necessidades de suas famílias - ou seja, eles não têm capital social (principalmente em seu aspecto econômico) que lhes assegurem tal possibilidade. Como diz Popó: "... ‘os de fora’, os que vem morar aqui, tem mais oportunidades que o nativo, porque têm escola. Já o nativo não, ele tem de trabalhar desde cedo para ajudar nas despesas".

Enfim, a aprendizagem das técnicas do surfe, assim como a estrutura que ela requer (dinheiro e tempo) reserva e assegura a "distinção" de seus praticantes no universo do Santinho.

Pude notar durante o trabalho de campo que alguns nativos que não praticam o surfe usam roupas que fazem parte do universo surfístico: camisetas com estampas referentes ao esporte; calções coloridos, moletons, etc. Ao indagar sobre isso com alguns deles, soube que vários rapazes que hoje praticam o futebol já surfaram e, pelo fato de terem que se inserirem no mercado de trabalho, tiveram que abandonar o surfe. Além disso, "o surfe é caro e exige muito tempo..."

Já o futebol é diferente: ele é praticado nos finais de semana - o que não interfere na jornada de trabalho. A bola, por sua vez, é comprada ou por algum participante das peladas, ou "através de uma vaquinha".

As categorias acusatórias que permeiam as relações não surfistas x surfistas acima citadas, também se revestem de uma negação do surfe como uma possibilidade de trabalho, pois - pelo menos no que se refere à "Galera" no transcorrer da pesquisa - os surfistas ainda se mantinham dependentes de seus familiares .

Se de um lado, o surfe representava um "status", pois aqueles que o praticam têm "dinheiro (na medida em que podem dispor de uma prancha e acessórios) e tempo", por outro, os membros da Galera eram "desqualificados moralmente" pelos não surfistas por não se inserirem no mercado de trabalho ou por não terem dinheiro para assegurar algumas coisas : como cervejas, "Bailão", etc.

Como apontamos anteriormente, o trabalho é uma atividade sempre presente no processo de socialização dos jovens do Santinho, e aqueles, principalmente os nativos, que não cumprem com tal expectativa, são considerados como vagabundos da praia, folgados, etc. .

Os surfistas, pelo que eu pude observar, não reagem às provocações e às acusações dos não surfistas. Pelo contrário, nas situações em que são desqualificados - chamados de "bichas", "folgados", etc. - tentam não responder às provocações, levando o assunto para o lado da brincadeira. Certa vez, participando de uma mesa onde estavam sentados alguns jovens que moram no Santinho - moças, rapazes (entre estes, surfistas e não surfistas) - "pintou" o "papo" de o "surfista ser bicha". Na seqüência, um dos surfistas pegou um "prendedor de cabelo" e uma tiara das garotas ali presentes e começou a imitar um "bicha" marcando seus gestos com trejeitos estilizados, modificando sua voz e mexendo nos cabelos, como se os estivesse penteando. Na medida em que a "brincadeira" se desenrolava, todos riam muito.

3 - A Praia: o Espaço para a Diversidade

Apesar das diferenças que estamos apontando ao longo deste trabalho, as quais são fundamentais para a construção da identidade tanto do Santinho como dos indivíduos que moram ou passam por ali, vale notar que o surfe, o futebol, o passeio do turista, o tomar sol, a linhada do pescador, a farra do boi, o lance da tainha, etc... são atividades que acontecem na praia.

Este é um espaço onde convivem as mais variadas diferenças: velhos x jovens x crianças; jovens trabalhadores x jovens não trabalhadores, nativos x turistas x "os de fora", "os sérios" x "os irresponsáveis", mar x areia, os surfistas x os futebolistas, etc.

É ali - no espaço "onde nada é eterno, onde água-ar-terra proporcionam uma dimensão de efemeridade para as sensações, onde as situações de margens e de junções assumem ‘concretude’ (Corbin, 1989) - temos a possibilidade do exercício da diferença, o que permite aos que ali moram assim como aos turistas x "aos de fora" - conviverem com a diversidade .

Tal perspectiva, portanto, não nos permite falar que existe "uma identidade" do Santinho, mas sim que, neste universo social, vamos encontrar "várias" identidades, identidades que se constroem e se reconstroem pois ali existem pessoas oriundas de diversos lugares em relação.

No que tange aos aspectos da identidade social dos nativos, verifica-se que eles operacionalizaram alguns eventos comunitários de modo a assegurar alguns elementos que os identificam como tal; é o caso da farra do boi, do terno de reis, do lance da tainha (conforme vimos no Capítulo III). Através destas atividades os nativos marcam as fronteiras simbólicas nas relações que estabelecem, relações essas que implicam o desconhecido - o turista, o desenvolvimento urbano, etc. (ver experiência pessoal com um surfista nativo descrita no Capitulo II)

Cabe salientar ainda, que estes "rituais", ao mesmo tempo que estabelecem as fronteiras simbólicas, também têm a função de reatualizar os parâmetros utilizados para tanto. Isto significa que há um processo de apropriação - por parte dos nativos - das novidades que os vários encontros com "o outro" lhe propicia.

3.1 - Os Campeonatos de Surfe no Santinho

Como assinalamos anteriormente, existe um certo estranhamento por parte dos "nativos" do Santinho no que diz respeito ao surfe. No entanto, é na "areia da praia", através de atividades ritualizadas, que ele vem, paulatinamente, se inserindo no universo simbólico do lugar.

Como apontamos no Capítulo anterior, o surfe estruturou-se no Estado de Santa Catarina em torno da Federação Catarinense de Surfe da qual é associada a ASIS - Associação de Surf dos Ingleses e Santinho - entidade que tem como filiados vários surfistas da Praia do Santinho.

Esta última entidade, conforme conversa com um dos seus dirigentes, tem como perspectiva promover competições entre seus associados.

Durante nossa pesquisa de campo no Santinho (90/91), ela promoveu dois eventos - campeonatos na praia do Santinho. O primeiro aconteceu nos dias 31/08 - 01/09 de 1990 e denominava-se Circuito Adir Gentil de Surf Amador (ver Foto 18). Sua organização envolveu, além da ASIS, a Associação de Surfe do Campeche, a Associação de Surfe da Barra da Lagoa, e foi patrocinado por Adir Gentil, um político da cidade cuja base política é Ingleses e Santinho.

Este campeonato teve quatro etapas, a que ocorreu em Santinho correspondia à terceira etapa do Circuito; a seguinte ocorreu na Barra da Lagoa duas semanas depois. As colocações dos surfistas neste Circuito foram consideradas para o "ranking" estadual elaborado pela Federação Catarinense de Surf. Houve ainda um "rankeamento" entre os surfistas filiados à ASIS, do qual a "Galera" participou.

Obviamente este campeonato não teve a organização nem a pompa dos grandes campeonatos. Os organizadores utilizaram-se das instalações do bar que fica na beira da praia, instalando ali o equipamento de som (tape deck, amplificador e microfones) e alocando as pessoas que julgaram os surfistas - os juízes.

Os surfistas distribuíram-se por toda área próxima ao bar, estacionando seus carros onde era possível. Vieram representantes de várias associações: Campeche, Barra da Lagoa, Ingleses, Santinho, Centro da cidade, Joaquina, Lagoa da Conceição, etc. bem como as torcidas correspondentes. Entre esses diversos grupos havia um certo distanciamento, apesar de se conhecerem de outras ocasiões. Os surfistas, geralmente conversavam com seus pares, com seus companheiros de bairro ou de associação.

O segundo evento, aconteceu alguns meses depois, nos dias 02 e 03 de Março/91 - foi uma das etapas do XII Campeonato Catarinense de Surf promovido pela ASIS e pela Federação Catarinense de Surf. Vale notar que este evento foi patrocinado por várias empresas vinculadas à atividade turística (ver Foto 19). Era uma etapa do campeonato estadual para surfistas amadores e os resultados obtidos pelos participantes seriam considerados para o ranking estadual.

FOTO 18 - Circuito Adir Gentil - Etapa Santinho - Visão geral

 

FOTO 19 - XII Campeonato de Surfe Catarinense - Etapa Santinho - Palanque.

Em termos de organização foi um campeonato exemplar, com direito a som, palanque e computador, e a prêmios bastante "apetitosos", além dos equipamentos ("strep", pranchas, etc.) e roupas: o vencedor ganharia uma viagem ao Peru.

Esse tipo de evento tem possibilitado que o estranhamento por parte dos moradores do Santinho com relação ao surfe possa, no decorrer do tempo, ser superado, pois eles fazem que o sistema simbólico deste esporte, que a maioria dos nativos não domina, seja internalizado no universo social do lugar. Assim. este tipo de evento que descrevemos, na medida em que apresenta um caráter ritual, faze a mediação surfe x Santinho.

