Ressalta, nesse esforço analítico, a construção categorial das subtríades que articulam os impactos dos INTERESSES DA CREDIBILIDADE, GOVERNABILIDADE e RACIONALIDADE da formação de políticas, no ambiente inclusivo dos Campos de Estruturação do Saber, daí se derivando uma Divisão Funcional dos Estudos Políticos.
[A] No ENFOQUE DA CULTURA POLÍTICA:
O impacto do INTERESSE DA RACIONALIDADE no DOMÍNIO DE TÉOS, Identifica o locus epistemológico da Teoria Democrática, assim considerada a fundamentação em nível mais abstrato e valorativo - mais propriamente filosófico - da ciência política. Corresponde aqui a Teoria Política, a uma abordagem intentione recta - ou seja, na perspectiva do agir comunicativo - da subtríade que integra o Interesse da Racionalidade no Processo de Formação de Políticas. Sua correspondência, no modelo paradigmático da epistemologia de síntese, é a Semiótica Transcendental e, numa abordagem mais tradicional dos estudos políticos, de alguma forma resgata as preocupações normativas do enfoque jurisdicista da Teoria Geral do Estado.
Na perspectiva do fazer comunicativo - intentione obliqua - o impacto do INTERESSE DA RACIONALIDADE no DOMÍNIO DE NÓMOS, explicita o locus paradigmático do que, propriamente, vimos elaborando ao longo deste texto, qual seja, uma Epistemologia da Ciência Política. A correspondência estrita com a estrutura conceitual da Epistemologia de Síntese, mantém o paralelismo dessa abordagem especial da ciência política no contexto genérico do paradigma sintético.
[B] No ENFOQUE DO COMPORTAMENTO POLÍTICO:
O impacto do INTERESSE DA CREDIBILIDADE no DOMÍNIO DE TÉOS - no lugar ocupado pela Ética, no modelo sintético - identifica o locus do Afrontamento Político nessa abordagem de epistemologia especial.
E o impacto do INTERESSE DA CREDIBILIDADE no DOMÍNIO DE PHYSIS - no lugar ocupado pela Política, no modelo sintético - identifica o locus da Intervenção Social na epistemologia da ciência política.
[C] No ENFOQUE DA SOLUÇÃO DE PROBLEMAS:
O impacto do INTERESSE DA GOVERNABILIDADE sobre o DOMÍNIO DE NÓMOS identifica o locus da Teoria Comparada, como um arcabouço teórico para a crítica hermenêutica dos regimes políticos, que corresponde no estudo de formação de políticas ao papel desempenhado pela HERMENÊUTICA no modelo sintético da epistemologia geral.
E o impacto do INTERESSE DA GOVERNABILIDADE sobre o domínio de PHYSIS identifica o locus da Lógica da Ação Coletiva, como a disciplina cogente dos processos decisórios individuais e coletivos, correspondem sistematicamente, no estudo da formação de políticas, às funções desempenhadas no modelo sintético pela Heurística.
Uma observação se torna necessária nesse ponto. Trata-se da justificativa para essa aparente inversão de posições, que nos leva a colocar a política-ação no espaço genérico da Ética, e o que explicitamos como operação do sistema geral de incentivos no lugar próprio da Política. De fato, a ciência política como "afrontamento", focaliza o momento prático da tomada de consciência - da formação de atitudes sociais, onde a construção e a avaliação de cenários da vida futura constitui uma ferramenta indispensável à análise para o posicionamento normativo do cidadão - ou do ator coletivo. Nesse momento, a ciência política é caudatária da Ética - não sendo aceitável a sua desconformidade com as regras do bem viver - o animal político, aqui, é antes de tudo e sobretudo um vir bonus. Já no momento da sua "intervenção" na sociedade, as regras do bem viver e as inclinações do vir bonus necessitam adequar-se aos constrangimentos da interação política, conhecendo e conformando-se às condições estratégicas da interação social, aos critérios de viabilidade e eficácia, sempre, entretanto, em estreita correlação e numa relação instrumental ao afrontamento político.
