TRADICIONALIDADE, MODERNIDADE, CONTEMPORANEIDADE: UM ESQUEMA INTERPRETATIVO
por Augusto de Franco
O presente texto propõe um esquema interpretativo para a compreensão da mudança de paradigma geralmente associada à sucessão de grandes épocas históricas. A luz do modo-de-ver aqui proposto, o novo paradigma emergente é o da Contemporaneidade e se revela como resultado da tensão entre Tradicionalidade e Modernidade.
Tradicionalidade, Modernidade e Contemporaneidade são definidos como sistemas de atitudes-matrizes que geram padrões de mundivisão e de mundiação, ou seja, paradigmas de interação com o mundo. As matrizes de visão de mundo e de ação sobre o mundo que constituem estes paradigmas são tomadas como atitudes do homem: diante da história, do saber, do poder e da política.
1. TRADICIONALIDADE
A atitude de Tradicionalidade do homem diante da história é a atitude mítica; diante do saber, a sacerdotal; diante do poder, a hierárquica; e, diante da política, a autocrática ou monárquico-militar.
Compõe-se assim o paradigma da Tradicionalidade do seguinte sistema de atitudes-matrizes:
História = |
Mito |
Saber = |
Sacerdócio |
Poder = |
Hierarquia |
Política = |
Autocracia |
Assim, não existe, a rigor, uma época histórica a qual se possa denominar "Tradicionalidade". Entretanto, cabe reconhecer que o paradigma da Tradicionalidade só começou a ser abalado, no Ocidente, a partir do Renascimento, e só foi questionado globalmente, enquanto estruturante da vida social, a partir da chamada era das revoluções. Por causa disto acostumamo-nos a chamar de Tradicionalidade ã época histórica anterior à Modernidade.
1.1. MITO
Vejamos, para começar, o que é uma visão mítica da história. Se imaginarmos que existe (substantivamente) uma história, então estamos numa visão mítica da história. Se acreditarmos que a história possui alguma finalidade, sentido ou ritmo, conferidos extra-historicamente por qualquer instância extra-humana, então também estamos numa visão mítica da história. Se aventarmos a hipótese de que a história é regida por leis, cujo conhecimento seja possível obter-se a priori, antes da praxis concreta dos homens históricos, então estamos igualmente numa visão mítica da história.
Na visão mítica o que faz a história é o passado. A "acumulação de passado". A história é como que um desdobramento de uma substância universal, um continuum temporal. Por isso que - na visão mítica - ela existe como uma história, como algo que possui, em si, finalidade, sentido ou ritmo e como algo que está submetido a leis universais. Tudo isso independentemente dos homens que fazem suas histórias atribuírem finalidades, sentidos ou ritmos a estas histórias a partir da observação de regularidades ocorrenciais.
Na mundivisão mítica a liberdade do homem diante da história é a liberdade de concordar com a história. Ou seja, ele não pode, através da política, construir urna outra história. Nem pode atribuir à história uma finalidade (ou um sentido, ou um ritmo) não consentâneo com aquele que a própria história exprime desde "o princípio dos tempos"; isto é: não pode modificar a natureza da corrente histórica que vem do passado, de cujo conhecimento, aliás, provêm as leis da progressão, da regressão ou da ciclicidade histórica.
Assim, o "poder do mito" revela-se, pelos seus efeitos no terreno da história, como algo capaz de restringir a liberdade do homem de construir sua história, quer dizer, de projetar seu futuro.
Mas a atitude mítica do homem diante da história, que se expressa numa concepção de caminho já traçado ou de final pré-estabelecido (ou pré-estabelecível), não é encontrada apenas na antigüidade. A crença na existência de uma finalidade da história em si, imanente, ou atribuída por alguma instância extra-histórica, transcendente, constitui unia supervivência da Tradicionalidade "em plena" Modernidade, como mostram as diferentes "filosofias da história" ainda em uso no presente século.
1.2. SACERDÓCIO
A atitude sacerdotal do homem diante do saber configura-se como intermediação entre o homem e o seu futuro. Uma intermediação que predetermina caminho. Colocando-se à frente (e acima) dos demais, o sacerdote legisla o futuro para os que estão atrás (e abaixo). Ele "aplaca" as forças ameaçadoras do desconhecido, domestica o novurn que virá, oferece a segurança de um caminho pavimentado pela crença.
