Texto de Referência nº 1

Cidadania Digital: Hipermídia e Democracia na Sociedade da Informação

Paulo C. Cunha Filho & Rômulo César Pinto

"Se houvesse um povo de deuses, esse povo se governaria democraticamente"
Jean-Jacques Rousseau
"A popular government without popular information, or the means of acquiring it, is but a prologue to a farce or a tragedy, or perhaps both. Knowledge will forever govern ignorance, and a people who mean to be their own governors must arm themselves with the power which knowledge gives."
James Madison

Resumo

Este artigo propõe uma analise da superação da comunicação interativa restrita (ponto a ponto, oral, interpessoal) e da comunicação de massa (poucos pontos de difusão e múltiplos pontos de recepção, não interativa) e a transição para um novo ambiente comunicacional reunindo os avanços da telefonia e da informática – o ciberespaço. É observada, especificamente, a possibilidade de organização de comunidades virtuais e de novas oportunidades de modelagem das relações Estado-Sociedade e seus reflexos nas negociações entre governos e indivíduos. A hipótese central é que a mídia tradicional pratica um discurso unificado e não plural, enquanto a instalação do ciberespaço aponta novas oportunidades democráticas para os grupos conectados e para novas responsabilidades do Estado e da Sociedade Civil.


1 Introdução: o Estado e a instalação do ciberespaço


As profundas transformações que as novas tecnologias da informação vêm produzindo nas sociedades contemporâneas afetam também, e particularmente, o Estado e as suas relações efetivas com os cidadãos. A organização de comunidades virtuais, observadas a partir da instalação social do espaço cibernético das redes de computadores, oferece, no presente momento histórico, novas oportunidades na modelagem das relações Estado-Sociedade - privilegiando seus reflexos nas negociações entre governos e indivíduos. O que se pretende com esse artigo é fazer uma análise algumas dessas oportunidades a partir de alguns parâmetros da Ciência Política e da Comunicação Social.

A idéia de Democracia remete, obviamente, à participação dos indivíduos no processo político que determina a formação das estruturas de Estado. Nas democracias contemporâneas, os cidadãos se fazem representar por seus eleitos a quem delegam poderes de decisão sobre os rumos de uma nação. Apesar de sua concepção remontar à Grécia antiga, esse modelo de democracia sobreviveu na sociedade industrial graças ao suporte que lhe foi dado pelos instrumentos tecnológicos, alguns deles responsáveis pela circulação de informações, isto é, os media. Jornais, rádios e mais recentemente as TVs cansaram de "eleger" e "derrubar" governos ao redor do mundo no século XX.

Conhecidos como meios de comunicação de massa, esses media caracterizam-se por seu modo linear e vertical de fazer circular as informações, com pouquíssimas oportunidades de feed-back para a grande maioria dos indivíduos, aos quais foi retirado o poder de narrar, de emitir um juízo ou, sob um outro ponto de vista, de abordar um representante eleito ou o mandatário de um cargo público. Não se trata de negar aqui os benefícios que eventualmente os media ofereçam à sociedade, mas de ressaltar dois aspectos fundamentais:

o monopólio da narrativa
a intermediação das informações

Estes dois aspectos são exercidos pelos media a partir de sua complexidade estrutural, fato que adquire aspectos de "naturalidade" a partir de um processo de reificação. Em outras palavras: já estamos tão acostumados (alienados) com o papel de receptores que não conseguimos enxergar o quão artificial é essa forma de fazer circular informações.