A ciência política, no campo da intervenção social, descortina um vasto arsenal de recursos operacionais, que as sociedades têm desenvolvido com vistas à compatibilização das lógicas, eventualmente contraditórias, dos interesses individual e social. A isso denominamos "sistema geral de incentivos". A terminologia é emprestada ao conceito dos "incentivos paralelos" com que Mancur OLSON Jr. no seu estudo clássico, The Logic of Collective Action, designa os elementos adicionais de barganha e convencimento que, sob a forma de remuneração externa a uma dada situação de conflito de interesses, permitem fazer pender a balança do interesse individual na escolha de uma estratégia cooperativa, na implementação de um curso de ação coletiva.
Nessa conceituação ampla, o sistema geral de incentivos à participação política, inclui toda a sorte de remunerações que têm provido aos detentores do munus público as condições necessárias para o adequado desempenho das suas funções. É nessa perspectiva que uma ciência política contemporânea haverá de tematizar a questão do acesso, da remuneração, dos padrões de desempenho, em cargos públicos, eletivos ou não, como um campo específico de investigação - onde se incluem, diga-se de passagem, uma parte substancial dos temas de política pública abrangidos pelo conceito corrente da "Reforma do Estado" [Nota 15].
A Tabela 1, a seguir, explicita uma primeira taxionomia dos estudos políticos, estabelecendo uma correlação sistemática, das categorias da epistemologia de síntese, com os conceitos que integram a Divisão Funcional do Saber em ciência política.
Tabela 1- Configuração temática da Ciência Política: na perspectiva do seu núcleo sígnico e dos enfoques propiciados pela tríade dos interesses epistemológicos.
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Empatia: ATOR SO- CIAL | ||
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CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA - Teorias das Formas de Governo; | |
ENGENHARIA DO CONSENSO - Teorias do Desenvolvimento Político; | |
PREVENÇÃO DA TIRANIA - Teorias das Instituições Políticas; | |
IMPLEMENTAÇÃO DA ESCOLHA PÚBLICA - Análises de Políticas Públicas. |
Tabela 2 - Divisão Estrutural do Saber na Epistemologia da Ciência Política.
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Inobstante, uma advertência se torna oportuna. Esta, como aliás toda a nossa construção conceitual, não é uma proposta fechada. Elaboramos um modelo paradigmático, que responde a grandes coordenadas teóricas e se formaliza em múltiplos espaços de propriedades. A concepção teórica e morfológica que, assim, submetemos à análise, como um recursos heurístico, nos orientou e conduziu ao preenchimento dos seus espaços conceituais.
Navegamos no modelo paradigmático, da mesma forma como no processo de um outro desenvolvimento paradigmático - cuja analogia nos socorre - cientistas se deixaram conduzir às experiências e investigações que acabaram resultando no preenchimento da Tabela Periódica sobre a composição da matéria. Efetivamente, ao formular a proposta paradigmática do modelo sintético, não descortinávamos todas as suas derivações. E, por duas razões, que se impõe ressaltar, pelo dever da humildade diante da tarefa, ainda não descortinamos com a precisão desejável e com a amplitude possível de ser explorada no estado atual da arte:
porque os domínios do saber contemporâneo - de forma geral - e a amplitude dos estudos políticos - de forma especial - já constituem um volume de conhecimentos, que ultrapassa os limites de uma cultura enciclopédica - que certamente não possuímos; e, | |
porque o modelo da epistemologia de síntese é um sistema aberto - suscetível de múltiplas e infinitas derivações triádicas. |
Na identificação dos conceitos básicos e na sua axiomatização, utilizamos os recursos teóricos - lógicos e infralógicos - que nos foram sistemática ou intuitivamente acessíveis. Certamente, o resultado final poderá ser especificado, completado ou questionado, desde pontos e contextos de observação e análise diferenciados. Viabilizar e estimular esse debate é a principal e, assim também modesta, pretensão da nossa "tese".