O sacerdote sabe. Sua sabedoria vem da tradição, que refrata, na esfera do saber, a visão mítica da história como rito. Como rito de percorrer caminho.
O sacerdote sabe mais do que os outros. Sua sabedoria diz-se tão antiga como o sistema do mundo. Pois foi ela que constituiu o próprio sistema (ou emanou de sua constituição).
O sacerdote sabe o que os outros não sabem. Porque foi ordenado pela mesma "potência" que gerou o sistema. Ou porque acedeu ao conhecimento da lei que rege o sistema.
A legitimação do sacerdote vem do passado. E é com este "capital de saber acumulado e transmitido desde o passado que ele projeta passado sobre o futuro. Para impedir a emergência do inesperado, do que pode surpreender a ordem estabelecida, pela qual foi investido. Ele promove a sustentação espiritual dos poderes materiais. É por isso que não existem reis sem sacerdotes.
O saber do sacerdote, recebido em virtude da ordenação, é uma capacitação para manter a ordem. Mas como não se pode manter a ordem sem controlar o futuro, o sacerdócio condiciona o futuro; seus preceitos aprisionam o amanhã. Para perpetuar o hoje, para que o amanhã seja uma repetição do hoje.
A atitude sacerdotal do homem diante do saber também pontifica na atualidade. A visão (sacerdotal), que retira do homem a capacidade de um falar diferente daquele consagrado pelo sistema de sabedoria, continua vigiando em nossos centros (acadêmicos) de saber. A desqualificação da opinião pelo saber que provém ou advém de uma instância que mantém exterioridade temporal em relação ao sujeito - no caso do sacerdócio, o passado - permanece sendo cometida na política praticada hodiernamente.
1.3. HIERARQUIA
A atitude hierárquica do homem diante do poder provoca uma anisotropisação do espaço social. O espaço, hierárquico, do poder, é um meio social anisótropo, onde se privilegia a direção vertical. Nele, os seres humanos são separados e verticalmente distribuídos por critérios de poder: quanto mais se sobe, mais poder se tem; quanto mais se desce, menos liberdade.
A hierarquia é o império da separação. Trata-se de uma matriz anti-igualitária, pela qual se estratificam e se legitimam diferenças existentes ("naturais") como desigualdades espirituais (e, inevitavelmente, sociais).
Tudo está organizado, nesta ordem vertical, do ponto de vista da existência de superiores e inferiores. Tudo é separado e dividido segundo o nome e o número da sua ordem, quer dizer, da sua posição hierárquica. Um povo (ou um grupo) é separado dos outros povos (ou de outros grupos) e julgado superior porquanto predestinado a cumprir alguma missão (histórica ou divina). Os homens são separados entre si, pois que cada qual tem seu grau (de responsabilidade) na (manutenção da) ordem. Os homens são separados das mulheres; os sadios dos doentes; os adultos das crianças - e todos os primeiros considerados superiores, em algum sentido. Finalmente, o homem é separado do seu futuro.
A hierarquia se opõe às idéias de complementaridade e de diferença. Racismo, elitismo e burocratismo (sacerdotal), machismo, mas também classismo, são manifestações ideológicas bem visíveis desta matriz.
Não é conhecido na história nenhum sistema de poder que não se baseie nas separações mencionadas acima. Em termos materiais e espirituais, uma vez que não existe mesmo poder material sem poder espiritual.
A hierarquia é, literalmente, um poder sacerdotal: é a arché - ordem, do hiereus - sacerdote.
Parece tão evidente que a matriz hierárquica continua atuante no mundo atual que seria ocioso registrar as marcas da sua presença no instituído.
1.4. AUTOCRACIA
A atitude autocrática do homem diante da política também pode ser compreendida como uma atitude monárquico-militar. Monarquia-militar é aqui o nome de uma matriz e não a designação de um regime político determinado. E, ao mesmo tempo, evocação genética (do Estado) e símbolo (da autocracia). Por isso que, de um lado, Estados nascentes organizaram-se politicamente sob regime monárquico; e que, na sua origem, esta monarquia era um instituto militar. E posto, de outro lado, que monarquia é a forma extrema (Bobbio,1985) de regimes antidemocráticos ou não-democráticas que podem compreender-se sob a idéia de autocracia (Kelsen, 1945).