Os homens públicos falam para a mídia que, por sua vez, filtra o discurso, elaborando uma versão do fato (que para muitos cidadãos nem existe), distribuindo-o através de seus canais. Isso é tão "natural" que não é questionado - pelo contrário: não são poucos os argumentos que pressupõem a liberdade de comunicação (na forma sob a qual a concebemos atualmente) como condição sine qua non da própria experiência democrática, num processo de idealização que fica bem explicitado nesta declaração do jornalista sul-africano Donald Woods:

"Não podemos ter um Jornalismo verdadeiro sem uma Democracia verdadeira e vice-versa. Os dois têm de ser desenvolvidos e conquistados juntos. Estou falando, é claro, de um Estado ideal, no qual existam a liberdade e a imprensa ideais. Até onde sei, não há tal Estado no mundo. Mas estamos chegando lá. Sem dúvida alguma, estamos progredindo na direção desse ideal."

O problema é que o discurso da mídia é unificado e, em geral, não é representativo da pluralidade social. Estamos aqui diante de um problema de racionalidade e de legitimação (na acepção de Habermas), posto que a mídia faz parte de um sistema de ajuste permanente do discurso do poder em função de valores nem sempre conciliáveis e de justificação de iniciativas contraditórias diante do eleitorado. Além disso, no processo de elaboração da mídia tradicional, a unificação e a ausência de representatividade ocorre basicamente por três razões:

uma de natureza econômica, isto é, o custo para produzir e veicular informações nesses media é extremamente alto;
outra de natureza ideológica, ou seja, as corporações de profissionais (sindicatos, academias, etc) que trabalham com a intermediação de informações (como por exemplo, jornalistas, bibliotecários ou advogados) exigem e obtém do Estado uma reserva de mercado para seus "iniciados";
por último, uma razão de natureza cultural, que inocula na maioria dos indivíduos a noção de incompetência, cobrando-lhes o domínio dos códigos formais (oral ou escrito) e técnicas narrativas específicas para que possa se manifestar nos veículos de comunicação de massa ou nos fóruns públicos de discussão.

Desse modo, a mídia exerce o papel de instituição-suporte do processo da democracia (aliás, da mediacracia) que configura-se em muitos aspectos como uma farsa, já que é baseada num modelo tecnológico de circulação de informações autoritário, restritivo e monopolista.

2 Sociedade da informação: a globalização e os media

Vivemos hoje um momento de transição. E a falta de perspectiva histórica pode acarretar em ilusões conceituais graves. Há exemplos significativos: "carruagens sem cavalo" - assim eram conhecidos os automóveis que começaram a circular no final do século XIX. Apesar de parecer estranho, hoje, que os primeiros automóveis tenham sido observados apenas como carruagens onde os cavalos haviam sido substituídos por peças mecânicas, adota-se o mesmo princípio ao se referir a novos objetos de mídia como "revista digital", "livro eletrônico" ou "jornal on-line". E não se tratam apenas de questões de nomenclatura.

Em primeiro lugar, o problema afeta diretamente o conjunto da Sociedade (isto é, a ampla base material onde os cidadãos atuam). Assim, o fenômeno econômico da globalização, interligando o planeta, produz nos países periféricos faixas de consumo com padrões equivalentes aos das nações industrializadas. Paradoxalmente, o fenômeno pode estar determinando a decadência da sociedade que o gerou, a dita civilização industrial. Não é o caso, entretanto, de decretar o fim das industrias, mas percebe-se claramente que produção industrial pode aumentar sem a outrora conseqüente geração de empregos. Criam-se novas oportunidades no setor de serviços para os indivíduos mais qualificados ao mesmo tempo em que grandes contigentes das populações são excluídos das benesses da nova sociedade. Profissões nascem e morrem em tempo real, enquanto outras agonizam sem querer se dar conta do que está por vir.

Algumas industrias, isoladamente, podem até estar prosperando, e assim vão poder continuar, mas o que está esgotado - por diversas razões, entre as quais a própria tecnologia gerada em seu processo - é o modelo conceitual gerador de poder e riqueza para uns e empregos para outros. A industria continuará produzindo, mas já é possível observar um deslocamento do centro do poder (até então localizado na esfera industrial). Tal como ocorreu com a Revolução Industrial, as transformações estão virando o mundo. A diferença está na velocidade com que as consequências das novas tecnologias se espalham pelo planeta.

