Texto de Referência nº 2
"Universidade e Totalitarismo"
LEONIDAS RANGEL XAUSA
Docente de Ciência Política da UFRGS cassado pelo
A-I 5
(Oração do paraninfo da turma de 1966 da
Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do R. G. S.)
Meus caros afilhados.
Na cerimônia de Colação de Grau, que é uma
Sessão Solene de
Congregação, se espera, do discurso do Paraninfo, seja êste, de
certa
forma, uma espécie de última aula. Ela é, todavia, uma aula
peculiar;
peduliar, pelas circunstâncias da cerimônia, pela natureza do
auditório,
pelo tempo que lhe é assinado, pelo estilo que lhe é
característico, e
peculiar, principalmente, naquilo que exige do Paraninfo em
têrmos
de uma definição, envolvendo interpretações, juízos de valor,
postu-
ras, de que muitas vêzes tem o dever de se abster quando na sala
de aula. Tal pronunciamento, freqüentemente, guarda estreita
rela-
ção com o objeto e o conteúdo da cadeira por êle regida.
Ora, quando a cadeira que êste Paraninfo
leciona tem o nome
de Política, vem-lhe à mente o que dizia Sir Ernest Barker,
quando,
no prefácio de seu último livro, após quarenta e um anos de
magistério
nas Universidades de Oxford e Cambridge, lembrava como ad-
vertência o aforismo de que "qualquer livro sôbre Política
necessita
cabelos brancos". E tal qualificação era a única que ele
modesta-
mente reclamava possuir em abundância. Ora, não possuindo eu se-
quer esta qualificação, sirva-me apenas de excusa o estar
cumprindo
um dever imposto pela benevolência da vossa escolha que, ao repe-
tir o gesto de vossos colegas, bacharéis em jornalismo de 1963,
faz
com que êste jovem professor, nos seus cinco anos de magistério
nesta
Casa, tenha, pela segunda vez, o privilégio de receber tal
dignidade.
Tenho muitos motivos para receber com emoção vosso gesto, que
recolho como generosa expressão de estímulo, distinguindo-me
dentre
tantos Mestres desta Faculdade, mais antigos, mais competentes, e
se-
guramente, mais merecedores.
E peço-vos vênia para, neste momento, fazer
partilhar desta
honra, ainda que simbôlicamente, aquêle por cujas mãos
ingressei
nesta Escola e que nela se jubilou êste ano, após trinta e cinco
anos
fecundamente dedicados à vida do magistério e da pesquisa - o
eminente professor Darcy Azambuja. Ficai certos de que muito mais
do que pudestes ter recebido dos rudimentos imperfeitos da
Ciência
Política ministrados por seu substituto, vos aproveitará a
considera-
çao do exemplo de sabedoria serena e bondade impertubável do
pro-
fessor Darcy Azambuja, a quem, neste momento, rendo públicameu-
te minha homenagem de gratidão, de afeto e de respeito.
Mais do que em qualquer outro Instituto da
Universidade, é na
Faculdade de Filosofia, a qual tem como uma das missões primei-
ras a formação de professôres, que se põe como crucial a
problemá-
tica da Educação, seus objetivos, encargos e condicionamentos.
A quase totalidade dos graduados desta noite
recebe o diploma
de Licenciado e; ao optar pela carreira do Magistério, que a
maioria
já exerce, o fêz consciente da paradoxal pobreza do seu
reconheci-
mento social. O professor cujo clima normal é o do convívio com
os
educandos é, irônicamente, um homem só. Só, em sua busca
interior
da certeza; só, no momento em que comunica aos alunos o produto
de seu estudo e reflexão; só, na responsabilidade individual
pelo que
diz e ensina. As incompreensões e frustrações não são o
acidente em
sua vida; muito ao contrário. Êle é, sem dúvida,
orgulhosamente
consciente da nobreza da sua missão, e tem como grande recompensa
moral o fato de saber-se agente importante no processo de cresci-
mento moral e intelectual da juventude. Fora daí sua
retribuição única,
é a da gratidão ou do estímulo de seus alunos; de regra,
expressos
em gestos discretos, despercebidos e fugazes, e apenas
ocasionalmen-
te, em gestos públicos de generosidade, como o que tivestes
comigo
- e que servem para amenizar a solidão da sua independência.