Com efeito, monarquia se identifica com a idéia de reino concreto (Políbio), conquistado e mantido "pela espada e pelo sangue", que se opõe àquele Reino utópico de nossos sonhos de liberdade. Reino e Reinado, do rei sobre seus súditos, de um povo sobre outros povos, sempre é dominium e imperium onde não tem lugar a liberdade.
A atitude monárquico-militar diante da política baseia-se na idéia de ordem. E pressupõe um combate constante pela preservação da ordem. Ela considera a guerra como instituição permanente, ainda quando diga que seu fim é a paz. E avalia o conflito como uma disfunção do sistema, ou um desvio da sua finalidade.
A visão da guerra como instituição permanente implica na adoção de um "modo universal" de resolver conflitos através da eliminação do polo oposto conflitante. O que revela esta característica "psíquica" principal do padrão militar de interação com o mundo que é a insuportabilidade de convivência com o conflito. Mas trata-se de uma característica comum a todos os sistemas antidemocráticos, e não apenas às ordens explicitamente militares.
A atitude monárquico-militar diante da política é como que uma "resultante" de atitudes míticas diante da história, sacerdotais diante do saber e hierárquicas diante do poder. Ela representa o domínio do passado: a manutenção da ordem é o sempre de uma ordem pregressa, o que congela as possibilidades de auto-constituição consciente de uma nova realidade humana no mundo.
Não se toma necessária uma investigação muito exaustiva para revelar que nas instituições e nos regimes vigentes "em plena" Modernidade atual predominam formas de organização e procedimentos cuja finalidade última é manter a ordem. Ou seja, predomina o que chamamos de atitude monárquico-militar diante da política.
2. MODERNIDADE
O paradigma da Tradicionalidade continua vigente nos dias de hoje. Embora tenha sido negado pela Modernidade, ele ainda não foi superado, uma vez que até agora não se realizou como novo status, nenhum paradigma da Modernidade. Isto porque a Modernidade é um processus de questionamento do "velho mundo", uma promessa de "novo mundo', mas não propriamente um mundo novo.
O que chamamos de Modernidade é um sistema de novas atitudes-matrizes que se contrapõe ao sistema de atitudes-matrizes da Tradicionalidade. Este sistema também gera padrões de mundivisão e de mundiação e, portanto, constitui igualmente um paradigma. Porém trata-se aqui de um outro tipo de paradigma, que talvez pudesse ser chamado de paradigma-processo, por contraposição ao paradigma da Tradicionalidade, que é um paradigma-estado.
As matrizes de visão de mundo e de ação sobre o mundo que constituem o paradigma da Modernidade podem ser encaradas como atitudes do homem: diante da história, a atitude utópica; diante do saber, a profética; diante do poder, a autônoma; e, diante da política, a democrática.
Compõe-se assim o paradigma da Modernidade do seguinte sistema de atitudes-matrizes:
História = |
Utopia |
Saber = |
Profecia |
Poder = |
Autonomia |
Política = |
Democracia |
Estamos em processo de Modernidade toda a vez que nos contrapomos: utopicamente à atitude mítica; profeticamente à sacerdotal; autonomamente à hierárquica; e, democraticamente, às atitudes autocráticas.
2.1. UTOPIA
A utopia é a projeção ideal de uma situação (futura) diferente da atual que surge com a atividade profética e constitui um dos primeiros "sinais da presença" da Modernidade no mundo antigo.
Já houve quem atribuísse ao profeta Amós (c. 750 a.C.) a paternidade do pensamento utópico (Hertzler, 1923). O registro mais antigo que possuímos de uma atitude utópica diante da história é o relato bíblico de uma assembléia, que teria sido realizada por volta de 1200 a.C., nos arredores da cidade de Siquém, na Palestina. Nesta assembléia - segundo os relatos, provavelmente redigidos meio milênio depois nos círculos proféticos do Norte (da Palestina), quem sabe pelo próprio Amós - tomou-se a decisão de não organizar Israel como Estado. Esta decisão, contudo, não foi adotada com base na unidade nacional (ou étnica) dos diferentes grupos presentes á reunião (Gottwald, 1975) e sim a partir de uma opção política; quer dizer o que pesou não foi una determinação imposta pelo passado, senão urna visão projetiva, de futuro, qual seja a de, conhecendo o Estado, resolver experimentar viver socialmente sem ele. Com efeito - sempre segundo os relatos: Js, 24 - os que aceitam o reinado de Iahveh na dita assembléia celebram ente si um pacto de recusar submeter-se a um reinado humano (a forma de Estado conhecida então).