O impacto desse processo nos media é enorme. No centro da articulação dessa nova sociedade está o transformação conceitual (e a distribuição) da informação. O paradigma de valor dos produtos e serviços da sociedade industrial, ou seja, a quantidade de trabalho investida nesses elementos, passa a ser, na sociedade pós-industrial, a quantidade de informação e conhecimento que esses produtos e serviços conseguem agregar. O topos dessa agregação é o ciberespaço, que definimos como sendo o ambiente acessado através de qualquer computador conectado a um sistema de rede (do tipo World Wide Web) e configura-se como um lugar sem limites físicos, uma geografia mental constituindo consensos e disensos simultâneos e superpostos - algo, portanto, em mutação permanente. E, como argumenta Lévy em artigo recente, o que vivemos não é apenas a globalização econômica mas a "globalização dos significados":

"O ciberespaço dissolve a pragmática da comunicação que, desde a invenção da escrita, havia conjugado o universal e a totalidade. Ele nos reconduz, de fato, à situação anterior à escrita - mas numa outra escala e numa outra órbita -, na medida em que a interconexão e o dinamismo em tempo real das memórias em rede faz com que o mesmo contexto, o imenso hipertexto vivo, seja compartilhado pelos integrantes da comunicação."


O Capital começa a "compartilhar" seu poder com o Conhecimento e mais uma vez o mundo se divide. Agora, os deserdados da tecnologia, os "sem-telas" ou excluídos, ocupantes do espaço público convencional (as ruas), contrapõem-se aos conectados, que são também aqueles que trabalham, vão ao médico, ao banco e compram pizza sem sair de casa; cidadãos urbanos que simulam convivências em suas máquinas e acessam a nova mola-mestra: a informação.

3 A superação dos media e a instalação do ambiente cibernético


O que uma perspectiva histórica mais longa permite entender é que, inicialmente, nos comunicávamos essencialmente através de estruturas dia-lógicas, baseadas em gestos e sons, formando um processo "vivo", interativo e dinâmico que evoluia por caminhos não lineares, nem pré-estabelecidos. Só alguns milhares de anos depois, adotamos objetos para registrar nossos "saberes", passando daqueles baseados em media isolados (pinturas, escritos, fotografias, etc.) e alcançando estruturas multimídicas (o teatro, o cinema, a televisão, etc). A materialização da informação tornou possível aos cidadãos a transmissão de suas experiências com acrescida liberdade temporal e espacial. No entanto, é preciso considerar o sacrifício que esta condição impôs à característica "viva", interativa e dinâmica da informação. Do ponto de vista ideológico, a materialização da informação levou, no período da comunicação de massa, ao que Rubim chama de cisão entre as logotécnicas de emissão e as massas receptoras:

"Os media surgem como aparatos sócio-tecnologicamente configurados na expropiaçao social dos ‘falantes’ e pela centralidade e concentração em um lugar social de emissão, agora super-potencializada. No pólo inverso, tornado oposto, condenado à mera repetição, produzem-se as massas, no específico viver histórico-social da comunicação."

Atualmente, quando se fala em hipermídia (uma mídia além dos media conhecidos), refere-se a um novo momento histórico do processo de comunicação entre cidadãos, onde o registro de experiências sociais em meios imateriais (o espaço cibernético) pode levar a uma situação em que finalmente agrega-se a liberdade cronocosmológica ao dinamismo dia-lógico. Não há previsão, mas constatação de que as alterações tecnológicas geradas pela pesquisa em informática já repercutem na produção de informações em todos os seus níveis (captação, tratamento, difusão, recepção) e que esta situação de mudança tende a se acelerar e se aprofundar.