Para essa finalidade, e com o objetivo de completar a derivação sistemática de epistemologia da ciência política, desde os postulados do paradigma sintético, agregam-se mais dois quadros analíticos, ao conteúdo deste texto. O Quadro XIV compõe um diagrama sintético da pirâmide do saber em Ciência Política, guardando estrito paralelismo com a mesma figuração sintética, que nos viabilizou a compreensão do paradigma da Epistemologia de Síntese [conforme explicitado no Capítulo 5.2, Quadro 15].
Quadro XIV - Diagrama sintético da Epistemologia da Ciência Política, no espaço tridimensional da Epistemologia de Síntese.
E, seqüência, o Quadro XV articula um Diagrama Sintético do Modelo Paradigmático da Epistemologia da Ciência Política, em estrita correspondência com as categorias da Epistemologia de Síntese [conforme explicitado no Capítulo 5.2, Quadro 18].Quadro XV: Categorias de ALÉTHEIA (PALAVRA-DEMOCRÁTICA) e o paradigma emergente de uma CIÊNCIA POLÍTICA na epistemologia de síntese.
A ciência política emergente e o axioma da indescartabilidade da democracia liberal
Ao concluirmos essa visão de conjunto, sobre o modelo paradigmático da ciência política, aqui trabalhado, é necessário que se avancem algumas conclusões e reflexões que - embora paralelas ao nosso esforço de formalização teórica - são relevantes ao enquadramento contextual da questão democrática, que se pretendeu ressaltar neste texto.A questão que nos propomos enfrentar, ainda que especulativa e tangencialmente, resume-se no conteúdo da seguinte interrogação: na presente etapa do processo civilizatório, levando-se em conta o processo de globalização do capitalismo, qual o prognóstico para a consolidação e desenvolvimento de uma ciência política, cujo paradigma enraizou nos prospectos da democracia-liberal?
Essa questão, por outro lado, fere, pela sua concretude e pelo desvelamento necessário das implicações ideológicas do debate em torno da questão democrática. Exige um posicionamento sobre o sentido e o destino que se pretenda oferecer às instituições da democracia liberal; isso que não pode ser descartado, e muito menos pela mera justaposição de um receituário imaginativo, algumas vezes demagógico e noutras ingênuo, amplamente disseminado sob o rótulo da democracia participativa ou radical.
Nada contra a experimentação democrática que, postulada no ideário e adotada na prática de partidos e movimentos políticos, tem-nos obviado a necessidade de refletir sobre as dimensões da mobilização e da participação políticas, no contexto de uma sociedade democrática. Tudo em contrário, no entanto, à pretensão de que tais experimentos representem uma alternativa concreta aos axiomas fundamentais que sustentam a construção hegemônica da democracia liberal. Tanto mais quanto, em boa medida, tais experimentos combinam axiomas clássicos da cidadania - como o direito de voz e o direito do voto - com obstáculos tradicionais à efetiva consolidação da sua promessa libertária.
Não se pretende aprofundar esse tema, mas a questão democrática merece mais respeito em nosso meio, do que a sua redução à manipulação do consentimento; a qual, se não é infensa ao funcionamento das instituições tradicionais da democracia liberal - que no entanto lhe oferecem resistência - ganha exuberância, em claro desvio de uma efetiva institucionalização do princípio da responsabilidade política, na democracia tutelada dos plebiscitos conduzidos pelo Poder Executivo, em cuja categoria se incluem tanto a consulta popular direta, de caráter meramente legitimatório, quanto as práticas mais complexas que reproduzem, na esfera das relações político-administrativas, os procedimentos de uma "administração por objetivos" [Nota 17].