A atitude utópica se contrapõe á atitude mítica diante da história. Para a utopia o caminho para o futuro não está predeterminado por alguma ordem herdada do passado, mas aberto á invenção humana, ao projeto. A utopia é, portanto, um não-lugar (u-topos) projetado no futuro que tensiona com a situação atual, isto é, com o presente concebido como resultado da "acumulação de passado".
2.2. PROFECIA
Constituída contra o sacerdócio, a profecia também é uma atitude diante do saber. A profecia sabe. Seu saber, entretanto, não provém (da tradição) do passado, mas advém (da Revelação) do futuro.
Ao contrário da visão (sacerdotal) da crença, uma visão do passado acarretando o presente, a visão (profética) da fé é a visão do futuro "puxando" o presente. Do presente em devir. Do presente "grávido" do futuro.
O profeta ante-vê, mas com os olhos da fé, as possibilidades de desdobramento do presente. Ele anuncia futuro. Sua linguagem não é a do determinismo, mas a das alternativas e da liberdade (Baeck, 1958/Fromm, 1966). O que ele faz significa: possibilitar aos homens a escolha de caminhos.
O profeta não advinha futuro, mas estimula a criação de futuro. Seus oráculos não fecham o futuro; abrem-no. Ele diz que os homens podem inventar futuro se romperem com a ordem que repete passado. E oferece um critério para esta invenção de futuro: o homem tem que fazer a opção moral de seguir o seu próprio caminho, o caminho que projetou, se quiser se libertar do passado.
Ao colocar a moralidade dentro da história, oferecendo um critério para invenção de futuro a partir da opção humana, o profeta se opõe radicalmente aos vatícinios dos que tentam adivinhar um destino já traçado por qualquer instância extra-humana. Na profecia o homem pode ter a escolha do seu destino. O que pressupõe uma concepção de futuro progressivamente humanizada (Bloch,1968).
2.3. AUTONOMIA
Uma outra atitude, oposta á hierárquica, diante do poder, é a inspirada pela idéia e pela prática da autonomia.
A autonomia é o fundamento da anarquia, o não-governo "de cima" ou "de fora". É a capacidade de auto-legislação (auto-nomos), de produzir as normas que regem o próprio comportamento.
A reação profética à hierarquia se manifestou na história através de movimentos (libertários) que almejavam a autonomia, ou seja, o estar livre do poder do outro, o que significa ter o seu próprio poder: o poder de se administrar por si mesmo, criando as normas - nomos, para si mesmo - auto.
2.4. DEMOCRACIA
A atitude-matriz diante da política oposta à monárquico-militar é a democrática.
A atitude democrática diante da política é, em primeiro lugar, uma disposição de resolver conflitos que inspira um modo de regular estes conflitos, O pensamento autocrático, que encara o conflito como um defeito a ser reparado pela supressão do agente supostamente causador do malfuncionamento do sistema, não pode aceitar esta disposição democrática. Ela aponta para um modo de regulação dos conflitos que pressupõe a convivência com o conflito. Onde, portanto, a superação das condições geradoras do conflito não se confunde, tal como na guerra, com a eliminação de algum (ou de alguns) dos pólos conflitantes.
A atitude democrática diante da política é uma espécie de "resultante" de atitudes utópicas diante da história, proféticas diante do saber e autônomas diante do poder.
Com efeito, os mais antigos relatos que possuímos colocam a prática democrático-autônoma e o pensamento profético-utópico no mesmo lugar. Voltando ao exemplo da Assembléia (ou Pacto) de Siquém: é irrelevante se tal reunião realmente ocorreu ou não (e da forma como narram os relatos). Pois a antigüidade da escritura - hoje dificilmente contestável - coloca esta experiência, concreta ou de pensamento, como anterior à democracia grega. O que importa aqui é que o registro mais antigo do surgimento de uma política ex parte populi co-incide com o da invenção da utopia.
Por outro lado,, a justificação moderna da democracia ideal é fruto da segunda metade do século XVIII. Ela se baseia na idéia de liberdade como autonomia (Rousseau, 1762). As raízes filosóficas desta idéia podem ser encontradas no pensamento de Spinoza (1670), para o qual o fim da política é a Liberdade. E não a Ordem e a Paz, como pensava Hobbes (1651).