No ciberespaço, a mídia não funciona, necessariamente, do mesmo modo que no espaço analógico. Na verdade, a internet tem muito mais características de um ambiente de comunicação do que propriamente um meio. As listas de discussão, os fóruns on-line, as "salas" de bate-papo e o correio eletrônico são ferramentas de comunicação de fato interativas, baseadas em estruturas não verticais onde os pólos de emissão e recepção tem flexibilidade suficiente para se alternarem de modo semelhante à conversação oral. Como explica André Lemos,

"os novos media, como Internet por exemplo, permitem a comunicação individualizada, personalizada e, além do mais, bidirecional e em tempo real. Com os novos media a ‘edição’ não é mais uma norma, e todos podem participar na produção e circulação da informação. O argumento, ou o discurso, da ‘comunicação interativa’ pode ser dificilmente contornado com um discurso da ‘informação centralizada distribuída’, que caracterizou a cultura de massa e do espetáculo do século XX. Isso sem falar nas mudanças estruturais de produção e distribuição da informação causadas pela tecnologia digital nos jornais, nas emissoras de televisão, no radio, nas revistas, etc. A tecnologia digital proporciona assim uma dupla ruptura: no modo de conceber a informação (produção por processos micro-eletrônicos) e no modo de difundir as informações (modelo ‘Todos-Todos’)."


Cada computador conectado torna-se um emissor em potencial de informação, de versões e pontos de vista. E é justamente na manifestação do ser que o indivíduo torna-se sujeito na sociedade: um cidadão. Aparentemente, o ciberespaço torna-se dessa forma um lugar onde projetamos um pedaço de nós mesmos, e onde podemos simular uma convivência produtiva, participativa e democrática. Nele, nossa presença ativa pode ser obtida a um custo bem inferior em relação aos media convencionais. Mesmo sem levar em consideração os possíveis investimentos dos governos na facilitação do acesso público, é muito mais viável o indivíduo obter, por seus próprios meios, um computador e uma linha telefônica, do que comprar ou ter acesso a uma emissora de TV, uma editora ou mesmo uma rádio para potencializar a sua comunicação ou exercer sua cidadania, a despeito de necessários ajustes sobre questões fundamentais, como a percepção da nacionalidade, que é ameaçada por novas definições distanciadas da noção de Estado soberano, como explica Karine Douplitzky:

"A ciberpolítica é muito diferente de uma grande missa midiática, de uma proposta politizada. O mecanismo de representação política, sistema hierárquico que justifica a existência de nossas instituições estatais, está ausente da rede que elimina os intermediários (representantes), em proveito de ligações diretas, de cibercidadãos aos ciberorganismos, do local ao global."


Mas é justamente aqui que surge a primeira oportunidade do Estado (evidentemente forçado pela dinâmica social) para gerar um modelo diferenciado de convivência com o cidadão. A situação tecnológica que se apresenta permite que as ferramentas de interatividade sejam usadas para garantir o acesso dos indivíduos aos homens públicos, apesar da advertência de Douplitzky, já que sobram razões para justificar os papéis de intermediação entre cidadãos (e mesmo cibercidadãos) e as estruturas do Estado. Um exemplo concreto: temas importantes para a nação já podem ser discutidos on-line, através de fóruns e listas, antes de serem tomadas as decisões que afetarão o conjunto social. A idéia antes irrealista de "parlamento virtual" (e de fato interativo, acessível de qualquer terminal conectado) já tem condições tecnológicas (embora talvez ainda não sociológicas) de ser uma ferramenta da construção da cidadania na era digital.

Por outro lado, entendendo a WEB como um depósito universal de informações, só a garantia do acesso público à rede pode possibilitar mais dinâmica no processo social, assim como vantagens competitivas para os indivíduos desenvolverem atividades no mercado de trabalho que ora se delineia. Obviamente, não basta ter o acesso para garantir as oportunidades, mas existe a possibilidade de que em poucos anos o acesso seja uma condição sine qua non trabalho. Daí a urgência da intervenção estatal na distribuição estratégica de máquinas conectadas em comunidades mais ou menos carentes do país.