No entanto, terríveis são os podêres que
lhes estão nas mãos a
que a sociedade e a família entregam, confiadamente, crianças,
ado-
lescentes, e universitários, todos na fase decisiva de suas
vidas, no
período de formação em que se vai fixar o perfil básico dos
valôres
que os acompanharão pelo resto da existência. Se vos dissesse
apenas
isto, não ultrapassaria o que constitui o conhecimento trivial e
vul-
garizado sóbre a responsabilidade do Professor. Não tão
evidente,
porém, é a existência de uma dimensão especial no compromisso
de
sua vocação, e mais ainda, da especial forma de corrupção
associada
a êste compromisso.
Caberia indagar, pois, qual a traição
particular de que pode ser
réu o professor? Qual a especificidade da corrupção da sua
atividade,
em contraste, por exemplo, com a corrupção no mundo da política
ou no mundo dos negócios? E por que é, esta particular forma de
cor-
rupção, infinitamente mais trágica nas suas conseqüências?
- Aqui eu me pcrmito transcrever magistral
página do Profes-
sor Hans Morgenthau, laureado mestre de Ciência Política da Uni-
versidade de Chicago, quando diz que há uma enorme diferença
não
só de grau, mas de natureza, a distinguir as tentações do
Professor,
das tentações, por exemplo, do político e do homem de
negócios. "A
corrupção própria do Professor - diz êle - surge numa esfera
cujo
valor não é, nem o Poder, nem a Riqueza, mas a Verdade. O
Profes-
sor é um homem que devotou sua vida a "professar", e o
que êle
jurou professar é a Verdade, como êle a vê. A mentira num
Professor
é uma falta moral que nega a própria essência de seu
chamamento.
O Poder e a corrupção andam junlos, como também a Riqueza e a
corrupção; a corrupção pecuniária é, dêles, uma espécie de
filha
ilegítima, preformada já em sua natureza. Todavia, a mentira é
a
própria negação da verdade, o inimigo que busca sua morte. Um
professor que mente, não é como o político que subordinou o bem
público ao interêsse particular, nem como o homem de negócios
que
trapaceia. Ele é, antes, como o médico que tendo jurado curar,
mu-
tila e mata; ou como o policial, que tendo jurado manter a lei,
ajuda
o criminoso a violá-la. Ele não é, apenas, o corruptor do
código pelo
qual deve viver, mas o seu destruidor. Esta a peculiar enormidade
de
seu crime que distingue seus atos da corrupção comum do Poder e
da Riqueza".
Bela lição, de fácil aplauso, mas de penosa
vivência. Isto por 1-
que, como acrescenta adiante, "um sistema de Educação
Superior de
dicado à descoberta e à transmissão da Verdade, não é uma
coisa à
parte da sociedade que o criou, mantém e utiliza. O mundo
acadêmi-
co participa dos valôres prevalentes em uma sociedade e está
exposto
às pressões sociais para conformar-se a êles". Daí
quando, surgido o
conflito entre êste compromisso de busca da Verdade e as
pressões
sociais, "maior seja a tendência a sacrificar o Compromisso
moral
gerando uma tensão, a qual termina, freqüentemente, por um
acôrdo
e uma concessão - que mantêm o compromisso moral dentro de li
mites socialinente aceitáveis - isentando, por exemplo, de
investiga
ção, certos tabus da sociedade". E conclui êle: "Na
medida em que
a Verdade é assim limitada e definida, sua busca se reflete de
seu
próprio fim e é por isto corrompida. Em ambos os pólos do
spec-
trum vamos encontrar um pequeno grupo que ou é subversivo
da
sociedade por dizcr à sociedade o que ela não deseja ouvir, ou
então
é subversivo da Verdade, por dizer à sociedade o que ela deseja
ouvir".
E qual a natureza da Verdade de que cuidamos?
Qual seu modo
próprio de tratamento dentro da comunidade acadêmica? Em que
consiste dentro da Universidad& a liberdade de sua expressão?
Final-
mente, o que é mais importante, quais seus piores inimigos?
Certamente não temos cm vista aquela esfera
misteriosa que é a
das relações do homem com seu Criador, onde a procura da Verdade
às vêzes "agonizante" - na expressão de Pascal - se
põe no domí-
nio da fé religiosa. A verdade de que falamos é a verdade
científica
e filosófica, que não admite o argumento da autoridade, nem é
algo
que se recebe pronto; mas deve constituir uma conquista do
espírito
humano jamais completada através do tempo, numa sucessão de vi-
tórias da razão sôbre as fôrças cegas - na natureza, na
sociedade, no
próprio homem.
Quanto ao seu modo de tratamento na
Universidade, há algo
que considero importante dizer porque é freqüentemente objeto de
mal-entendidos danosos.