Ordem e Paz como fim da política leva á autocracia. A uma atitude monárquico-militar diante da política. Não é a toa que de Bodin a Hegel - passando por Locke, Vico, Montesquieu, Kant e pelo próprio Hobbes - a quase totalidade dos pensadores da política, nos três séculos após Maquiavel, eram favoráveis à monarquia e contrários à democracia.
Mas liberdade como fim da política (com Spinoza) e liberdade como autonomia (com Rousseau) é um fundamento utópico da democracia. E uma idéia que se difunde a partir do movimento profético das revoluções (americana e francesa) do século XVIII. E é o principal componente genético das doutrinas socialistas e anarquistas do século XIX.
2.5. MODERNIDADE NA ANTIGUIDADE E TRADICIONALIDADE NA ATUALIDADE
Não existe, a rigor, uma época histórica a qual se possa denominar "Modernidade", ainda que seja possível estabelecer um paralelo entre os últimos duzentos anos do Ocidente com a Modernidade. Porque foi neste período que o questionamento do paradigma da Tradicionalidade conseguiu desconstituir o modo como a vida social se organizava (na Tradicionalidade).
No entanto, existiu Modernidade na antigüidade, toda a vez que o status da Tradicionalidade foi "quebrado". A recusa de Samuel em organizar Israel como Estado não constitui o único exemplo: a atividade de Sócrates, a revolta de Spartacus e o trabalho de Thomas Munzer foram "momentos" de Modernidade.
Por outro lado, supervivem enclaves de Tradicionalidade "em plena" Modernidade, dos quais o fascismo e o chamado "socialismo real" constituem os mais expressivos exemplos.
2.6. UM EXEMPLO DE SUPERVIVÊNCIA DO PARADIGMA DA TRADICIONALIDADE
Examinando os pressupostos filosóficos e os fundamentos teóricos do chamado "socialismo real", podemos obter uma prova da atuação das matrizes do paradigma da Tradicionalidade "em plena época" da Modernidade, informando, inclusive, a mundivisão daqueles que muitas vezes estiveram identificados com a fundação da Modernidade em termos doutrinários.
2.6.1. O mito
A atitude mítica diante da história gera "filosofias da história". Todas as filosofias da história baseiam-se na idéia de que a história tem um sentido, independente da atribuição humana, ou regressivo, ou progressivo, ou, ainda, cíclico (regressivo ou progressivo). Modernamente predominaram visões progressivas da história. Com Hegel a filosofia da história oferece um fundamento imediato para a política quando enxerga a civilização em evolução através da passagem de uma forma de governo à outra. A última forma, acabada, seria a monarquia constitucional - o momento culminante do desenvolvimento histórico (Hegel, 1821; 1830-31). Com Marx, neste particular super-hegeliano, a história põe-se também um fim - determinado pela progressividade das épocas de formação econômica da sociedade - independentemente da finalidade que possa colocar o agente histórico: o fim é a libertação, alcançada através da revolução - a mudança total do mundo e do homem que (se) muda ao mudar o mundo. Mas o sentido dessa mudança não depende da vontade do homem. Ao mudar o mundo o homem o muda sempre num sentido positivo - no sentido da liberdade (e da abundância) - porquanto é a própria história que possui, imanentemente, esta finalidade.
Nas filosofias progressivas da história, como a marxiana, o homem-espécie está condenado a evoluir (a passar obrigatoriamente de modos de produção menos desenvolvidos para outros mais desenvolvidos). Quer dizer, ele - o agente histórico (no caso de Marx, o proletariado) - não tem a liberdade de atribuir á história uma finalidade diferente daquela que ela já possui, uma vez que isso implicaria em agir inconformemente ao seu ser (Marx, 1844-5). Pelo contrário, ao ser forçado historicamente a agir em conformidade com o seu ser, o sujeito da mudança navega para o porto da história: o reino da liberdade.
2.6.2. O sacerdócio
Para a atitude sacerdotal diante do saber os governados não podem se auto-dirigir porque são ignorantes. Só os sábios - os que possuem o saber - podem fazê-lo. Na Tradicionalidade predomina a atitude sacerdotal diante do saber. Em Platão, o sábio governante é o filósofo, que tem acesso aos universais, que comunga com o reino das essências, da verdadeira realidade, enquanto que os ignorantes governados são os cidadãos que se movem na esfera das (meras) aparências, da doxa (da opinião). Na Idade Média a opinião dos governados é desqualificada pelo saber que possuem os sacerdotes, os homens da Igreja. Eles possuem o monopólio da Revelação, que dá o direito de ungir os representantes temporais da lei divina.