4 As novas responsabilidades do Estado


No que diz respeito à administração dos serviços que o Estado presta à Sociedade, existe uma gama de aplicações dessas novas tecnologias no sentido de reduzir custos e satisfazer o cliente-cidadão através de um atendimento mais rápido e eficaz. Sabe-se, por exemplo, que o simples armazenamento de dados em suportes digitais evita o preenchimento, a manipulação e a estocagem desnecessária de formulários impressos e repetitivos. Já encontram-se na rede diversos estudos visando aperfeiçoar a idéia de centrais únicas de atendimento público, nas quais, numa única repartição virtual, o indivíduo poderá solicitar os mais diversos serviços.

Para que isso aconteça, será preciso antes que os órgãos do Estado deixem muito claro, em páginas inteiramente acessíveis na Internet, as suas competências; depois, e a partir dessas tecnologias, pode se estreitar a comunicação entre instituições do Estado, facilitando a troca de informações sobre serviços e usuários, dinamizando o atendimento que passaria a ser feito ainda de forma mais transparente.

Mas sabe-se que, para viabilizar essas oportunidades, será preciso percorrer um longo caminho. Primeiro, será preciso vencer dificuldades econômicas, tecnológicas e psicológicas. Mais uma vez fica claro a necessidade de uma intervenção direta do Estado na estratégia de distribuição de pontos de acesso. É também de fundamental importância o engajamento das entidades culturais nesse processo com o objetivo de decidir pela preservação (ou não) das características das micro-culturas comunitárias que certamente vão poder emergir, fazendo-se representar no ambiente ciberespacial. Sem a intervenção estatal para regular o acesso, a sociedade da informação corre o sério risco de tornar-se um regime altamente excludente, um tecno-apartheid capaz de gerar as situações sociológicas imaginadas por George Orwel ou Aldous Huxley.

Mais uma vez, neste caso, a situação pós-industrial afasta o problema das soluções da comunicação de massa, que desqualificam a representação democrática formal. O caso da interferência da televisão nas democracias ocidentais já foi bem estudado e aponta para um novo "exibicionismo" do poder e para a "espetacularização" da coisa pública. Como analisa Debray:

"A onipresença da imagem aparece como um fator de desregulação dos mecanismos de delegação democrática. Não somente porque valoriza o contato mais do que o conteúdo, mas também sacrifica a argumentação articulada à frase de efeito (garantia de reprise na imprensa no dia seguinte). Curto-circuitando as mediações do espaço jurídico-institucional, ela desvitaliza os corpos reguladores da República - Parlamento, Justiça, Escola, Imprensa escrita. Em vez de prolongar o Parlamento, o estúdio de televisão acaba por ocupar o seu lugar."

De certa forma, essa avaliação dos media tradicionais baseia a maioria dos recentes diagnósticos sobre o papel da comunicação na democracia assim como as sugestões que começam a surgir com a hipermídia. O Livro Verde Para a Sociedade da Informação, documento do Ministério da Ciência e Tecnologia de Portugal, defende, entre outras propostas, a criação de um estatuto da informação, distinguindo-as entre:

informação de cidadania, de acesso universal e gratuito;
informação para o desenvolvimento, destinada aos agentes econômicos e sociais e distribuída a custo de suporte ou a preços simbólicos;
e as informações de valor acrescentado, cedidas mediante preços de mercado.

A idéia de um estatuto tem como objetivo atender a preceitos constitucionais que visam o resguardo de instituições como "direitos autorais" e "propriedade intelectual". Tais conceitos, comuns e éticos a qualquer sociedade industrial, existem porque o processo de criação intelectual tem sua natureza coletiva escamoteada a partir da apropriação de um patrimônio cultural que deveria, pela sua natureza, pertencer a coletividade. O que os ajuda a tornarem-se "lógicos" é a complexidade na ação de formatar e distribuir os conteúdos informacionais. O autor é assim reconhecido como tal muito mais pelo esforço da publicação do que, necessariamente, pela autoria da informação; esta, na verdade, é fruto de um empenho coletivo cuja origem tende a desaparecer sob a nossa perspectiva linear da História.