Há um dever capital do professor, que é a
contrapartida da sua
liberdade - o de não permitir que as opções políticas que como
ci-
dadão está obrigado a assumir fora da sala de aula, nela
ingressem
como veículo de indoutrinação ou de pregação ideológica,
quer ou
não a serviço da ideologia oficial do Estado. E isto por quê? A
resposta
foi dada lúcidamente por Marx Weber - homem profundamente
envolvido na vida política de seu país e sôbre ela tendo
idéias
firmes e apaixonadas - nas duas famosas conferências proferidas
em
1918 na Universidade de Munique intituladas "A Política como
Vo
cação" e "A Ciência como Vocação". E que - diz
êle - "o ethos
da ação política é a luta por uma causa", matéria de
opinião, às
vêzes de fé, frequentemente mesclada de paixão. Ao contrário,
o
ethos da atividade do professor é a conquista da
objetividade ra-
cional; seu dever é o de proporcionar ao estudante as
informações
corretas, de fornecer-lhe os instrumentos da análise, de
ajudá-lo a
localizar-se em métodos de pensamento, de clarificar-lhe a reta
colo-
cação dos problemas, desenvolvendo-lhe o senso crítico e a
indepen-
dência intelectual para que êle, por si próprio, possa
livremente al-
cançar ou realizar suas opções pessoais.
Por isto, o professor que transforma a cátedra
em instrumento
de indoutrinação ou de pregação ideológica ou partidária
comete
uma dupla falta: primeiro, porque pratica uma violência contra a
consciência individual dos alunos, que não têm a obrigação de
com
partilhar-lhe as opiniões ou crenças políticas; segundo, porque
abusa
de sua posição vantajosa enfrentando um auditório com as
possíveis
vozes discordantes "condenadas a permanecer em
silêncio". O pro-
fessor que assim se comporta agirá como profeta ou demagogo,
nunca
como professor; e "o lugar do profeta ou do demagogo não é
a pIa-
taforma acadêmica
Por fim, se põe a pergunta: em que consiste
efetivamente, de
parte do professor, a liberdade acadêmica, a liberdade de
cátedra,
esta preciosa liberdade de cátedra, sem a qual não há
Universidade
digna déste nome? Minha posição pessoal coincide com a de
Sidney
Hook, Mestre de Filosofia da Universidade de Nova lorque, cuja
opinião reproduzo textualmente: "Por liberdade acadêmica,
entendo
liberdade de pessoas profissionalmente qualificadas inquirir,
desco-
brir, publicar e ensinar a verdade como elas a vêem, no campo de
sua competência, sem qualquer contrôle ou autoridade exceto o
con-
trôle ou autoridade dos métodos racionais pelos quais a verdade
é
estabelecida."
Ingrata tarefa esta de buscar a verdade e
sustentá-la com inte-
gridade, não raro, em certas épocas e lugares, sob o risco da
impo-
pularidade, da difamação e mesmo da segurança e sobrevivência
pes-
soal e familiar.
Esta última condição se dá, quando, além
das pressões sodiais a
que se fêz referência, são acrescidas as pressões políticas e
ideológicas
presentes nos regimes totalitários ou meramente autoritários.
Sôbre
êste segundo tipo de conflito; muito mais grave, é que desejo
deter
vossa atenção. Pois sabemos todos que a Educação em geral, e a
Universidade em particular, são sempre as vítimas primeiras de
todos
os regimes de fôrça, qualquer que seja o matiz.
A Universidade é o lugar focal, onde, dentro
da sociedade, se
transmite dinâmicamente a cultura às novas elites; mas não
através
de um modo que eu diria testamentário, onde um patrimônio mecâ-
nicamente passa de mão a outra, intocado. Ao contrário, o
patrimô-
nio cultural é algo que por sua própria natureza sòmente se
enriquece
através de um movimento de contínua reflexão crítica pelo qual
êle
se refaz e se fecunda permanentemente. Ora, tal reflexão crítica
é
impossível sem o livre debate acadêmico de pontos de vista,
opiniões
e doutrinas divergentes, e sem o exame de tôdas as novas
contribui-
ções intelectuais e das novas realidades que estão
continuamente a
desafiar o espírito acadêmico, no diálogo com as novas
gerações.
Sem esta atmosfera, a Universidade tende a se fixar num imobilismo
esterilizador. É precisamente esta atmosfera que a torna, quando
digna dêste nome, incompatível com os sistemas, concepções ou
prá-
ticas de índole totalitária.
Aqui se impõe, portanto, a questão: o que é,
afinal, o totali-
tarismo?