No meu entender, considero os campeonatos como rituais pois se estruturam a partir de um padrão rígido de atos específicos - normas, regras, horários, notas, etc... - que asseguram alguns significados específicos que os transcendem - por exemplo, os critérios para a pontuação utilizados para avaliar as manobras dos participantes dos eventos são internacionais (Goodger, 1985, 1986).

Goodger (1986), ao analisar os aspectos rituais implícitos nos esportes, assinala que eles têm a função simbólica de

"relacionar o indivíduo através do ato ritualístico para a ordem social [aqui aquela estabelecida para o surfe], aumentar o respeito para esta ordem, revivificar esta ordem entre os indivíduos e, em particular, intensificar a aceitação dos procedimentos que são usados para manter continuidade, ordem e limites que controlam a ambivalência em direção à ordem social." (Goodger, 1986:220)

Assim, as experiências que os campeonatos de surfe proporcionam são circunscritas por uma gama de valores (a estética corporal, o amor pelo mar e pela praia, etc...- ver Foto 20), e na medida em que eles são compartilhados, cria-se um contexto simbólico que assegura a apropriação e a reapropriação dos códigos implícitos no universo do surfe por parte do que participam do evento, garantindo-se assim, um certo sentido de "comunhão" entre espectadores, participantes, organizadores do evento, vencedores e vencidos, etc. (ver Foto 21).

FOTO 20 - Surfistas entrando no mar para disputar uma bateria

 

FOTO 21 - O espetáculo é no mar... na praia os curiosos e a torcida

Ou seja, é através de eventos desta natureza - com características rituais, que o ideário do surfe - e os surfistas conseqüentemente - vêm sendo introduzidos no universo simbólico dos moradores do Santinho, o que possibilita a emergência de novos valores nas relações que se estabelecem entre as pessoas, principalmente no que diz respeito aos processos de socialização das crianças e dos jovens. Durante a pesquisa observei que várias crianças (de 10/12 anos) estavam começando a se interessar pelo surfe e que elas sempre acompanhavam os membros da "Galera" nos eventos, nos treinos, nas conversas, etc. (ver Foto 22).

 

FOTO 22 - Duas gerações de surfistas

4 - Os Surfistas do Lugar: a "Galera"

A praia de Santinho é bastante utilizada pelos surfistas da região e de outros locais da cidade de Florianópolis (e até de outras cidades). Durante o trabalho de campo observava-os indo e vindo, de lá para cá com suas pranchas, suas roupas e apetrechos. Olhava-os, mas não conseguia estabelecer os limites de um grupo mais específico - característico de Santinho: era uma "massa" sem contornos definidos.

Os surfistas que não moram no bairro geralmente chegam em grupos em carros (algumas pessoas utilizam motocicletas - ver Foto 23). Eles passeiam pela praia até encontrar o "point" - o lugar ideal para a prática do surfe - para estacionar e acomodar suas ‘tralhas’ (ver Foto 24). Entretanto, quando o mar não está ‘bom’ para a prática do surfe, vão embora, talvez procurar outro lugar para surfar - as praias mais próximas que oferecem boas condições para a prática do surfe são: Ingleses, Moçambique e Praia Brava. Esta movimentação possibilitou-me definir os surfistas que freqüentam assiduamente a praia do Santinho daqueles que para ali se dirigem esporadicamente.

FOTO 23 - Surfista com a "gata" - Atenção ao "cumprimento" com as mãos.

 

FOTO 24 - Praia do Santinho - Ao fundo "Costão dos Ingleses" - Observar carros estacionados na praia.

Os surfistas que não chegam de carro em Santinho, também se dirigem à praia em grupo - 3 a 4 pessoas - fazendo o trajeto de suas casas até o mar a pé, e já vão preparados para surfar - com as roupas apropriadas (no inverno com roupas de borracha; calção característico no verão) e com a prancha. Para chegar à praia não utilizam a rua principal do bairro, mas sim os "caminhos" por entre as casas que se criaram pela própria população ao se apropriarem o espaço urbano do bairro.

Tal situação apresentava-me um problema: existem várias saídas para a praia e através delas passam vários surfistas (tanto os que ali moram como aqueles que vêm da cidade e se alojam na casa de alguém) o que dificultava a observação dos mesmos, pois são quase dois quilômetros de praia, e uma população muito flutuante. Na verdade, tinha dificuldades de escolher a "trilha" a seguir naquele universo social tão complexo.

Diante desta dificuldade, comecei a prestar mais atenção em um grupo de jovens que circulava nas redondezas de minha casa pois, em decorrência de contatos com algumas pessoas, eu sabia que ali perto moravam alguns garotos que surfavam.

Quando este grupo de jovens andava pelas ruas do bairro pensava que se tratava de um grupo exclusivamente de surfistas, pois eu os identificava como tais em razão das roupas estilizadas que usavam, ou seja, dos trajes característicos dos ‘surfistas’: bermudas coloridas e camisetas com estampas referentes ao surfe (alguns tinham os cabelos pintados ou com mechas de loiro). Entretanto, este dado não me possibilitava configurar um grupo de surfistas, pois várias pessoas que não praticavam o esporte, usavam tais trajes - seja pelo fato de terem um dia surfado, seja por causa da moda.

O estabelecimento dos contornos do grupo - a "Galera" - começou a ser definido a partir do encontro, descrito anteriormente no capítulo II, que mantive na casa de Fly, na oportunidade em que me apresentei ao grupo e coloquei meu projeto de pesquisa.

Foi a partir desta autodenominação - "Galera" - que comecei a estabelecer alguns critérios para delimitar os contornos deste grupo, pois percebi que tinha entrado em contato com "minha tribo".

Vale ressaltar, no entanto, que a maneira por que estes jovens surfistas se inserem no grupo "Galera" e no universo do surfe é bastante diferenciada, pois suas possibilidades estão relacionadas com suas trajetórias de vida. Assim, passaremos em seguida a caracterizar as trajetórias de cada membro do grupo e, em seguida, aprofundar um pouco mais a dinâmica das relações que eles estabelecem entre si e com o lugar.

4.1 - A "Galera": seus Membros e suas Trajetórias

Apesar de ser um grupo pequeno - cinco elementos - pude observar que não se trata de um grupo homogêneo, pois os seus membros apresentam trajetórias de vida bastante diferenciadas, o que vai caracterizar, de uma certa maneira, especificidades, tanto na inserção individual no grupo, como nas expectativas diante do esporte, na visão de mundo, etc...

Na época das observações aqui relatadas a idade dos jovens que faziam parte da "Galera" variava entre os 15-19 anos. Na medida do possível as observações iniciais foram atualizadas, tendo em vista novas observações realizadas em Junho/Julho de 94.

Vamos às caracterizações dos membros da "Galera", bem como de suas trajetórias.

YUFU - tinha na época da pesquisa 17 anos (em 1994 tinha 21 anos). Veio para Santinho acompanhando sua família - mãe e irmã - da cidade do Rio de Janeiro. Eles chegaram ao lugar em 1976 e ali moraram até 1980, voltando para o Rio, onde ficaram até 1987. Durante este período (1980/1987) visitavam periodicamente Florianópolis.

Em 1985, a mãe de Yufu conheceu no Rio de Janeiro a Doutrina do Santo Daime. Em 1986, numa viagem para Florianópolis, comentou suas experiências com o Daime com alguns amigos. Estes, por sua vez, se interessaram em conhecer tal doutrina, o que culminou com a criação de um "ponto" do Daime no Santinho . A mãe de Yufu foi uma das fundadoras deste "ponto". Ela e seus dois filhos participam dos rituais promovidos pela "igreja" .

As atividades profissionais da mãe de Yufu estão relacionadas com a astrologia - realizando consultas e elaborando mapas astrais aos interessados.

O pai de Yufu mora nos EUA e não mantém um contato freqüente com seus filhos. Atualmente ele tem mandado dinheiro - através da avó de Yufu - para que ele construa sua casa no bairro (a construção está sendo feita por Dinalto e Popó no terreno de sua mãe ).

Yufu surfa há mais tempo que os demais membros da "Galera" e durante sua incursão no esporte tem recebido apoio de seus familiares. Segundo ele, sua mãe praticava este esporte em Saquarema na década de 70 e isto possibilitou que aprendesse a surfar já em sua infância - aos 9 anos.

O fato de praticar o surfe há muitos anos, assim como ter acesso a "n" informações oferecidas por seu meio familiar, possibilitaram a Yufu a construção de um capital simbólico que o diferenciava dos demais membros do grupo. No que tange ao surfe, sua trajetória foi marcada por um contato maior com as revistas especializadas do surfe - guardava várias revistas que, vez ou outra, eram emprestadas a seus companheiros de esporte. Tais informações - na medida em que eram operacionalizadas nas discussões que aconteciam no grupo - colocavam-no numa posição de destaque, pois ele detinha um conhecimento maior do que os demais.