Com efeito, quando a nova sociedade estiver mais consolidada poderemos esperar a aplicação de algo semelhante ao estatuto português aqui no Brasil. A questão que se coloca é quanto aos critérios de classificação das informações. Quem decidirá que tipo de informação será paga? De que modo se dará a escolha? Os critérios adotados pelos países industrializados deverão ser os mesmos aplicados a em nações como o Brasil? Até onde vai a informação pública? São perguntas que devem ser respondidas por um Estado pressionado pela sociedade civil organizada e bem informada sobre os diversos aspectos e potenciais de um Estado aberto e transparente, na forma de uma cidade telemática imaginada por Fred Forest:

"Permitindo o acesso às informações públicas e administrativas procedentes do governo e das organizações comunitárias, a cidade telemática participa no desenvolvimento de novas redes de comunicação. Seu dispositivo tem por missão coletar e difundir informações, mas também de tornar-se o lugar de troca privilegiada entre sugestões e críticas. Lugar de debates públicos, onde cada cidadão membro desta ‘comunidade virtual’ participa na ‘ágora’ telemática e na vida da cidade."

Trata-se, portanto do processo de construção de um novo tipo de cidadania. Um novo modelo de relações mediado (e não determinado) pelas características das novas tecnologias. Como toda construção, exige esforço, idas e vindas, até que se alcance um determinado status que começará a ser superado por uma nova ordem. Nada está definido. O que existe são tendências e oportunidades que devem ser aproveitadas no sentido de otimizar as relações do Estado com o Cidadão garantindo uma melhor qualidade de vida não apenas para esta, mas também para as próximas gerações. O processo tecnológico é irreversível e não deve ser visto como algo que veio, necessariamente, para resolver nossos graves problemas sociais. Mas ignorar o imenso potencial que as redes de computadores oferecem em termos de aplicação para os mais diversos setores da sociedade é uma atitude, no mínimo, irresponsável. Além de ser o caminho mais rápido para a exclusão.

Vale lembrar que o conceito de "computadores pessoais" interligados não surgiu nas grandes corporações high-tech. Ele é fruto de um movimento popular conhecido como "contra-cultura", cujas expressões mais célebres foram os hippies californianos dos anos 60 e 70. E foi justamente na Califórnia e nessa época que surgiu o primeiro computador pessoal, o Apple 1, criado por um grupo de jovens universitários que catavam peças no lixo de industrias como a IBM para montar uma máquina que não servia para absolutamente nada, a não ser se retro-alimentar, mas que tinha, na visão daqueles garotos, um imenso potencial.

5 Três modelos em implantação


São freqüentes as análises pós ou neo-frankfurtianas que tendem a demonstrar o impasse do Estado contemporâneo. Em geral, este impasse tem sido vinculado à expansão da mídia e sua instrumentalização pelo poder político. As pesquisas de opinião se transformaram na principal ferramenta da racionalização; os meios de comunicação de massa se constituem, neste quadro, no teatro da legitimação. No seu ataque contra as "mito-ironias da era do virtual e da imagem", Baudrillard (que, aliás, não aceita nenhuma distinção entre media tradicionais e digitais) destaca:

"Vivemos numa realidade política perfeitamente dissociada. De um lado, a classe política, microssociedade paralela, secretamente em desemprego técnico, evoluindo impunemente e fadada ao que parece à tarefa exclusiva de reproduzir-se, numa confusão endógama de todas as tendências – essa aliança incestuosa da direita e da esquerda não deixando de provocar patologia e degenerescência características da consagüinidade. Do outro lado, a sociedade ‘real’ cada vez mais desconectada da esfera política. Ambas, afastando-se uma da outra à velocidade V maiúsculo, parecem mais ou menos destinadas a desagregar-se cada uma em seu canto – sob perfusão graças ao cordão umbilical da mídia e das sondagens. A virtualidade, no sentido pelo qual a vontade política só opera através das telas mentais da televisão e da intermediação das sondagens, transformou a função e a representação políticas em vestígios quase inúteis. Nenhuma dialética, mesmo conflitual, mantém os dois pólos em interação."