Sabeis que categorias como tirania, despotismo,
ditadura, auto-
cracia, e outras aparentadas com o totalitarismo, embora não raro
misturadas e confundidas no uso corrente, e podendo mesmo coinci-
dir parcialmente, expressam realidades distintas, cuja
discriminação e
refinamento conceitual não escapara já à agudeza do espírito
grego.
Mesmo o totalitarismo, como fenômeno moderno, contém dimensões
políticas, econômicas e psicológicas, extremamente complexas,
não
suscetívcís de uma esquematização crua, sob o risco da
simplificação
que leva à distorção.
Feita a ressalva, pois, de que estamos jogando
com conceitos e
realidades limites, creio podermos adotar a penetrante lição do
pro-
fessor John Kautski, da Washington University, numa das mais per-
cuciantes análises sôbre a matéria, ao dizer que êste algo de
próprio
na estrutura, métodos e estilo do totalitarismo moderno - que
per-
mite abarcar protótipos sob outros aspectos tão opostos, como o
Fas-
cismo e o Stalinismo - isto é, o terror total, a arregimentação
total,
a propaganda e a censura totais, constituiriam realidades
intimamente
ligadas ao processo de industrialização, podendo desabrochar,
con-
forme o grau, ritmo e circunstâncias desta, nas duas formas
opostas
que êle denomina, respectivamente, "o Totalitarismo dos
Intelectuais"
de um lado, e de outro, "o Totalitarismo da Aristocracia e
seus aliados"
No primeiro caso, o modêlo típico, embora
não o único e não ne-
cessáríamente de inspiração marxista, seria o da Revolução
Leninis-
ta, sendo aí a ditadura do Partido ou da Burocracia, o veículo
utili-
zado para "introduzir ou acelerar a industrialização,
suprimindo,
porém, ao lado disto, as conseqúências políticas que a
acompanharam
històricamente no Ocidente", como a democracia política, a
seguran-
ça e a liberdade pessoal. E as suprime em nome de um futuro bem-
estar daqueles mesmos que sofrem a supressão, ou de seus descen-
dentes.
Em tal esquema, as revoluções sociais são
lideradas por "inte-
lectuais fundamente convencidos de que são ou a vanguarda do
senti-
mento de uma classe, ou representam os "verdadeiros"
interêsses de
todos, ou o inevitável curso da História".
No segundo caso, o do totalitarismo das
aristocracias e seus alia-
dos, isto é, o Fascismo, em suas diferentes manifestações, mais
ou
menos hirsutas, não seria senão o movimento defensivo de
segmentos
possuidores de uma sociedade que, em certa fase do processo de in-
dustrialização, sentem-se ameaçados pela realização das
conseqüên-
cias últimas da Revolução Francesa, a qual, na imagem plástica
de
Guido de Ruggcro, está para a História Contemporânea assim como
um prelúdio para a sinfonia, antecipando-lhe, de forma breve, os
temas que serão nela depois desenvolvidos. Nesta linha, a
Revolução
Francesa conteria de fato três revoluções germinativamente: uma
li-
beral, uma democrática, uma social, destinadas a se realizarem em
momentos sucessivos na história. Na oposição a êste
desenvolvimento
é que a descrença nas técnicas liberais de govêrno recorre ao
autori-
tarismo, a fim de evitar um tipo de avanço social que parece pôr
em risco os valôres e os interêsses de muitos.
Ao nível psicológico, é precisamente a êste
estado de espírito, a
esta síndrome social, que Erich Fromm, em seu conhecido estudo,
chamou de "O Mêdo à Liberdade", expressão das
angústias, frustra-
ções e temores de largos estratos da sociedade colocados em
momen-
tos de transição histórica e que, vendo perdidos seus
parâmetros de
referência tradicionais, se entregam dòcilmente aos regimes de
fôrça
sacrificando sua esfera de autonomia pessoal à ilusão de uma
falsa
segurança. Nesta alternativa, à feição do que ocorre com a
personali-
dade neurótica, diminui-se a angústia, por mecanismos de
evasão, de
falso ajustamento, sem resolver todavia os problemas reais
subjacen-
tes que continuam sem solução, agravados com o risco de
exasperar-
se mais adiante.
Em última análise, no lúcido julgamento de
Harold Laski "a his-
tória da democracia política no período decorrido desde a
Revolução
Francesa é a história de sua aceitação, sob a condição de
que as
massas não procurem estendê-la até o plano da vida econômica e
social. A fé depositada pelo rico na democracia política é
estritamen-
te condicionada à suposição pré-estabelecida de que seus
princípioi
não são aplicáveis no domínio econômico. E é mais do que
evidente
que se aquêles que vivem de suas propriedades tiverem de escolher
entre a continuação da sua propriedade e a continuação da
democra-
cia, optarão pela primeira."