Além disso, Yufu também tinha outros interesses: literatura, música, etc., Interesses que, na medida em que se expressavam, também afirmavam sua posição no grupo. Tal fato está relacionado às possibilidades sociais e culturais de sua família.

Durante o período em que realizei a pesquisa sua posição no grupo também era confirmada pelo fato de ele trabalhar numa fábrica de pranchas, localizada em Ingleses, a qual abandonou em meados de 1991, com a morte do proprietário. Tal situação - além de propiciar o patrocínio de Yufu nos eventos competitivos, também lhe possibilitava "quebrar alguns galhos" para seus amigos: estes, quando tinham suas pranchas quebradas, a ele recorriam para que fossem arrumadas . Através desta empresa, Yufu também "descolava" para seus amigos camisetas com estampas de surfe (obviamente com a publicidade da empresa), produtos surfísticos como por exemplo parafina, etc.

Apesar de receber o apoio de seus familiares para praticar o surfe, ficou bastante claro, durante a pesquisa de campo, que sua família lhe atribuía algumas "tarefas", como por exemplo, continuar estudando (em 1990 estudava na 8ª série do 1º Grau num colégio no centro da cidade), realizar algumas atividades referentes à manutenção de sua casa - capinar o pátio, cuidar das crianças menores durante os rituais do Daime; se possível trabalhar; etc.

No que se referia às suas expectativas dentro do esporte, Yufu achava que não teria grandes chances devido, em primeiro lugar, ao fato de não ter acesso a material de boa qualidade. Além disso, sentia que suas condições de vida não lhe permitiam treinar o necessário para galgar o profissionalismo e, enfim, sentia-se um pouco "velho" (noto que na época deste "papo" ele tinha 17 anos) para desenvolver algumas manobras, as mais "radicais" . Em função disso, pretendia investir mais em seus estudos do que na sua "profissionalização" no surfe. Tal perspectiva, no entanto, não o impedia de participar dos campeonatos locais nem de sonhar com a profissionalização.

Em julho de 1994, pude verificar - em conversa com Yufu e com sua mãe - que as perspectivas que ele tinha em 1990/91 quanto ao esporte se modificaram. No ano de 1993, manteve contato com um "shaper" - profissional que produz pranchas - que estava desenvolvendo uma prancha especial para ele, o que lhe proporcionou um progresso no seu surfe: em um campeonato realizado na Praia Mole em 04/94 chegou a ficar em quarto lugar; motivo de "orgulho" para sua família e de reconhecimento por parte dos amigos pois "seu nome saiu numa revista de surfe" (Dinalto referindo-se a performance de Yufu).Yufu deixou de estudar (parou na 8ª série - em 1990), não desenvolve nenhuma atividade profissional ou laboral; e vem dedicando seu tempo ao surfe.

Yufu, na medida em que sua família lhe assegura algumas condições de sobrevivência, não está preocupado com o "ganhar algum dinheiro" ou em arrumar um "bico" ou "emprego", o que se configura como mais uma diferença entre ele e os demais membros do grupo.

FLY - este jovem chegou em Santinho no ano de 1988 acompanhando sua família - mãe e avó. Ele nasceu em Porto Alegre e deixou esta cidade quando tinha 5 anos de idade indo morar com sua mãe na Praia do Brito, onde ficou até 1988. Neste ano, sua mãe veio para Santinho com o intuito de inserir-se na Doutrina do Santo Daime (Fly não é adepto da Doutrina). Ela teve contato com a Doutrina através de amigos que participavam da "Igreja". A mãe de Fly trabalha na fabricação de "brinquedos de madeira" que, quando possível, são vendidos em feiras de artesanato no centro da cidade.

O pai de Fly mora em Porto Alegre onde desenvolve atividades profissionais na área de marketing. Fly, constantemente, vai visitá-lo.

No início da pesquisa de campo Fly estava com 16 anos e trabalhava como "demonstrador" de pães em supermercados da cidade. Trabalho que foi "articulado" por sua mãe com um amigo que produzia pães com ingredientes naturais. No entanto, não satisfeito com os rendimentos que o emprego lhe possibilitava e, por que o emprego lhe tomava todo o tempo do dia não lhe permitindo surfar, decidiu deixar o trabalho, tendo recebido a aprovação da mãe.

Quando iniciei a pesquisa Fly estudava numa escola em Ingleses, na 7ª série do 1º grau. No entanto, em razão de um desentendimento com uma professora, deixou a escola durante o ano de 1990. Este fato deixou-o muito chateado, principalmente no momento da formatura de sua turma, pois como me disse, não estava se formando e não se enturmaria mais com os colegas. Sua família concordou com a sua saída da escola, tendo em vista que logo mais ele poderia fazer supletivo e terminar o 1º grau.

Assim, durante o tempo da pesquisa Fly - com exceção de alguns momentos em que se envolvia num ou outro "bico" - surfou. Em determinados momentos sua mmãe solicitou que trabalhasse e, na medida em que ele não se movimentava nessa direção, entrava em constantes conflitos com seus familiares. Esses conflitos estavam sempre presentes em nossas conversas e vinha acompanhado com a idéia de independência da família, com o sair de casa: morar nos fundos, morar com um amigo, morar com o pai, etc.

O surfe apareceu em sua vida no Rio Grande do Sul e ele começou a praticá-lo em função dos amigos e da moda, vindo a se interessar mais no decorrer do tempo. Quando chegou em Santinho estava se iniciando no esporte e a "Galera" o ajudou muito em seu aprendizado.

Quando nos encontramos, estava surfando havia dois anos e meio e, segundo sua percepção, seu surfe era pouco para quem tinha a perspectiva da profissionalização. Assim passava a maior parte de seu tempo no mar, treinando, seja em Santinho, seja em Ingleses. Para sua manutenção, seja para seus passeios, seja para o esporte, ele dependia de seus familiares financeiramente, o que lhe colocava numa situação bastante vulnerável, pois freqüentemente cobrado por isso (pela sua família e por seus amigos não surfistas).

Num determinado momento da minha pesquisa de campo, Fly, juntamente com Ido, no o intuito de superar tal situação, tentou arrumar um emprego de "representante" de uma "grife de surfwear". Tal empreendimento, no entanto, não foi implementado pois sua mãe, assim como os familiares de Ido, não tinham condições de bancar tal projeto: eles não tinham capital para assegurar possíveis "furos" dos clientes nos acertos com os "meninos".

Entendemos esse movimento de Fly sob duas perspectivas: por um lado, vemo-lo como a tentativa de superar suas dificuldades com seus familiares, oriundas principalmente de seu "não trabalhar", por outro lado, como tentativa de assegurar sua inserção no surfe, através da representação de uma grife de surfwear: o que implicava na possibilidade de ter bons equipamentos, pagamento de inscrições em campeonatos, etc. Em suma, eram tentativas de manter o "estilo" de vida "do surfe" assumido por ele em várias situações: "sou surfista então faço isso, faço aquilo, deixo isso, etc...".

Em nosso último encontro - Julho/94 - Fly (com 20 anos) estava ainda morando com seus familiares: sua mãe, seu irmão, - Vitor, que veio morar com a mãe no início de 1994. Sua avó morreu no mês de Junho/94, logo depois que estive no Santinho. Perguntei-lhe sobre o surfe e me respondeu que havia desistido da idéia de profissionalização. Assinalou-me que "ele não precisava profissionalizar-se pois tinha um mar a sua disposição para praticar seu surfe".

No que se referia a sua inserção no mercado de trabalho dizia ainda estar pensando, pois havia chegado recentemente de Porto Alegre (havia ficado dois meses com o pai) e não tinha definido o que faria "para arranjar uma grana". Sua mãe solicitou que ele e seu irmão Vitor a ajudassem na confecção de brinquedos e era o que ele estava fazendo.

No que se refere à inserção de Fly na "Galera" pude notar que, assim como Yufu, ele tinha uma gama de experiências que lhe asseguravam um capital diferente do dos nativos. Tais diferenças expressavam-se através de pensamentos, atitudes, comportamentos, etc. que o levavam à entabulação de várias discussões com os nativos.

As perspectivas de Yufu e Fly com relação ao surfe foram diferentes em relação aos outros membros da "Galera". Em primeiro lugar pelo fato de ambos terem assimilado um capital social diferente - em razão das suas trajetórias de vida e, em segundo lugar, pelo fato de seus familiares os apoiarem na prática do esporte, seja na expectativa de profissionalização - como é o caso de Yufu - seja como &quoot;curtição da natureza" - como é o caso de Fly.