O ciberespaço desmente Baudrillard. Uma busca na WEB, a partir da equação booleana ("democracy" and "information") and ("internet" and "politics") resultava, em dezembro de 1997, em cerca de 19.968 documentos. A maioria deles pode ser classificada em três modelos de interação entre o Estado, o poder político e a sociedade civil – um dirigido do Estado em direção à sociedade civil, o segundo buscando o caminho inverso e o terceiro voltado para a disseminação, na rede, de estruturas de pressão comunitária:

Um exemplo do primeiro modelo seria o UK Citizens On-line Democracy visa transformar-se a curto prazo numa grande iniciativa governamental do Reino Unido. O seu site na Internet já está operando e desenvolve, por exemplo, experimentos de democracia eletrônica do Brents Council. O projeto tem discutido temas com a sociedade civil, como o orçamento e o planejamento do Estado.
No segundo modelo há casos com o Democracy Network que objetiva promover debates de temas locais, estaduais e nacionais entre cidadãos, servidores públicos e candidatos políticos norte-americanos. Candidatos e representantes eleitos podem disponibilizar e atualizar permanentemente suas posições e os cidadãos podem acessar, questionar e propor alternativas. A base local é Santa Monica, na California, e tornou-se possível através da doação dos usuários.
Finalmente, como exemplo do terceiro modelo, encontramos sites como o Workshop Outline, conduzido pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano do governo americano, desenvolve e mantém redes cibernéticas comunitárias. Funciona sobretudo com base num seminário permanente onde são discutidos pontos como: o que são redes comunitárias e por que a sociedade necessita delas? Por que os cidadãos desejariam usar uma rede comunitária? Como civilizar o ciberespaço? Como as comunidades efetivamente se comunicam? Qual a infraestrutura tecnológica para o estabelecimento e manutenção de uma rede comunitária?

Estes três exemplos são provas contudentes de que, enquanto o poder de transmitir informações, nos media tradicionais, é concentrado social e geograficamente, as redes cibernéticas são radicalmente diferentes do ponto de vista tecnológico: qualquer nó no rizoma pode enviar e receber textos, sons, imagens, programas. Plugado na rede telefônica o computador torna-se editora, estação de TV ou rádio, correio. Obviamente, nenhum objeto técnico tem, em si, a capacidade de resolver as crises do Estado. No entanto, há evidentemente novas aberturas para a pesquisa de informações em rede (altíssima capacidade de coletar e confrontar informações), de elaboração visual (recursos de computação gráfica), de digitalização de textos e imagens (editores de texto, tradutores automáticos, programas de fotografia digital, edição não linear), de recuperação de informações passadas (arquivos dinâmicos), de interligação entre várias fontes informativas (links). Muitas destas aberturas já são automáticas, produzidas por máquinas.

6 Conclusão: ambiente estruturador da nova sociabilidade


As questões da mídia sempre foram: O que informar? De que forma comunicar a informação? Como facilitar a transformação das informações comunicadas em conhecimento? Qual o objetivo da comunicação da informação? Talvez possam ser, agora: Como permitir o contato direto entre a sociedade civil e a representação política? Como promover discussões abertas sobre as questões e razões do Estado? Como interferir nas transições legais (legislação, regulamentos e informações governamentais)? Como estabelecer de forma aberta as prioridades econômicas (emprego, regras trabalhistas, investimentos éticos, desenvolvimento comunitário, fóruns de trabalhadores)? Como acelerar o acesso à informações alternativas? Como criar programas de comunicação para populações marginalizadas (grupos étnicos, analfabetos, excluídos)?