O que se pretende, simplesmente, postular, é que se torna cada vez mais necessário levar a sério o aprofundamento e a consolidação das conquistas da democracia liberal. E que a ciência política, ou assume paradigmáticamente esse compromisso, ou abdica contemporaneamente da sua vocação ética e crítica.
Numa tentativa de escamotear esse desafio, têm-se afirmado que os processos da hegemonia econômica em curso, nesta etapa de globalização do sistema capitalista, ao contrário de disseminar e consolidar mundialmente o modelo político da democracia-liberal, convivem com a sua crise e estariam promovendo a sua dissolução.
Nesse sentido, convergem interpretações lineares e grosseiras das teorias da "construção simbiótica" da democracia-liberal [concluindo pela insuscetibilidade de seu desenvolvimento fora do contexto de origem] com as conclusões categóricas que denunciam a irrealização da promessa democrática, como uma qualidade ínsita do aspecto formal e abstrato do seu construto paradigmático.
Para suportar a primeira dessas objeções, seria necessário demonstrar, não apenas a idiossincrasia do modelo democrático-liberal - que lhe permitiu extraordinária aderência ao processo do desenvolvimento capitalista na Revolução Industrial, mas também a sua inadaptabilidade no tempo e no espaço contemporâneos. Ora, a evidência empírica tem demonstrado, muito ao contrário, a enorme flexibilidade das instituições democrático-liberais, para se implantarem e sobreviverem no solo não trabalhado de culturas políticas totalmente adversas. Aquilo que, por um lado, poderia ser apontado como um "problema de legitimação" - a sobrevivência de atitudes e a eventual reicindiva de comportamentos autoritários, em países que se "democratizaram" tardiamente - no reverso da mesma moeda, revela traços de uma grande capacidade de implantação em solo agreste, por parte das instituições democráticas.
Para suportar a segunda dessas objeções, seria necessário, por sua vez, demonstrar, não apenas a inconcretude das conquistas libertárias do paradigma democrático hegemônico, como a sua insuficiência radical e insanável, para responder aos desafios propostos pela mundialização das relações de poder e pelo potencial democratizante da rede de comunicações que conforma a aldeia global. Ora, a evidência dos fatos tem demonstrado que, se por um lado, a democracia liberal tem se constituído, numa resposta ainda insuficiente aos prospectos do SABER POLÍTICO articulado, como CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA, ENGENHARIA DO CONSENSO, PREVENÇÃO DA TIRANIA e IMPLEMENTAÇÃO DA ESCOLHA PÚBLICA; onde ela falece, esse défice ainda é maior.
De fato, entre a emergência do conceito democrático, no processo de secularização da Grécia arcaica, e o limiar da consolidação do modelo democrático-liberal hegemônico, nesta transição que vivenciamos do projeto da modernidade, a base social da experiência democrática foi radicalmente alterada por três condições estruturais: a expansão demográfica determinando a massificação das relações políticas; a expansão territorial da constituição política além das fronteiras da cidade, que passa a distinguir-se do Estado; e a complexificação do espaço público, que se reflete na emergência de intermediações críticas (corporações, partidos, e meios de comunicação) entre os processos de articulação e agregação de interesses no âmbito da sociedade civil e a estrutura do governo.
Tensionada pelo desafio dessas constrições, a teoria política engendrou, na experiência histórica da democracia liberal, uma condição de resistência capaz de assegurar patamares mínimos de realização ao conteúdo emancipatório do projeto da modernidade.
Nesse campo, vale considerar que a democracia-liberal, permanentemente atacada pelos fundamentalismos sectários que medram nas épocas de crise, tem sido reconhecida como um indispensável e concreto instrumento de luta política, e como alicerce indescartável das conquistas sociais das classes trabalhadoras, pelo pensamento de esquerda mais conseqüente.