Já para Dinalto, Xeroca e Ido, pelo fato de serem nascidos no bairro e praticamente nunca terem saído dali, a situação era diferente. Neles estava depositada a satisfação das expectativas referentes aos processos de socialização comuns aos indivíduos do lugar. Ou seja, um processo que valoriza o estudo, a força, o trabalho, etc., como elementos fundamentais para a vida dos indivíduos (principalmente para os homens). Este limite está colocado para a trajetória de todos os "nativos" do Santinho, principalmente, no que refere às aspirações destes com relação ao surfe. Para os pais destes jovens, o surfe é visto como uma atividade passageira, que não merece muita atenção, pois o tempo dará conta de colocá-la num segundo plano.

IDO - tinha 15 anos no início da pesquisa. Não estudava e não trabalhava formalmente. Filho de pescador, denegria com freqüência o trabalho do pai, principalmente pelo fato de ele ter abandonado um emprego público para trabalhar na pesca.

Sua família é constituída por seus pais e mais três irmãos, todos menores que ele. Seus pais consideram o surfe na vida de Ido como algo passageiro, o que seria superado assim que tivesse outras necessidades vinculadas a sua sobrevivência.

Nas ocasiões em que discutíamos as perspectivas futuras de cada um, Ido (assim como Fly) queria para sio "estrelado" do surfe. Entendemos tal expectavia, por um lado, como uma atitude de negação de sua condição e das perspectivas que esta condição lhe proporcionavam e, por outro lado, uma "forma mágica" de solucionar os problemas que enfrentava com seus familiares em função do fato de não trabalhar nem estudar.

No início da pesquisa, Ido surfava há dois anos, e, assim como Fly, passava boa parte de seus dias no mar "treinando", para adquirir maior experiência com o mar. Durante a pesquisa, Ido quebrou sua prancha e, visto não ter condições imediatas de comprar outra, emprestava a prancha e o ‘strep’ de algum membro da "Galera".

Ido se interessava muito em conhecer e curtir as músicas que circulavam no universo do surfe, principalmente o "reagge" . Com freqüência o via (juntamente com outros membros da "Galera") escutando suas fitas na frente de sua casa.

Quando aconteceu o campeonato da ASIS (Associação de Surf de Ingleses e Santinho), Ido, ao comentar os acontecimentos do dia no grupo, referiu-se exclusivamente ao "som", pois os organizadores não colocaram tanto "reagge" como ele esperava (enquanto os demais membros do grupo comentavam suas manobras, suas paqueras, etc.).

Em nosso último encontro - Julho/94 - vim a saber que Ido (com 19 anos) abandonara a idéia de profissionalizar-se no esporte. Nesse momento estava trabalhando com Xeroca na profissão de pintor, executando um trabalho num prédio no centro da cidade. Começou a desenvolver este trabalho em decorrência de novas necessidades que se criaram na relação com seus familiares: ele foi pressionado a "dar um rumo para sua vida", principalmente em termos econômicos, senão teria que sair de casa.

DINALTO era o membro mais velho do grupo (tinha 19 anos) e estava passando por um momento bastante conflituoso em sua vida, principalmente com seus familiares. Ele havia deixado os estudos (estudou até a 6ª série) e, no início da pesquisa, não trabalhava. Nos nossos contatos iniciais expôs-me que estava sendo pressionado por sua família para voltar aos estudos e ao trabalho, tendo em vista que na sua idade os jovens do bairro já não dependiam financeiramente de sua família.

Em termos profissionais, Dinalto passou por várias experiências e uma delas foi a de ir para o Rio Grande, trabalhar nos barcos de pesca. Avalia que tal situação foi desconfortável devido à monotonia, às saudades dos amigos, à falta de contato com a família, aos riscos em alto mar, etc... Lembra que ficava lendo revistas e ouvindo músicas para não "pirar".

Quando iniciei a pesquisa disse-me que seu último emprego tinha sido o de frentista num posto de gasolina, durante o verão de 89, e, até aquele momento (era julho/90 que conversamos sobre isto) não havia conseguido trabalhar ainda. Como os outros envolvia-se em algumas atividades que lhe rendiam alguns trocados, mas não dava para "bancar" suas necessidades, vindo a depender de seus pais.

No início da pesquisa Dinalto vivia com seus pais e mais cinco irmãos - três homens e duas mulheres. Em julho/94, estava morando com Popó, numa casa nos fundos do terreno do pai. Ele e Popó são os únicos filhos solteiros da família.

"Seu" João - pai de Dinalto - em uma conversa, em minha última visita no Santinho, diz que vê o processo do filho com certa preocupação, pois, para ele, Dinalto está um pouco perdido nos seus desejos, mas acha que ele ainda vai "acertar na vida; é uma questão de tempo. O que podemos fazer? é um rapaz de 23/24 anos; já tá grande; nós ... aconselhamos..."

Dinalto começou a praticar o surfe com 12 anos e, ao chegar aos 19 anos percebeu que, devida às exigências colocadas por seus pais, sua carreira estava no fim - ou trabalhava e estudava ou trabalhava.

No final verão de 1990, quando foi trabalhar com um tio, num supermercado, na Armação, teve a oportunidade de experienciar que o trabalho não prejudicava a prática do surfe, pois durante suas folgas surfava na praia de Matadeiros (ver Figura 4 para localização desta praia que fica ao sul da Ilha de Santa Catarina). No entanto, percebia também que deveria abandonar os seus desejos de profissionalizar-se, pois ele não tinha condições de realizá-los, pois não poderia treinar freqüentemente por causa do trabalho.

Concomitante à necessidade de vir a trabalhar surgiu outra necessidade; a de estudar, pois, sempre que procurava emprego na cidade, certificava-se que geralmente se exigia a conclusão do 1º grau (principalmente para os cargos que havia pleiteado durante o ano de 1990): daí sua iniciativa de procurar um supletivo para a conclusão deste nível escolar durante o ano de 1991.

Estas questões foram colocadas por Dinalto numa conversa no final de fevereiro de 1991, quando lhe entreguei as fotos tiradas pelo jornalista do "O Estado de São Paulo". Naquela ocasião afirmou que, a partir de então, veria o surfe não mais como presente, mas como passado, "pendurado na parede através de suas fotos".

Entretanto, o "abandono do surfe" sempre esteve presente nas conversas que estabelecíamos. Durante o desenrolar da pesquisa, em 1990/91, o "deixar de surfar" já vinha sendo exercitado por ele. Deixou de "treinar" e era o único membro do grupo que "jogava" futebol na praia (o que implicava em participar de dois grupos diferentes). Por isso não participava de "todas" as atividades "promovidas" pela "Galera" tais como passeios, noitadas, etc... Era como estar saindo de um grupo - a "Galera" - e entrando num outro - o do "futebol".

Vale a pena notar ainda que a rede de relações que Dinalto estabelecia dentro do bairro e em Ingleses era mais ampla que a dos demais membros do grupo, e foi através dele que tive a oportunidade de conhecer outras pessoas que moram em Santinho. Ele foi um pouco meu "cicerone" no bairro, dando-me "carta branca" ao apresentar-me a seus amigos .

Em Julho/94, encontrei Dinalto ainda apreensivo com relação ao seu futuro, principalmente na realização de um projeto que vinha desenvolvendo com seu irmão Popó que é a construção de sua casa.

Durante este último período que estive no Santinho vim saber que Dinalto começou, mas não terminou seus estudos no Supletivo de primeiro grau. Interessou-se também em fazer um curso de computação, idéia que não levou adiante. Neste momento estava então trabalhando num posto de gasolina e a "grana" que recebia, colocava na construção de sua casa. Ele e seu irmão iniciaram a construção em 03/93 e pretendiam alugá-la para turistas durante a temporada de 94.

Durante minha última estadia no lugar, Dinalto demonstrava uma preocupação com seu emprego. Segundo seu irmão, ele desejava "coisas que o emprego de frentista não lhe propiciaria". Assim, Dinalto freqüentemente ia ao centro da cidade procurar uma colocação profissional melhor.

Tal pretensão, no entanto, o colocava direção oposta a dos seus desejos referentes ao surfe. Numa conversa, ele me perguntou como fazer para ganhar muito dinheiro. Respondi-lhe que o trabalho lhe permitia ganhar dinheiro. A isso ele me retrucou: "mas em Santinho não tem emprego!". Apontei-lhe quanto é difícil lidar com esses limites. Então ele me disse: "é muito difícil, pois você tem que deixar muita coisa!"

Em seguida assinalou que desejaria ganhar muito dinheiro para poder ficar ali surfando com seus amigos e, como que saindo de um sonho, observou que isto era impossível, pois não tinha condições financeiras de manter-se no esporte. A questão econômica estava ali colocada e ele tinha dificuldades de aceitá-la.