Tal, esquemâticamente, a dinâmica de
implantação dos dois tipos
opostos de regimes totalitários.
O Totalitarismo, entretanto, não é apenas um
regime. Seu exame
deve ser levado mais longe, para visualizá-lo enquanto um
movimen-
to ou enquanto um estado de espírito, que podem estar presentes
dentro de uma sociedade ou de um govêrno, mesmo quando ausente
o terror institucionalizado.
Bem nítida ficou esta distinção quando, em
1953, inspirados por
Karl Friedrieh, reuniram-se na Universidade de Harvard algumas de-
zenas dos maiores especialistas de vários países nos campos da
Ciên-
cia Política, Sociologia, Psicologia Social e Antrdpologia, para
o fa-
moso Simpósio sôbre Totalitarismo, do qual é fruto o livro
clássico
sôbre o tema, que tem êste nome. Neste Simpósio, Hannah Arendt,
que fôra a autora da melhor obra individual até então publicada
sôbre a matéria, pôs em relêvo o que em seu entender constitui
um
dos traços definidores dos movimentos totalitários e do
espírito tota-
litário, e que a mim parece também importante salientar, a
saber: a
sua visão conspiratorial do mundo e das coisas.
Esta vísao, que tende a conceber as coisas
dentro de uma pers-
pectiva de interpretação unicausal, "serve para libertar o
pensamento
da experiência e da realidade; esforça-se por injetar uma
significação
secreta em cada acontecimento e por introduzir a suspeita de uma
se-
creta intenção por detrás de qualquer ato político; o que se
produz é
uma mentalidade onde o real não é mais compreendido em seus
pró-
prios têrmos, mas automâticamente é presumido como significando
uma outra coisa diferente. O mundo da denúncia e do real se sepa-
ram".
Como resultado inevitável surgem sempre os
bodes expiatórios
da História: algum grupo especial de pessoas que deve ser
persegui-
do como responsável pela maior parte dos males existentes. Tais
grupos ou pessoas mudam no tempo, e de lugar para lugar. Apenas
o vilão é diferente. São os Judeus, a Maçonaria, são os
Jesuítas, é o
Kremlin, é Wall Street, enfim, qualquer grupo ou símbolo
identificado
como uma "elite onipotente" a cujas maquinações tudo
é referido.
É precisamente a êste "estilo peculiar
de pensamento", a esta
peculiar moldura intelectual em que as coisas se põem, com uma
pe-
culiar retórica política, que Richard Hofstadter, professor de
História
Norte-Americana da Universidade de Colúmbia, em obra recente, de-
nominou "o estilo paranóide em Política". Tal
expressão toma de em-
préstimo o têrmo clínico para expressar, acima de tudo,
"um quadro
mental, um modo de perceber o mundo e de expressar-se a si
próprio,
onde estão presentes as notas do exagêro ardoroso, da
desconfiança
sistemática, do hiperpassionalismo, da hipersuspeição e da
hipera-
gressividade. Em ambos os casos são comuns os sentimentos de hos-
tilidade e perseguição com que as coisas do mundo são
percebidas,
consistindo a diferença vital apenas em que o paranóico clínico
vê a
agressão dirigida específicamente contra êle e sua pessoa,
enquanto o
porta-voz do estilo paranóico em política a percebe como
dirigida con-
tra tôda uma nação, tôda uma cultura, todo um modo de vida,
cujo
destino afeta não apenas a si próprio mas a milhões de outras
pessoas".
Daí "o maniqueísmo quase supersticioso existente na
fantasia de que
quase todos os problemas podem ser reduzidos, simplesmente, a uma
batalha entre o Bem e o Mal, considerada em têrmos absolutos e
apo-
calípticos".
A preocupação central do estilo paranóide é
a existência de uma
"imensa cadeia internacional conspiratória, mas trabalhando
dentro
de casa, sinistra, ubíqua, poderosa, insidiosa, praeternatural e
efetiva
destinada a perpetrar atos do mais hediondo caráter, montando uma
maquinaria de influência gigantesca embora sutil, colocada em
movi-
mento para solapar e destruir um certo modo de vida". Assim
"tudo
é retraçado c reduzido a um único centro de influência, a uma
única
fonte má, que deve ser eliminada por um ato fatal de vitória, O
com-
bate se trava não pelos métodos usuais do jôgo político, mas
através
de uma cruzada total, pelo esmagamento implacável do inimigo e
pela
sua eliminação definitiva, senão do mundo, ao menos do teatro
de
operações para onde o paranóide dirige sua atenção".