O próprio MARX visualizou, como um dos grandes erros da classe operária francesa, o combate indiscriminado ao Parlamento. Quando as baionetas são desembainhadas, a diferença entre a legitimação estratégica e a oposição demagógica às instituições democrático-liberais, pode representar a mesma distância que existe, entre a resistência civil numa trincheira bem guarnecida, em guerra de posições, e o enfrentamento desarmado de fogo de canhoneira, numa guerra de movimentos. Em França de Luís Napoleão Bonaparte, a classe operária, tendo queimado a bandeira da legalidade democrática, não apenas promoveu nisso o erro fatal do seu isolamento político, como resultou por isso mesmo desarmada de instrumentos concretos de luta, que lhe ocasionaram a derrota por absoluta falta de condições de enfrentamento político.
A história demonstra assim. como é tênue a linha divisória e reversível a direção dos impactos que diferenciam o formal e o material, o abstrato e o concreto - da mesma forma como, no modelo paradigmático que vimos desenvolvendo, estão imbricadas as dimensões do agir e do fazer comunicativos, do proferimento que resulta da ação e do interpretante que projeta a sua representação simbólica. A ausência desse referencial teórico, por outro lado, permite que se esvaneçam no ar, como pequenas bolhas de ilusão, as tentativas de se afirmar posições que atentem, apenas, a uma ou outra destas polaridades circunstanciais; essas mesmas que, no seu esforço para desintegrarem-se uma a outra, oferecem o enredo para a narrativa épica da modernidade e a representação trágica da sua transição.
No curso deste século que se encerra, a democracia liberal enraizou-se na capacidade de resistência civilizatória, para uma resposta, ainda que tênue e incompleta, às ameaças mais drásticas à liberdade, à igualdade e à fraternidade, representada pela mundialização da política, pela emergência da sociedade de massas e pelo crescimento das potências midiáticas. Se as soluções avançadas pela democracia liberal, sob certo aspecto, foram incapazes de contrapor-se eficazmente às tendências de oligarquização, manipulação e massificação, dos processos políticos; disso não decorre, necessariamente, a sua negação - muito ao contrário, abre-se aqui o espaço para o reconhecimento, também, que não havíamos amadurecido as condições materiais da sua superação.
Esse limiar, talvez, estejamos atingindo - exatamente hoje no fulcro do processo de globalização capitalista - quando se introduz a noção do espaço público como cyberespaço e começam a encarar-se os desafios de uma nova concepção de cidadania, a qual, por falta de uma denominação própria se tem chamado "científico-tecnológica"... ou "digitalizada".
No curso da modernidade, o monopólio da narrativa e a intermediação das informações têm canalizado a articulação e agregação dos interesses fragmentários dos milhões de seres humanos detentores originários da soberania. Em conseqüência, os detentores imediatos da soberania tornaram-se dependentes para o seu auto-esclarecimento e mobilização, dos processos centralizados e lineares de informação que, tendencialmente, substituem uma abordagem crítica dos fatos, pela sua versão afeita aos interesses que privilegiam. É quando tudo isso começa se desintegrar via internet, nos rizomas de uma rede de possibilidades infinitas de comunicação imediata e sinérgica, que talvez comecem a abrir-se as condições de completação da promessa democrática, que o projeto da modernidade gestou no curso do desenvolvimento capitalista.
Não se veja nessa constatação, a ingenuidade de propor-se uma solução "técnica" para um problema "político". Mas, tão simplesmente, o reconhecimento que: se, há pouco tempo, as alternativas técnicas disponíveis no campo da comunicação constituíam obstáculos concretos à radicalização da política democrática; hoje, essa condição começa a desfazer-se, pela acessibilidade das redes de informação e pelo seu potencial de interatividade.