Estas são as questões da hipermídia, acrescidas sobretudo dos seguintes fatos tecno-lógicos:

a digitalização (alta capacidade de transmissão e de armazenagem)
a interação (em tempo real, em condições de equilíbrio entre os pólos)

Os suportes físicos, como o papel impresso, apesar de um apelo cultural estabelecido há séculos, tendem a ser cada vez menos utilizados. A quantidade de informação digital acessível em qualquer parte do planeta já é, hoje, muitas vezes superior à informação disponibilizada na forma de átomos - e esta diferença só tende a crescer, até por razões ecológicas.

Do ponto de vista tecnológico, os mais recentes desenvolvimentos nos levam a aplicações de busca e consulta off-line e on-line personalizada, de trabalho remoto e/ou monitorado, aos hardwares de agregação de media (união de TV, fax, telefone, computador), aos sistemas classificatórios ontológicos e de filtragem de informação e de contra-informação, aos programas de mídia informal e/ou comunitária (fim da separação emissor/receptor). Na base dessas aplicações técnicas, aparecem novos problemas teóricos: o isolamento cognitivo (nichos de tendências pessoais), a sobrecarga cognitiva (cacofonia, excesso de informações), a dependência de informações (vício), a luta entre novos monopólios e as redes alternativas. Por outro lado, alteram-se as questões de ordem ética, advindas da alta possibilidade de manipulação da informação (sobretudo das imagens) e a conseqüente perda de capacidade de verificação (por conta da inflação e velocidade informacional). Também reduzem-se as fronteiras entre informação e entretenimento (ou melhor, entre a encenação da ficção como realidade e a encenação da realidade como ficção).

Sabemos que a tecnologia não é neutra. Pode ser empregada como ferramenta (para a construção do mundo), como arma (para a destruição do mundo) ou como instrumento (para a percepção do mundo), como afirma Laymert Garcia dos Santos. Além disso, ao desabarem as fronteiras tradicionais da circulação da informação (distribuição de jornais impressos, ondas de rádio e de televisão, áreas de cobertura de satélites), alteram-se as relações entre o global e o local. Observa-se um movimento de internacionalização da informação e, paradoxalmente, de possibilidade de acesso global de tendências locais. As novas estruturas da hipermídia são, ao mesmo tempo, aglutinadoras e desterritorializantes.

Uma das conseqüências mais dramáticas da implantação da hipermídia atinge a própria formação de profissionais de informação e de comunicação. Jornalistas, radialistas, publicitários, designers, bibliotecários deverão dar lugar a um novo artesão: o infodesigner, capaz a um só tempo de operar matérias como o texto, a imagem (estáticas e em movimento), o som. Além disso deverão ser capazes de conceber e aplicar interfaces lógicas e gráficas, imaginar novas classificações e modelos de arquivo e produzir conexões dinâmicas entre fontes diversas de informação.

O ciberespaço é um dispositivo de comunicação e informação interativo e estruturador de uma nova sociabilidade, assim como se constitui um dos mais importantes instrumentos da inteligência coletiva. Do ponto de vista tecnológico, a hipermídia implica na transnacionalidade, na multipolaridade dos serviços. Fica claro que passamos da fase da comunicação interativa restrita (ponto a ponto, oral, interpessoal) e da fase da comunicação de massa (poucos pontos de difusão e múltiplos pontos de recepção, não interativa) e chegamos a uma nova etapa, reunindo os avanços da telefonia (interativa) e da informática (Internet). Temos agora uma informação ponto a ponto, interativa, mas também em rede. Quem detém a tecnologia tem o poder de prospectar e controlar o ciberespaço, criar a extinguir mercados, atuar sobre as populações. Este é o desafio da hipermídia.

Referências bibliográficas

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Originalmente publicado em www.cac.ufpe.br

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