Digno de nota
é o "pedantismo que acompanha tal estilo, e a atração
magnética que
exerce sôbre os semi-intelectuais", perceptível, "na
literatura para-
nóide, no cuidado com a documentação necessária para
fundamentar
as conclusões para, através de cuidadosa acumulação de fatos,
ou
ao menos daquilo que parece ser fato, extrair a evidência de que
o
inacreditável é a única coisa em que realmente se deve
acreditar".
"Não há lugar para erros".
"Nada fica sem explicação". Irôni-
camente, o que existe não é uma falta de fatos; o que há,
precisamen-
te, é abundância excessiva de fatos, "alguns verificáveis,
outros mani-
pulados e fabricados", para "estar presentes em algum
ponto crítico
do recital explicativo dos acontecimentos necessário para chegar
às
mais fantásticas conclusoes", por via de um "complicado
processo ló-
gico" que opera afinal "o grande salto do inegável para
o inacreditá-
vel".
É claro não constituir tal atitude
privilégio das causas más, "em-
bora tenha muito mais afinidades com estas do que com as
boas". O
estilo tem a ver com o modo pelo qual as idéias são abraçadas
ou ad-
vogadas, mais do que com seu conteúdo, pois sempre haverá um
nú-
cleo de verdade sôbre o qual êle se apóia". Nem
necessàriamente se
liga a esta ou aquela ideologia, sendo notórias as identidades
entre
as manifestações da "direita paranóide" e da
"esquerda paranóide",
por que em "ambas é comum uma psicologia fundamentalmente
ma-
niquéía
O paradoxal final, em tal estilo, é a
"imitação do inimigo e das
suas técnicas". Tais pessoas "professam uma crença na
democracia
e na igualdade de direitos; todavia, em seu próprio zêlo pela
liberda-
de, curiosamente, assumem muitas das características do inimigo
ima-
ginado. Em condenando a fanática adesão do inimigo a uma ideolo-
gia, manifestam uma aceitação igualmente acrítica de uma
ideologia
diferente; em atacando a intolerância do subversivo quanto ao
direito
de discordar, trabalham para eliminar a discordância e a
diversidade
de opinião"; em "criticando a lealdade do inimigo a uma
organização
piocuram comprovar sua lealdade incondicional à ordem
estabelecida".
Até aqui, o livro do Prof. Hofstadter. E
êstes, apenas, alguns dos
traços da psicologia, conspiratorial inerente ao espírito e aos
movi-
mentos totalitários.
Mas, como se expressa êste espírito na
ação? O espírito totali-
tário, quando não dispõe do poder político, se contenta apenas
em
anular influências, em desacreditar, em difamar, em destruir
reputa-
ções, em fazer aquilo que na tradução livre da expressão
inglêsa se
poderia chamar de "assassínio moral'.
Quando, porém, tal mentalidade ascende ao
poder, mesmo sem
nêle predominar necessàriamente, mas podendo afetar suas
decisões
mesmo nos regimes meramente autoritários, então as palavras se
convertem em atos, então o que era antes mera difamação se
converte
em repressão e em supressão, e avulta desproporcionalmente o
com-
bate à conspiraçao, ao chamado "inimigo de fora". A
"ênfase no ini-
migo de fora" é fundamental domo adverte o prof. Kautski,
"pois
o regime passa então a identificar com aquêle todos os seus
inimigos
reais ou imaginários". Assim, exemplifica, "para os
Nazistas os Aliados
eram todos instrumentos do judaísmo internacional e dos
antinazistas
não judeus, dentro da Alemanha, instrumentos da mesma conspira-
ção. Para Stalin, tôdas as potências estrangeiras inamistosas
eram
consideradas imperialistas, e tôda a oposição interna,
incluindo ve-
lhos bolchevistas, vista como formada de espiões estrangeiros,
provo-
cadores e sabotadores. Para a maioria dos países fascistas o
Comu-
cismo Internacional e, ocasionalmente (nos casos da Itália e
Japão),
também o Imperialismo Ocidental, serviu de inimigo de fora".
É evidente que tais visões podem incluir
fragmentos de verdade.
Mas o fato fundamental que importa destacar, como adverte o prof.
Kautski, é que, como conseqüência "tôda oposição
interna passa a ser
identificada com aquêle inimigo".