Não se veja nisso, por outro lado, um paradoxal decreto de morte da democracia liberal, como se esta fora um construto plasmado para uma resposta precária da teoria política, restrita ao campo histórico da modernidade que se cumpre e destinada a ser substituída pela nova promessa de uma democracia virtual (direta). Desde o ponto de vista que temos firmado, que ressalta a imbricação necessária da teoria política na questão democrática, pode-se afirmar também, pela razão inversa, que as instituições da democracia liberal enraizaram no solo fértil de uma tradição teórica da ciência política, que não se circunscreve ao enquadramento histórico do projeto da modernidade. Por isso mesmo, sua adequação aos desafios da transição pós-moderna responderá às exigências de uma mudança paradigmática, capaz de abarcar todo o seu potencial emancipatório e potencializá-lo. Mesmo não tendo ainda sedimentado uma solução efetiva para o disciplinamento ético-político das potências midiáticas e da dominação que exerceram nas etapas que se cumprem do desenvolvimento capitalista, a democracia liberal representa uma condição necessária, como ponto de partida, para a formulação de um modelo capaz de erigir o seu afrontamento sobre as novas condições sociais e tecnológicas no limiar do Terceiro Milênio.
Avançamos, destarte, a clarificação do axioma que postula a indescartabilidade das instituições democrático-liberais, na presente etapa da transição civilizatória. O conteúdo emancipatório da democracia liberal foi gestado no projeto da modernidade; mas vem à luz no seu termo. Como um Pássaro de Minerva, esse conteúdo do Saber acumulado dos tempos, alça o seu vôo ao cair da noite - quando já estão maduras as condições para o seu entendimento e a sua reflexão sobre as próprias condições da sua emergência. Por isso que, a história democrática da transição pós-moderna, será a história da domesticação do capitalismo hegemônico pela radicalização do correspondente paradigma político.... ou, simplesmente, não será!
Não se pretende, com essa linha de raciocínio, desconhecer a extensão dos desafios que o modelo democrático-liberal enfrenta nesse momento de sua consolidação hegemônica. Não se pretende, também, descartar a importância da experimentação democrática, na composição de fórmulas, capazes de aprofundar a realização dos ideais da identidade, autonomia, solidariedade e subjetividade, no mundo global. O que no entanto ocorre, é que este enfrentamento e esse aprofundamento da experiência democrática implicam na hegemonia democrático-liberal e são inconcebíveis fora da sua esfera de oportunidades e de proteção.
O grande risco que se corre, ao desconhecer-se essa premissa, é o que, metaforicamente, pode ser figurado pela imagem de se "jogar a criança fora com a água suja do banho." Diante dos obstáculos à sua disseminação e do desafio representado pelas novas formas do poder social, corre-se o risco de se descartar o modelo político da democracia-liberal, sem que, no entanto se tenha em mãos um substituto a altura da tarefa a ser empreendida. Risco que se magnifica, diante do síndrome regressivo, que os défices de realização do projeto da modernidade projetam no campo político... isso que, na seqüência de nossa investigação, haveremos de detalhar.
A esse respeito: uma observação contundente e duas conclusões incômodas!
É que, no vazio dessa dupla negação - dos défices políticos da modernidade e do paradigma democrático-liberal - não medra atualmente nenhuma proposta alternativa, que não pague tributo ao síndrome dos autoritarismos, corporativismos e fundamentalismos, que se articulam de forma endêmica, no cinismo da política de ocasião. Circunstância, aliás, que tem plantado em alguns arraiais acadêmicos, com extensa repercussão na militância política, uma versão vulgar do irracionalismo hegeliano: a teoria do olho do furacão. Enquanto a crise varre o mundo à nossa volta, dizem esses novos eleatas, nada se move, nada se percebe, pelo que não resta senão afirmar a própria impossibilidade da mudança e do conhecimento - a negação sistemática de tudo que existe lá fora.