Apesar da dificuldade, a perspectiva de resolução deste conflito veio logo em seguida. Numa manhã de sábado, encontrei-o voltando do centro da cidade com Xeroca. Ambos estavam com o cabelo cortado - até então estavam com o cabelo comprido, com uma mecha loura estampada - e ao me verem, Dinalto justificou: "para eu arrumar um emprego razoável eu preciso me apresentar bem. Pintou um trabalho de motorista na empresa X que eu vou ver na segunda-feira". Nesta situação Dinalto e Xeroca expresaram o desejo de irem embora do Santinho, pois o lugar não lhes oferecia empregos decentes, não tinham nada para fazer. O bairro não estava dando conta de seus desejos e necessidades! Nesse momento perguntei-lhes porque não tentarem uma vaga no Costão. Ambos disseram que o Costão é uma ilusão, não oferece condições para o empregado subir, pagam mal, etc....

XEROCA - tinha 18 anos no início da pesquisa. Não trabalhava (a não ser esporadicamente) nem estudava. Vivia surfando, ou zanzando pelo bairro ou em Ingleses. Assim como Ido, Xeroca denegria com freqüência o trabalho desenvolvido por seu pai - pescador - negando esta possibilidade de trabalho para si mesmo.

Este tipo de trabalho era descartado,pois Xeroca teve uma experiência no mar que o deixou "traumatizado". Quando tinha 14 anos chegou a trabalhar na colônia de pescadores em Ingleses. Segundo ele, na primeira experiência que teve em alto mar, o barco, em que estava, quase virou: "era como uma caixinha de fósforo n’água, fiquei enjoado". A partir de então, não entrou mais num "barquinho" daqueles.

No entanto, durante a pesquisa de campo (90/91), Xeroca não demonstrava interesse em trabalhar num emprego fixo e de tempo integral, pois tinha interesse em dedicar-se ao surfe, com perspectiva de profissionalizar-se.

Ele começou seu aprendizado no surfe com 13 anos e, no decorrer da pesquisa, demonstrou a firme convicção de se inserir no surfe profissional. Assim, todo o dinheiro que qualquer atividade lhe rendesse ele aplicava no esporte - comprando pranchas, "strep’, roupas, etc.

Os jovens nativos, mantinham uma atitude crítica (na "Galera" essa atitude nunca foi demonstrada) para com Xeroca principalmente pelo fato de seu pai ser um senhor de idade avançada e doente, não tendo condições de desenvolver atividades que implicassem esforços físicos - como a pesca. Assim, alimentava-se a a expectativa de que Xeroca assumisse o sustento da casa (ele e sua irmã), de modo a dar mais conforto ao "velho".

Já em 1994 (com 22 anos), encontrei-o com uma expectativa de vida diferente. Ele e Ido estavam trabalhando como pintores em algumas construções, ali mesmo no Santinho e na cidade. Xeroca estava construindo sua casa - no terreno de seu pai, e estava muito contente com a profissão que vinha desenvolvendo, principalmente pelo fato de estar se sustentando sem a dependência do pai.

A construção de sua casa também estava vinculada a um projeto de independência econômica: esperava, um dia, alugá-la para algum turista, um motivo a mais para terminá-la o mais rápido possível.

Quanto ao surfe - desistiu de profissionalizar-se pois tinha consciência de que não teria condições econômicas de manter-se no esporte.

Tanto para Xeroca, como para Dinalto (e para seu irmão Popó) "o construir suas casas" estava relacionado com a possibilidade de virem a se casar (esta era uma pretensão que Yufu não demonstrou ter). Xeroca estava "namorando duas gatas", estava experimentando relações; Dinalto estava também tentando um namoro mais firme com uma garota dos Ingleses. Popó, namorava uma garota de Porto Alegre que veio morar no Santinho.

Isto nos sugere que, no processo de "construir uma casa", está implícita uma preocupação de estabelecer família no lugar (talvez através de uma fuga), assim como o arranjar um emprego que satisfizesse as necessidades de uma família. Tal fato nos sugere que estes jovens, Dinalto e Xeroca, estão dando os primeiros passos na direção do mundo dos adultos do Santinho, ou seja, estão superando suas necessidades e expectativas adolescentes.

4.2 - "Galera" e sua Dinâmica

Foi no encontro que mantive na casa de Fly com os surfistas a primeira vez que ouvi o termo "Galera". Este termo era geralmente utilizado pelos elementos que compõem o grupo - Fly, Yufu, Dinalto, Ido, Xeroca (Foto 25) - e por pessoas do lugar que mantinham algum tipo de relação com eles, como por exemplo, Sirio, Arnaldo, Maral, etc. - os quais, vez ou outra, acompanhavam o grupo no surfe: ora batendo algumas fotos, ora torcendo nos campeonatos, ora participando dos passeios noturnos, etc. .

Tal denominação, portanto, era uma referência, em primeiro lugar, para os próprios elementos que participavam do grupo, e depois para algumas pessoas que, apesar de não surfarem (mas já terem praticado o surfe, um dia), estabeleciam relações com o grupo ou com os seus membros individualmente.

A partir desta auto-referência foi possível o estabelecimento dos contornos do grupo de surfistas, pois, a partir dela, o grupo estabelecia algumas fronteiras nas relações que mantinha com outros grupos do lugar, como, por exemplo, com os jovens que jogam futebol.

Um outro ponto que ajudou no estabelecimento dos contornos do grupo foi o fato de seus membros praticarem o surfe. Apesar de eles desenvolverem também outras atividades conjuntamente, como por exemplo, passeios, festas, "audição" de músicas, etc., o surfe era o ‘mote’ principal para estarem juntos.

 

FOTO 25 - A ‘Galera" em pose

Isto lhes permitia - em função da especificidade do esporte e da linguagem própria ao surfe - o acesso a um sistema simbólico que lhes possibilitava referirem-se a si mesmos, enquanto grupo, estabelecerem diferenças e manterem a identidade do grupo nas relações com os outros indivíduos do lugar.

O termo "Galera", no entanto, não se referia exclusivamente a um espaço social dedicado ao surfe. Quando ele era utilizado - seja pelos membros do grupo seja por outras pessoas próximas - referia-se também a uma ação - ao estar junto, desenvolvendo uma atividade em comum, atividade que envolvia, praticamente, todos os elementos do grupo e os amigos mais próximos: "A Galera vai fazer isto ou aquilo", "a Galera vai para tal lugar", etc.

O surfe era também o tema mais freqüente das conversas que estabeleciam entre si. Discutiam aspectos relativos ao esporte - manobras, revistas, ídolos, etc... e, quando conversavam sobre questões polêmicas, como por exemplo, sobre relações familiares, namoro, tinha-se como referência "o ser surfista". Tal atitude pude observar quando Fly, ao justificar o fato de não namorar as garotas do bairro, dizer: "Sabe como é que é, surfista gosta de coisa nova, emoções novas, então nós não namoramos as garotas do Santinho porque nós as conhecemos".

A prática do surfe e a utilização de uma linguagem específica não impediam a presença de outras pessoas participando do grupo. Às vezes o grupo ia surfar e era acompanhado por "leigos" no assunto, e, quando se encontravam, trocavam idéias quanto às manobras, às sensações, ao mar, etc...

O fato de não terem dinheiro suficiente para comprar equipamentos, ou assegurar a manutenção daqueles que possuíam, levou estes jovens a desenvolverem uma certa solidariedade entre si. Tal solidariedade se expressava pelo empréstimo de equipamentos (prancha, strep), materiais (parafina, etc.) e roupas (roupa de borracha), Tal estratégia assegurava a todos os que se interessavam por surfe a prática desse esporte.

A "Galera" foi muito importante para o desenvolvimento da identidade daqueles que nela se inseriram. Pois, ela se caracterizou como um espaço onde os jovens podiam exercer sua autonomia, sua independência, com relação aos familiares. Ali eles foram buscar a uniformidade (Erikson, 1976a, Knobel, 1981) para suas experiências no sentido de reelaborarem os valores sociais a que estavam sujeitos.

Enfim, a "Galera" caracterizou-se como uma estratégia utilizada por um grupo de jovens que moram em Santinho para a superação de algumas dificuldades, de tal modo que puderam condividir suas angústias, suas ansiedades, suas dúvidas, etc. - sentimentos próprios de alguém que está prestes a se inserir no universo adulto.

Em minha última incursão no Santinho pude observar que a "Galera" já não existe mais. Como assinala Fau (1968), o grupo de adolescentes é transitório, e no caso dos membros da "Galera", cada um cresceu, conforme suas oportunidades, conforme suas vontades, e o "estar junto" que caracterizava aquele grupo não é mais necessário, pois os interesses são outros; as relações tomaram outra dimensão.

Nesse sentido, vale lembrar, Yufu contratou os serviços de Dinalto e seu irmão para construírem sua casa. Inicialmente pensei que esta forma de "relação" reafirmava a solidariedade que existia entre os membros da Galera e afins. No entanto, percebi que as relações tomavam outro significado, pois, apesar da amizade, estabeleceu-se uma relação de "patrão" x "empregado", ou seja, os "pólos" da relação não são simétricos.