E desde que há uma ilusão de unidade interna
completa, apoian-
do o govêrno e o regime, qualquer um que se oponha ao primeiro
corre o risco de ser identificado como inimigo do segundo, de ser
considerado "por definição não mais um bom membro da
sociedade
mas, subjetiva ou objetivamente, um agente do inimigo de
fora". O
resultado é "uma atmosfera de crise continuada".
A extensão do mecanismo de repressão varia de
lugar para lugar,
podendo ir desde o mero isolamento social até a verdadeira
destruição
física, diferenciando-se apenas em função dos instrumentos de
coer-
ção disponíveis e aceitáveis, porque, sabidamente, há um
limite que
não pode ser ultrapassado excessivamente em cada sociedade sob
pena de ultrajar certos padrões culturalmente prevalentes. O
espírito,
porém, é sempre o mesmo.
A partir de um certo momento, assim
identificado o adversário
com a conspiração, não é necessário que as coisas aconteçam.
Basta
que se convença a um grande número de pessoas de que elas devem
estar necessáríamente acontecendo. Explicados convenientemente
os
objetivos, métodos, e os tipos de pessoas nela envolvidos, a
partir daí
torna-se indiferente exista ou não realmente a conspiração, ao
menos
no grau e extensão com que denunciada. Basta se ter fixado, com
su-
ficiente insistência, que é ela que legitima certos atos
praticados por
certas pessoas contra outras. Se o adversário parece diminuir em
nú-
mero, reforçam-se lhes as características, amplia-se-lhe a
descrição,
descobrem-se novos.
A circunstância de que os acusados nada tenham
a ver com a
conspiração é secundária, como secundária é a preocupação
de inda-
gar o que realmente êles pensam ou fazem. Uma vez que alguém
seja
marcado, segundo critérios totalmente arbitrários todos os seus
atos
passam daí para diante a ser interpretados à luz da imagem
prêvia-
mente elaborada, fruto das fabricações mentais e da obsessão
zelóti-
ca dos seus inquisidores. Tôdas as ações são convenientemente
dis-
postas para produzir a teoria explicatória. Contraditôriamente,
se
uma das expressões de tal estilo é o excesso de fatos, de um
lado, sua
outra face é um desprêzo absoluto pelos fatos. Êstes passam a
ser dis-
pensáveis.
É suficiente, afinal, apenas, que alguém no
Poder atribua a ou-
trem esta bizarra, indefinível e imponderável coisa, que se
chama
"mentalidade anti-revolucionária" -- como na
descrição que em O
Zero e o Infinito, Arthur Koestler fêz dos expurgos associados
aos
Processos de Moscou na década de trinta.
Completada a descrição do espírito totalitário
naquilo que reve-
la de substancial, resta concluir repisando que é êle o inimigo
por ex-
celência do espírito universitário.
O verdadeiro intelectual, quando não sucumbe
ao dogmatismo
sectário, ou quando não se domestica ao Poder pela covardia, é
um
ser eternamente abominado e perseguido por todos os tipos de
espíri-
to totalitário. Sua vocação torna-se seu estigma; seu êstigma,
sua ex-
ereção. Seu crime: o da não entrega total da liberdade a um
Partido
ou a um Estado dominado pelo espírito totalitário.
A Universidade é o lugar do homem que procura
a Verdade. O
Autoritarismo Totalitário pensa já possuir a verdade total.
O espírito universitário
hesita questiona,
objeta, sua atitude
própria é a da reflexão crítica voltada para os necessários
discrimes
intelectuais. Exige o sentido das corretas distinções dos
matizes, das
proporções, da dúvida sistemática.
O espírito totalitário é pleno de certezas,
sólidas e inabaláveis;
de idéias simples e simplificadoras; não admite estar errado,
tudo
sabe e tudo explica; é linear, uno, univoco, monocórdio,
monolítico.
Em uma palavra: a Universidade é o domicílio
próprio da ra-
zão, O Autoritarismo Totalitário só conhece como argumento a
fôrça.
E se alguém ainda tiver ilusões ou dúvidas a
respeito do que
seja mais próprio a condição do homem; do que é mais valioso;
de
quem pode mais e, a longo prazo, sempre será o vitorioso; e qual
o
motivo por que isto é inevitável - permito-me dar a essência da
res-
posta, resumir tôdas as razões, naquilo que dizia Boris
Pasternak:
"Penso que, se se pudesse deter o animal
que dormita no ho-
mem por meio da ameaça... o mais elevado emblema da humani-
dade seria o domador de circo com seu chicote, e não o predicador
e seu sacrifício. Mas, justamente, o que no decurso dos séculos
tem
elevado o homem acima do animal, o que o tem conduzido tão alto,
não é a vara, é a música; a fôrça irrefutável da verdade
desarmada,
a atração de seu exemplo".