Numa versão ainda mais precária, dessa mesma linha de atitudes, adota-se a teoria do buraco do avestruz: diante do perigo à frente, enfia-se a cabeça numa toca, recusando-se ver e ouvir; deserta-se, dessarte, o compromisso do enfrentamento da tormenta, numa fixação imobilista, que acena para uma reiteração sistemática de tudo que já não subsistirá aqui dentro. Lastimavelmente, o discurso obituário de segmentos consideráveis da militância política, que pretendem resolver os impasses da hora presente pela mera agitação de uma consigna anti-neoliberal, incide nessa postura.
Uma primeira conclusão: a promessa do modelo político democrático-liberal - que aponta à necessária globalização das suas conquistas institucionais e sociais - integra o paradigma da ciência política emergente. Essa é uma proposição de forte impacto nos meios acadêmicos, eis que, implicitamente, afirma que o modelo político mais adequado à realização dos valores democráticos na pós-modernidade compreenderá mudanças e avanços necessariamente agregativos ao paradigma da democracia liberal [Nota 18] - aponta caminhos para o seu aprofundamento e consolidação.
Tomando por base, de outro lado, a teoria da "construção simbiótica" - que identifica a invenção do modelo democrático-liberal com o desenvolvimento originário do sistema capitalista - uma proposição derivada, embora, talvez menos rigorosa, mas não menos contundente, reconhece que o aprofundamento e consolidação do modelo político hegemônico da democracia liberal, nas condições da transição pós-moderna, haverá de ser também, necessariamente, compatível com os princípios do mercado, contrastando ao respectivo processo de acumulação, mecanismos gestionários de produção, controle e distribuição da riqueza, que a par de sua "domesticação", haverão de aprofundar e consolidar [e assim também modificar e regular] o capitalismo global.
Sob essa ótica, o quadro histórico contemporâneo, oferece bases para um prognóstico favorável à democracia liberal, como uma resposta conseqüente à questão civilizatória que se projeta nos desafios da globalização. Um prognóstico, diga-se de passagem, bem mais favorável, do que a condição precária e sobrevivente, que confortou aos precursores da teoria democrático-liberal diante dos obstáculos materiais que a modernidade lhe ofereceu, como foram sinalizados pelo repto marxista.
Se isso pode servir de algum estímulo, diante das dificuldades a serem ainda enfrentadas, na imbricação necessária da teoria política e da democracia, e da sua função crucial na conformação ciência política emergente, temos hoje mais razões para acreditar no sucesso desse empreendimento do que nossos antecessores. E, se a eles a história não recusou confirmar-lhes a intuição, é lícito esperar-se que nos conceda igual ou maior privilégio.
A dificuldade corrente, entretanto, de se aceitarem essas premissas no debate acadêmico, ideológico ou partidário, corre por conta dos obstáculos epistemológicos que dificultam a emergência de um paradigma, capaz de satisfazer as exigências da crise que atravessamos. É que, estabelecidas essas premissas, torna-se consequentemente impensável, no atual estágio do processo civilizatório, uma solução paradigmática para a formação de políticas públicas, que fuja aos parâmetros da teoria democrática e da imbricação proativa no processo de globalização do sistema capitalista mundial. E, para uma ciência social, secularmente construída sob a influência e sobre a tradição do marxismo e do socialismo, e que sistematicamente tem alimentado uma militância partidária anti-liberal e anti-capitalista, essa é uma queda de braço dura de suportar.