O surfe deixou de ser o praticado por alguns "garotos" em grupo e cada um resolveu, a seu modo, os desejos nunca realizados de um dia vir a ser surfista profissional.

Como podemos ver, quando caracterizamos a trajetória dos membros da "Galera", Yufu e Fly, de uma certa forma, continuam surfando: o primeiro com uma perspectiva profissional, o segundo por prazer.

Já Ido, Dinalto e Xeroca, pela falta de condições financeiras não "acalentam" mais os sonhos de 4 anos atrás. Hoje eles estão preocupados em arrumarem uma profissão, construírem suas casas, se possível se casarem... No entanto, apesar de alguns não surfarem mais, ou por terem dininuído as oportunidades de surfar para outros, todos continuam com firme convicção de que são surfistas!

4.2.1 - A "Galera" como um Espaço do "Vir a Ser"!

I

Uma questão que sempre me chamou a atenção durante o trabalho de campo foi o fato de alguns nativos procurarem o surfe como um esporte, tendo em vista que os códigos - o universo simbólico - implícitos no esporte não faziam parte do cotidiano do Santinho. A pergunta era: o que faz esses rapazes procurarem o surfe como uma prática de lazer e até sonharem com sua profissionalização?

"Olhando" a trajetória de cada um, podemos observar que, praticamente todos eles, se iniciaram no surfe, na idade de 12/13 anos, momento em que os jovens do lugar começam a se inserir mais intensamente em atividades cujo objetivo é o de aprenderem alguma profissão, no caso a pesca (atividade profissional tradicional no Santinho).

Como podemos notar nos depoimentos de Ido, Dinalto e Xeroca, há uma tentativa por parte deles de negarem esta trajetória profissional. Nesse sentido, o surfe aparece como uma opção, pois, de um lado, com esta prática, "desviam-se" da trajetória que lhes é oferecida. Por outro lado, o surfe também propicia elementos para a construção de suas identidades, o que lhes permite posicionarem-se no universo social do Santinho sob novas perspectivas, diferenciando-se do conjunto da comunidade.

Tal estratégia caracterizava-se pela operacionalização dos códigos que circunscrevem o universo simbólico do surfe nas relações que estabeleciam com outros indivíduos, o que lhes assegurava uma "marca de distinção" (Bourdieu, 1989).

Durante os relatos das trajetórias de cada um dos nativos, utilizei com certa freqüência o termo "sonhar"; isto está relacionado com um mecanismo utilizado por esses jovens ao se apropriarem do surfe. Deum lado podemos observar uma negação das possibilidades que o processo de socialização lhes ofereciam: como o trabalho, a tradição, a pesca, o futebol, a força bruta, etc, de outro lado idealizavam e projetavam um futuro que enfatizava o oposto: o lazer, o surfe. etc...

Os modelos tomados como objeto de idealização para a construção de suas identidades, conseqüentemente, são buscados em um outro universo social: geralmente são surfistas famosos cujas performances e, concomitantemente, comportamentos, etc., são divulgadas pelas revistas especializadas.

Durante as conversas com a "Galera", era freqüente a discussão sobre o universo do surfe e então, os membros do grupo se referiam a alguns surfistas profissionais (Tom Currem, Jojó de Olivença, Teco Padaratz, Dadá Figueiredo, Tinguinha, etc.), os quais, devido ao estilo própria de cada um, eram tomados como modelos. Ao verem as revistas, geralmente comparavam as fotos de seus preferidos, discutiam suas manobras, discorriam sobre quem era o "mais radical" e sobre as possibilidades de também eles executarem tais manobras, e sobre como isso implicava em aprimorarem uma técnica corporal específica.

Nesse sentido, na medida em que o surfe (e seus desdobramentos) era assumido por esses nativos como perspectiva para a construção de suas identidades, levantavam algumas questões relativas aos processos tradicionais de socialização dos jovens no Santinho. Tais processos, que são operacionalizados pela família, pela escola, pela profissão pela cultura, pela moda, etc., assim como pela política, pela religião, pelo sexo, etc.; são reconsiderados pelos nativos surfistas que, em função de suas novas necessidades engendradas a partir do universo do surfe, os rejeitam, os contestam...

Tal situação ainda pode ser depreendida das trajetórias dos nativos no universo do surfe. Os três nativos que participaram da "Galera" não efetivaram os seus desejos de "profissionalização" no surfe. No entanto, apesar de se inserirem no mercado de trabalho - conforme as expectativas de suas famílias - as profissões que desenvolvem lhes permitem saírem do lugar (o desejo de sair do Santinho está presente), o que nos sugere que o trabalho tradicional - a pesca, o engenho, etc... não dão conta das novas necessidades dos jovens do lugar.

Vale salientar ainda, que o processo de urbanização e de implementação do turismo têm criado novos meios sociais e espaços culturais de socialização: os antigos quadros de socialização - família, escola, comunidade ou vizinhança perderam sua eficácia. Conforme nos assinala Balandier (1976) "o processo de socialização realiza-se cada vez mais entre "pares", através do jogo de relações constituídas "horizontalmente" e cada vez menos no quadro das relações "verticais", entre as gerações sucessivas."

Nesse sentido, entendo a "Galera" como um espaço onde, em suas adolescências, estes jovens puderam exercitar sua passagem para o mundo adulto. Nesse espaço social puderam exercitar as contradições decorrentes do processo de desenvolvimento e modernização e novas possibilidades - diferentes das tradicionais - no processo de construção de suas identidades.

II

Como assinalamos no transcorrer deste trabalho, o "mundo do surfe" se configura como um universo que se funda num sistema simbólico específico - com hábitos e linguagem próprios - o que se expressa através de um estilo de vida particular.

Assim, estes adolescentes, em 1990, optaram - consciente ou inconscientemente - pela circunscrição de um espaço social - a "Galera" - e a partir da atividade do surfe, puderam superar as dificuldades inerentes ao processo de inserção no mundo adulto.

A busca de uniformidade por parte dos elementos do grupo pode ser caracterizada pelo fato de que todos eles compartilharam um único esporte - o surfe (alguns deles inclusive se negavam a participar de outra modalidade esportiva, como o futebol - comum também no bairro). Ou seja, o surfe - na medida em que era exercitado neste espaço social - caracterizou-se como um objeto que foi operacionalizado de tal forma que garantiu a uniformidade da experiência - uniformidade imprescindível para a construção da identidade de qualquer indivíduo (Erikson, 1976a).

Praticar este esporte implicava, no entanto, em aprender uma técnica e uma técnica corporal muito específica .

Assim, o corpo, ou melhor, as maneiras pelas quais estes jovens "tratavam seus corpos", foi um elemento que permitiu aos membros do grupo identificarem-se entre si (identificação em massa) e com a "figura" do surfista. Segundo Yufu, "todo surfista curte prá caramba seu corpo". Apesar dos membros do grupo "curtirem" seus corpos de maneiras diferentes, o espaço da "Galera" foi continente para várias experiências, assegurando-lhes, além disso, o "status" do ser/estar surfista, na medida em que era no surfe que iam buscar suas inspirações.

O "curtir" o corpo pelo grupo apresentava-se sob duas maneiras: aquela relacionada com a prática do esporte em si, que caracterizava uma preocupação com a resistência física; a outra dimensão estava relacionada com um certo "hedonismo corporal", que revelava uma "estética" corporal bastante estilizada, diferenciando-os do universo simbólico tradicional do Santinho.

Estes dois aspectos do "curtir" o corpo são elaborados a partir das informações divulgadas pelos meios de comunicação, principalmente pelas revistas especializadas. Estas, por sua vez, têm como perspectiva de trabalho a disseminação do ideário da profissionalização do esporte que se dá através da criação de ídolos para os aficionados no esporte.

Adquirir tal técnica implica num "cuidar do físico". As revistas geralmente trazem matérias relativas a exercícios físicos, alongamentos, dicas sobre alimentação, ou seja, "receitas" para uma "boa saúde", necessária para uma boa performance n’água.

Quando estas idéias eram discutidas pela "Galera" o corpo passava a ser visto como um símbolo da resistência física pois, segundo os membros do grupo, a relação que o surfista estabelece com o mar é uma relação de força: o mar era visto como algo a ser superado, dominado, o que implicava, concomitantemente, um domínio sobre o próprio corpo, requerenso-se também a superação das condições físicas, como fome, cansaço, etc.

Além disso, eles assumiam um "modelo" para a saúde (também veiculado pelas revistas) que se apontava para a prática de exercícios físicos, boa alimentação e atividades que não agrediam o corpo, ou seja, "se você mantém uma boa saúde, alimentando-se corretamente, fazendo exercícios, não fumando, não bebendo, não usando drogas, terá melhores condições de se tornar um bom surfista".