Meus caríssimos afilhados e novos colegas.
Ao me despedir, permiti uma palavra última sôbre
vossa missão
de graduados e cidadãos, tal como a vejo:
Há alguns decênios se desdobra neste país um
processo de trans-
formação global das estruturas herdadas da Primeira República
visan-
do conduzir a Nação da sociedade tradicional e colonial à
sociedade
moderna, sincronizando-a com as conquistas da tecnologia e da in-
dustrialização, para romper com o conjunto de distorções e
injustiças
que marcam um tipo de sociedade, a qual na frase de Jacques Mari-
tain, "segrega a miséria como um produto normal de seu
funciona-
mento".
Tendes um desafio neste tipo de sociedade,
quando em todo o
mundo, milhões de sêres humanos despertam para algo que é
inarre-
dável do coração do homem - a reivindicação da própria
dignidade.
No dizer do Jesuíta Pierre Bigo - "durante milênios viveram
mar-
ginalizados, segundo a palavra de Lucrécio - "humanum paucis
vivit
genus" (a raça humana vive para poucos) - forjando um pe-
queno grupo de privilegiados" dentro de um estado de coisas
que,
"para a maioria, não é mais que a institucionalização de
uma desor-
dem fundamental nas relações da Justiça".
Diante de tal estilo de- convívio humano sei
bem de vossa indig-
nação moral.
Entretanto, não seria eu veraz se vos deixasse
partir com pala-
vras de otimismo circunstancial e convencional, e não repetisse,
uma
vez mais, para muitos, que a indignação moral não é substituto
da competência.
Não há pior companheiro do reformador do que
o despreparo.
Não há pior contradição da verdadeira reforma do que a reforma
inepta. A sêde de justiça é um impulso, não um instrumento.
Entre
o impulso generoso e o resultado eficaz há um enorme espaço
reser-
vado à mediação científica, sem a qual, não só pouco será
feito mas
ainda corre-se o risco de, por inépcia ou insensatez,
comprometer.
em algumas decisões equivocadas, décadas de avanço social. É
por
isto que, não apenas como professOres e pesquisadores, mas igual-
mente como líderes sociais, não vos julgueis dispensados do
dever
fundamental da competência.
Não vos enganeis. A ignorância bem
intencionada é tão ou mais
nociva do que o conformismo. Não se transforma um país repetindo
indefinidamente siogans emotivos, meias verdades ou esquemas de
importação não criticados. Não se solucionam problemas.
simplifi-
cando lhes a natureza. Não e modifica uma realidade que de fato
se
desconhece ou se conhece insuficientemente. Não se faz ação
social
eficaz alimentada apenas pelo verbalismo das declarações vazias.
Em
suma, não se reforma uma sociedade apenas com frases sonoras.
Se quiserdes realmente estar à altura do
desafio que se vos faz,
não só como graduados mas também como cidadãos, não vejo
outro
rumo que o da formação de quadros realmente capazes de enfrentar
a tarefa que está adiante. E isto só se obtém através de um
caminho:
o do estudo, o da seriedade, intelectual e moral, o da disciplina
inte-
rior, o do trabalho árduo, paciente, muitas vêzes obscuro.
Não vos desejo tecnocratas frios,
manipuladores de fórmulas ou
planos, num bovarismo intelectual que mutila tantas vocações
promis-
soras. Porém, não deixando diminuir vossa sêde de justiça,
lembrai-
vos que uma das marcas de mediocridade é a sua insolência, mas
que ela é apenas insolente enquanto poderosa; festejada ou in-
disputada.
No dia em que o monopólio da clarividência
for contestado pela
afirmação da vossa competência e seriedade então nada vos
poderá
deter na realização de vossos ideais.
Êste o único e derradeiro conselho que ousa
dar vosso Paraninfo.
Guardai vosso entusiasmo e vossa flama
interior; não vos deixeis
fascinar pelo imediatismo; não vos acomodeis à tentação do
sucesso;
sêde fiéis a vós próprios e à vossa consciência; sêde
dignos do grau
que hoje recebeis, honrando vosso juramento. Sêde íntegros. E,
acima
de tudo sêde bons. E sêde felizes.
(Transcrito
do Correio do Povo de 7-1-67)