Nota 15 - Uma tentativa explícita de visualizar sob esse prisma - do manejo do sistema geral de incentivos - a temática da Reforma do Estado, pode ser encontrada na Parte 3, de "Democracia Plebiscitária" [AYDOS, 1995]. "Trata-se de reconhecer, no exercício pleno das prerrogativas da cidadania, o inoculante, capaz de assegurar a imunidade das instituições a padrões indesejáveis de conduta. Essa tarefa concerne ao campo da engenharia institucional, sinalizando a necessidade de um manejo adequado do sistema geral de incentivos à participação, no sentido de assegurar qualidade no recrutamento para o exercício da função governativa. (...) No seu enfrentamento, os sete pontos de intervenção trabalhados nesta Parte III, buscando explorar um campo de sustentação para a reforma política da consolidação democrática, revelam três objetivos táticos de uma ofensiva articulada contra as estruturas remanescentes do regime autoritário. a) Trata-se de atingir, prioritariamente, as vias do recrutamento político tradicional e propiciar a desobstrução de canais alternativos de acesso, para a renovação dos quadros da representação. A reforma eleitoral constitui-se no principal recurso dessa artilharia política (Pontos 1 e 2). b) Em paralelo, será necessário bloquear o fluxo de suprimentos que, a sua vez, corrompem os novos quadros da política e asseguram a lealdade dos contingentes mercenários da velha ordem (Ponto 3). Visualiza-se, neste sentido, a necessidade de avançar, com força de blindagem capaz de rechaçar o rebote corporativo, numa revisão drástica, com austeridade e isonomia, dos padrões atuais de remuneração e profissionalização da autodenominada classe política e, por extensão, do serviço público como um todo. c) Finalmente, a força de ocupação dos novos espaços políticos, deverá travar um plano de escaramuças institucionais que, embora localizadas nas estruturas periféricas do poder de Estado, objetivam a produção de resultados, capazes de sustentar a médio e longo prazo a ofensiva estratégica da reforma. Trata-se, aqui, de modificar práticas consolidadas, de forma a assegurar-se incrementos no grau de autonomia, competência e responsabilidade dos mandatários políticos (Pontos 4 a 7)." [AYDOS, 1995:105-108] Retorna ao texto Nota 16 - Uma fonte de inspiração e reflexão para a identificação das quatro "axiomáticas" na Divisão Estrutural do Saber em Ciência Política, é a que emerge na sistematização que foi elaborada por TAVARES em forma de um programa e bibliografia para a disciplina de Epistemologia e Método da Ciência Política, no Curso de Mestrado em Ciência Política da UFRGS: Para a definição de uma axiomática da teoria política (mimeo, UFRGS , 1992, I). Retorna ao texto Nota 17 - A referência é explícita ao "ovo de Colombo" político representado pelo chamado "orçamento participativo" em nosso meio. Trata-se de uma técnica de administração, largamente empregada no campo empresarial privado, que maximiza a eficácia administrativa pela elaboração burocrática de um "consenso" sobre políticas, no processo gestionário. A transposição dessa técnica para a administração pública, gera, obviamente, os mesmos dividendos de eficácia e legitimidade que determinaram a sua adoção no campo empresarial. Como técnica de relações humanas, a "administração por objetivos" - APO - viabiliza a socialização dos custos das decisões conflitivas na alocação de recursos, além de suas óbvias implicações no respaldo à liderança gerencial, que se tenha mostrado capaz de implementá-la. Daí à da sua emulação como símbolo de uma democracia alternativa e emergente vai uma grande distância. Caberia perguntar, se os mesmos entusiasmados propagandistas do "orçamento participativo" estariam, consistentemente, dispostos a admitir: primeiro, a origem "bastarda" desse instrumento gerencial; segundo, a idéia correspondente que a "administração por objetivos", representaria uma panacéia democrática ao controle dos detentores do poder na gestão empresarial? O exemplo e a provocação, servem para advertir e esclarecer o sentido da nossa postulação: que os experimentos de democracia direta e participativa em curso, não representam uma alternativa real aos axiomas da democracia liberal. Podem contribuir, sim, ao seu aperfeiçoamento, mas não prescindem dos critérios para a alocação efetiva do poder, que o paradigma democrático liberal consolida. Fora disso, a doença infantil do esquerdismo, que foi capaz de confundir "taylorismo" com igualitarismo, por que não confundirá contemporaneamente APO com democratismo? Retorna ao texto Nota 18 - "O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático."[SANTOS, 1996: 270] Retorna ao texto