Apesar de a "Galera" assumir essas idéias, elas não eram efetivadas em seu cotidiano. Em várias ocasiões encontrei os membros do grupo "detonados" pelas ruas do bairro. Geralmente utilizavam bebidas alcoólicas. Certa vez ofereceram-me uma mistura de vinho com caldo de cana. Perguntados sobre a finalidade desta mistura, responderam que era para dar "barato". Devido às noitadas não dormiam cedo; não praticavam outro esporte; não faziam qualquer tipo de condicionamento físico. Quando iam surfar não faziam alongamento, aquecimento, etc...

Quando questionados sobre isso responderam que a melhor maneira de se "manter em forma" era surfando. Eles não precisavam fazer exercícios, dietas ou deixar de beber ou fumar para serem bons surfistas. Assim, quando tinham algum tempo livre - fosse verão ou inverno - e se o mar offerecesse condições, lá iam eles para a praia com suas pranchas praticarem o surfe .

Tal perspectiva nos sugere que, o processo de internalização - tanto dos valores tradicionais do Santtinho, como aqueles implementados pelo ideário do surfe via meios de comunicação - foram redimensionados pelos indivíduos, de tal modo que o exercício coletivo desta ressignificação permitiu uma reinterpretação - por parte dos integrantes do grupo - das informações que lhes eram oferecidas .

Como assinalei anteriormente, o corpo também é operacionalizado pela "Galera" para expressar uma estética corporal própria. Ele era a marca do ser/estar surfista - um objeto denso em símbolos que eram operacionalizados para caracterizar tal "status" . Esta estética corporal inspira-se no surfista "americano" que traz o cabelos loiro , as tatuagens pelo corpo, a pele doirada, as roupas surfwear, a postura corporal, etc.; imagem essa amplamente divulgada pelas revistas de surfe nas suas páginas e páginas de publicidade.

Certa noite, saindo para passear com os garotos, notei que, em certo momento, enquanto esperávamos o ônibus, eles começaram a comparar suas roupas e seus calçados. Referiram-se às grifes das camisetas, dos moletons, das calças (praticamente todas eram do mercado de surfwear: OP, Hang Loose, etc.), do tênis (Reebok, Rainha 2000, etc.), assim como os preços de cada peça. Aquele que não estava "vestido à caráter" era "gozado" pelo grupo.

Após a "brincadeira", um deles falou: "A "Galera" está pronta para cair na noite!". Tal fato nos sugere que existia uma tentativa, por parte dos membros do grupo, de buscar certa "uniformidade" no apresentar-se corporalmente frente "às paqueras", de modo que eles fossem reconhecidos como surfistas. Além disso, a "gozação" também servia para estabelecer as "posições" dos membros do grupo hierarquizando-o em função do poder de cada um, o que, no caso, estava relacionado com suas condições econômicas (Bourdieu, 1989).

No dia a dia, os garotos também usavam roupas vinculadas ao universo do surfe: calções coloridos, camisetas com motivos relativos ao surfe, moletons (no inverno), etc., o que lhes possibilitava serem reconhecidos tanto pelos moradores como por outros surfistas como tais.

Assim, o processo de construção de identidade dos surfistas que participavam da "Galera" passava pela elaboração de uma imagem corporal cujo ponto de referência era a imagem do surfista veiculada pela mídia especializada - principalmente pelas revistas (pois era o meio a que eles tinham mais acesso). As maneiras de tratarem seus corpos - ao praticarem o surfe, ao usarem roupas, tatuagens, tintura nos cabelos, etc. -, lhes permitiam diferenciarem-se - enquanto grupo - de outros grupos que ali se constituíam (como é o caso do time de futebol).

Tal perspectiva nos remete a algumas idéias desenvolvidas por Clastres (1986) quando analisa a tortura nas sociedades primitivas. Em seu texto esse autor nos diz que as sociedades sem escrita escrevem no corpo as suas leis. Imprimem suas marcas nos corpos, porque o corpo é uma memória no tempo e no espaço. Quando nos rituais de iniciação um jovem passa para a idade adulta, é no e através de seu corpo que se marca a passagem. Assim, o ethos tribal é escrito nos corpos individuais, para que definitivamente o indivíduo - assim como a comunidade - não se esqueça de que é membro dessa comunidade.

Assim, o grupo - enquanto anipulava um universo simbólico bastante específico assegurava aos seus membros a manutenção e o reforço da identidade de surfista, apesar das diferenças que existiam entre eles.

Ao fazermos uma comparação entre as maneiras pelas quais os jovens nativos e jovens surfistas "modelam" seus corpos, vamos observar que o surfe introduz uma alternativa completamente diferente da tradicional no Santinho. Enquanto a socialização do jovem propõe atividades, em que o corpo é modelado na pesca e em que onde se valoriza a força bruta (o que é também reforçado pelo futebol); o surfe aponta para uma direção completamente oposta: a construção do corpo está relacionada com o lazer (em primeiro lugar, porque os surfistas pesquisados não trabalhavam e não eram profissionais do surfe, e em segundo lugar, o mar em Santinho é um espaço de trabalho) e sua prática enfatiza a técnica (Pociello, 1982) em detrimento da força bruta.

Como podemos depreender dos aspectos teóricos desenvolvidos no Capítulo I, o processo de construção de identidade dos adolescentes implica numa reestruturação de seu esquema corporal - tendo em vista as mudanças biofisiológicas que acompanham este período. Assim, estas maneiras de "tratar" o corpo se caracterizam como processos fundamentais para a construção da personalidade dos indivíduos.

O "corpo" também proporcionava outras possibilidades para o processo de construção da identidade: estas podiam ser observadas pela relação que os membros da "Galera" estabeleciam com as fotos.

Praticamente todos eles expressavam o desejo de se profissionalizarem no esporte. No entanto, para que isso se efetivasse era necessário patrocinadores que bancassem os custos dos equipamentos, inscrições em campeonatos, etc. e, para conseguirem um patrocínio, era necessário que elaborassem um "book" de fotos.

Assim, como eu dispunha de máquina fotográfica e, por causa da dissertação, tirava fotos constantemente da praia e do grupo, comecei a fornecer-lhes aquelas que não utilizaria, de modo que pudessem iniciar a elaboração do tal "book".

A partir de um diálogo entre Ido e Dinalto, percebi que as fotos eram também utilizadas para outros fins. Após entregar-lhes algumas fotos, Dinalto guardou a sua no bolso. Ido vendo isto lhe perguntou: "Você não vai mostrar a foto para as meninas?". Dinalto lhe respondeu mostrando a foto: "Não, eu não estou bem nesta foto, meu cabelo está despenteado."

Assim pude compreender que o processo de construção de identidade daqueles surfistas estava também relacionado com a construção de uma identidade para si mesmo - um auto-reconhecimento - onde a referência se desloca da relação com o outro para uma relação consigo mesmo (sem descartar o outro, é claro); e o que mediava este "olhar" para si mesmo eram os "atributos do corpo".

Quero dizer com isto que o processo de construção de identidade implica um outro, mas também um si mesmo, ou seja, durante este processo os indivíduos se percebem em relação com o outro: o construir a identidade também implica uma auto-percepção do indivíduo envolvido nas relações sociais.

Tal perspectiva nos sugere que as fotos proporcionavam 1) um olhar sobre o próprio corpo de modo que eles podiam avaliar a dimensão das mudanças decorrentes do processo de desenvolvimento físico, 2) uma avaliação sobre si mesmos e sobre as maneiras pelas quais se apresentavam para os outros (assim prever o como ser recebido por um outro: "se feio, não vale, ela pode não gostar") e 3) se auto-reconhecerem enquanto sujeitos em processo de construção de suas identidades, principalmente pelo fato de a foto capturar um momento de suas vidas - "congelá-lo" .

A foto, portanto, assegurava aos membros da "Galera" reconhecerem-se - e serem reconhecidos - enquanto surfistas, assim como em processo de construção - sujeitos em mudança.

Isto pode ser mais bem esclarecido quando lhes foram entregues as fotos tiradas pelo fotógrafo do "O Estado de São Paulo". Em duas fotos não aparecia o rosto do surfista. Uma delas foi reconhecida por Yufu, devido à marca da prancha, a outra ficou rolando de mão em mão até chegarmos a conclusão de que era de Dinalto. Esta conclusão foi por exclusão: Fly não se reconhecia na foto, pois aquele não era seu estilo. Ido e Yufu afirmavam que não fizeram aquela manobra , Dinalto relutou em reconhecer-se, mas porque os outros não se reconheciam na foto, ela acabou ficando com ele .

Um outro fato que assegurava a manutenção e o estabelecimento das fronteiras do grupo de surfistas era a utilização de uma linguagem própria: a do universo do surfe. Como nos apontou Preti (1984), a utilização de uma linguagem específica por um grupo possibilita o estabelecimento de fronteiras com a sociedade em geral. O uso restrito de determinado código lingüístico evoca hábitos, atitudes, atividades pouco correntes e muitas vezes contraditórias ao status quo social, ou seja, o fato de dominarem um código próprio lhes possibilitava "diferenciarem-se" no universo simbólico de Santinho .

Há que se notar, no entanto, que quando conversavam comigo não utilizavam tais códigos com freqüência - a não ser quando discutíamos sobre surfe - assim como com amigos mais próximos. Já em situações onde se encontravam sozinhos num ambiente social - principalmente nos bares onde iam "paquerar" -, onde participavam outras pessoas, o código era utilizado, ou seja, era operacionalizado para marcar os limites do grupo e a identidade de surfistas.

Como afirmamos anteriormente, a "Galera" pode ser considerada como um espaço social onde os jovens surfistas tinham condições para vivenciar os conflitos inerentes ao processo adolescente - vinculados à construção de suas identidades - o que implica a superação da dependência familiar, a inserção no mercado de trabalho, etc.

Esta perspectiva era consolidada na medida em que, neste espaço, discutiam seus conflitos familiares, suas concepções sobre família; as angústias do arrumar um emprego que contemplasse o surfe, as dificuldades de inserção no universo do surfe profissional; etc...

Tal fato, no entanto, também permitia que se estabelecessem e se vivenciasse as diferenças entre eles. Durante as discussões que realizavam, as diferenças ficavam muito evidentes. Isto ficou muito claro quando acompanhei uma discussão sobre namoro entre eles. Yufu e Fly demonstraram mais desprendimento no trato desta questão. Já as pessoas que nasceram no bairro, tratavam o tema com mais cautela, tentando assegurar os valores que aprenderam durante seus processos de socialização.

Na discussão sobre namoradas, Yufu e Fly defendiam a idéia de não se estabelecer um vínculo mais profundo com garotas: O "lance era ficar junto", "transar sem compromisso". Tal idéia não era acompanhada pelos nascidos no bairro pois eles viam o namoro como uma perspectiva de casamento - como sugere o fenômeno da fuga. Nessa mesma direção aconteceu o papo sobre a "traição" entre namorados: em princípio, para os nativos a fidelidade no namoro era imprescindível; já para os demais, não.

Tais idéias nos sugerem que a "Galera" era um espaço para a descoberta, para a troca de experiências, a experimentação de papéis e situações; exercitavam-se as dúvidas, os acertos, etc...

Não podemos deixar de assinalar também que a "Galera" foi um espaço para a concorrência, seja no nível físico - simulações de "lutas" como capoeira, caratê - o que implica os atributos do corpo, seja no âmbito do universo do surfe. Cabe apontar que, tal "concorrência" não comprometia as relações que ali se estabeleciam.

Em suma, a "Galera" caracterizava-se como um espaço social propício para se marcarem as semelhanças (quando buscavam a uniformidade) e as diferenças (decorrentes da trajetórias individuais de seus membros) entre esses jovens, movimento imprescindível para a construção da identidade tanto do ponto de vista sociológico como psicológico.

Este grupo de surfistas - apesar das diferentes trajetórias de seus membros - caracterizou-se, também, como um espaço onde foi possível - a seus membros individualmente - superarem os conflitos inerentes ao processo de adolescer. Ali eles puderam experimentar soluções - às vezes mágicas - de inserção no mundo adulto como foi o caso de Ido e Fly, tentando equacionar o problema trabalho x surfe, através de um trabalho de representação; ou mesmo sonhando com o surfe profissão, como foi o caso de Xeroca.

Para os nativos do Santinho - Dinalto, Xeroca e Ido - este espaço foi fundamental, pois ali eles puderam exercitar o conflito entre "surfe" - que os situava na adolescência e na "Galera" - e o trabalho - que os situava num "vir a ser" adulto. Para os não nativos, o espaço propiciou que fossem integrados no universo juvenil do Santinho; e o contato com os nativos, neste espaço, além de propiciar a manutenção de alguns valores desenvolvidos em suas trajetórias, também propiciou a internalização de alguns valores característicos do lugar - Fly e Yufu participaram das atividades rituais discutidas no Capítulo II, e o mais importante, este processo foi coletivo.

A superação dos conflitos deste período resultou, por sua vez, na descaracterização da "Galera". Hoje, os membros daquele grupo inserem-se na realidade do Santinho com outras preocupações: trabalho, constituição de família, construção de casa, com o próprio sustento, etc.

A perspectiva assinalada, nos parágrafos anteriores, sugere-me outra idéia: a de que o conflito que se estabelece nas relações entre os moradores do Santinho com o "outro", com a "diferença" - relacionados com os processos de urbanização do lugar e a implementação do turismo - são muito semelhantes àqueles que encontramos no espaço social delimitado pela "Galera". Pois, neste grupo, também se exercitava a diferença, a diversidade - lembro que dele participavam jovens nativos e jovens não nativos. Em suma, em ambas situações - aquela relativa ao bairro como um todo como aquela que era circunscrita pela "Galera" - as relações são marcadas pela questão da identidade e da diversidade, e somente o exercício do encontro pode propiciar a superação de problemas a elas vinculados - tanto pelos adolescentes, como pelos moradores e turistas do Santinho.

III

Quanto estive em Santinho em Julho/94, conversei muito com Dinalto sobre sua trajetória, suas impossibilidades de se inserir no universo do surfe, etc... Durante nossa conversa, ele salientou: "quando você aprende a surfar, você será sempre surfista."

Esta fala de Dinalto, possibilita-nos olhar um outro aspecto do processo de construção da identidade - e aqui eu me incluo, enquanto um ser em processo de construção - que é a memória. A sua fala nos dá a impressão de que ele está num processo em que acontece uma reelaboração de sua biografia - uma ressignificação de sua trajetória. Este movimento de Dinalto, sugere-nos uma integração de todo o passado, o experimentado, o internalizado (e também o rejeitado) - as experiências vivenciadas - com novas exigências do meio, o que lhe permite enxergar-se como um nativo, surfista, trabalhador, - ou seja, os papéis que assume atualmente não são vivenciados como descontínuos, mas como integrados.

Durante este trabalho, várias vezes foi assinalado que a construção da identidade dos indivíduos circunscreve-se a partir das relações que ele experiencia durante sua vida (Erikson, 1976a; Cardoso de Oliveira, 1976).

A recuperação das experiências passadas - a trajetória dos indivíduos - passa a ter, portanto, um significado especial para os indivíduos organizados socialmente, pois atua como um elemento constituinte da sociedade (Velho, 1988).

Assim, a memória do indivíduo torna-se socialmente mais relevante na medida em que, suas experiências, seus desejos, decepções, triunfos, etc. são os marcos que indicam o sentido de sua singularidade, enquanto indivíduo dentro de um contexto social determinado.

Por um lado, podemos dizer que é através do exercício da memória que o indivíduo se singulariza, pois ela lhe permite dar novos significados a sua experiência. De outro, ela também restitui o universo simbólico social em que os indivíduos estão inseridos, pois os significados dados para a experiência são recolocados na relação que o mesmo estabelece com a realidade social, dito de outra forma, a memória é mediada por significados dados socialmente (Halbwachs, 1990)

A memória permite assim, uma visão retrospectiva mais ou menos organizada de uma trajetória e de uma biografia. Além disso, ela também localiza o indivíduo no campo das possibilidades, do "vir a ser", permitindo-lhe a formulação de projeto.

Quando "olhamos" para a trajetória de Dinalto, Ido e Xeroca, podemos observar que, em 1990, tinham como projeto a profissionalização no surfe, e buscavam alternativas para a consecução do mesmo, através do estabelecimento de objetivos e fins, e a organização dos meios através dos quais estes poderiam ser atingidos: treinos, emprego vinculado ao universo do surfe, participação em campeonatos, solidariedade na troca de equipamentos para se manterem surfando, etc.

Na medida em que este projeto não se consolida - tendo em vista as condições sociais e econômicas desfavoráveis - não permitindo mais que eles surfem ou que surfem com menor freqüência - a leitura que se elabora da experiência assegura o "sentimento" de que se é surfista: a experiência anterior é incorporada na "história de vida" como um fragmento de suas identidades: como Dinalto me falou quando lhe entreguei algumas fotos: "estas ficarão penduradas na parede para que eu me lembre dos tempos de surfe"..

Nesse sentido, como destaca Velho (1988) as noções de projeto e de memória associam-se e se articulam para dar significado à vida e às ações dos indivíduos. Em outros termos, são noções que circunscrevem a própria identidade. Dito de outra forma, na constituição da identidade social dos indivíduos, a memória e o projeto representam as visões retrospectivas e prospectivas que situam o indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações, dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão das etapas de sua trajetória.

 

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POST SCRIPTUM

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