Mas em plena "época" da Modernidade também supervive a matriz sacerdotal. A idéia perversa, baseada no chamado "socialismo científico" e difundida pelo marxismo-leninismo, segundo a qual existe uma política científica, é o exemplo mais acabado de desqualificação da opinião. Segundo esta idéia, só os que possuem a "ciência da história" podem aplicar a "política científica". Logo, só a estes sacerdotes se pode facultar o desempenho das tarefas de governo. Assim, os quadros do partido dirigente no governo realizam o governo dos sábios de Platão. Sua ação política não pode ser questionada pelos governados, uma vez que a opinião destes não passa de ideologia dominante (burguesa) introjetada (Lenin,1902).
Com efeito, a hipótese marxista segundo a qual existe um grupo social cuja satisfação dos próprios interesses emancipada todos os seres humanos, libertando-os dos carecimentos que estão na raiz dos seus interesses particulares, decorre de uma visão mítico-sacerdotal da história e do saber. Na verdade, estes supostos interesses históricos (no caso de Marx e dos marxistas, do proletariado) com vocação de universalidade (isto é, relativos à uma classe cujos particularismos, uma vez satisfeitos, se universalizariam), não passam de interesses atribuídos. Alguma elite (sacerdotal) que possui o saber (da história) é que pode interpretar os interesses (não-imediatos) da classe em questão e que pode levar à esta classe a crença na necessidade (histórica) de que ela desempenhe sua missão (conferida pela própria história). Ou seja: um grupo social tem um papel que não sabe que tem e não pode saber a não ser que os que sabem levem a ele este saber! Eis aqui o resumo da teoria leninista do partido revolucionário, inegavelmente uma ordem sacerdotal. Não é preciso grande esforço para constatar que estamos, sob o influxo desta atitude diante do saber, "em plena" Tradicionalidade.
2.6.3. A hierarquia
A atitude do ser humano diante do poder é a que condiciona, mais diretamente, a sua atitude diante da política. Não é a toa que se considera a teoria política como (uma) parte da teoria do poder. Diante do poder podemos ter, classicamente (i.e., em termos das teorias clássicas do poder), duas atitudes: uma heterônoma, na qual o poder está com o outro; e outra autônoma, na qual o poder está com o (próprio) sujeito. A forma como se estabelecem, na Tradicionalidade, as atitudes heterônomas, é a hierárquica, que distribui os seres por critérios de poder.
Mas a contraposição entre hierarquia e autonomia, promovida pela Modernidade, ainda que tenha conseguido "derrubar" velhos sistemas de poder da Tradicionalidade, não conseguiu evitar a reconstituição desses sistemas, embora, muitas vezes, sob nova roupagem. Basta examinar os sistemas de poder erigidos nas sociedades pós-revolucionárias do presente século - sociedades que foram palcos de movimentos proféticos que almejavam a autonomia - para constatar a supervivência generalizada da matriz hierárquica nas suas instituições, acompanhada, justamente, da ausência, também generalizada, de experiências concretas de autonomia. Existe, porém, um "antecedente" doutrinário que "explica" porque esta atitude de Tradicionalidade acabou prevalecendo no chamado "socialismo real", Pois o socialismo marxista sempre se propôs travar uma luta competitiva pelo poder e nunca uma luta antagônica contra o poder.
Na medida em que contrapôs um ("novo") poder contra outro ("velho") poder - mas ambos semelhantes do ponto de vista estrutural, isto é, ambos hierárquicos (verticais e burocráticos) - a luta socialista acabou reeditando esta matriz de Tradicionalidade diante do poder. Assim, ela preencheu as velhas estruturas de poder da sociedade com novos ocupantes, supostamente representantes da maioria da população, sem desenvolver um novo padrão de organização capaz de superar a velha forma hierárquico-vertical.
Excluindo-se as experiências da "Comuna" (72 dias na Paris de 1871) e dos "sovietes" (alguns meses na Rússia insurrecionada de 1917-18), mais voltadas para a organização estatal, e as teorizações marxistas e leninistas sobre tais ensaios, extremamente fugazes, de implantação de sistemas descentralizados de exercício do poder, não houve muitos progressos teórico-práticos na gestação de uma nova ordem autônoma e democrática. Nesta matéria, sem dúvida, a Modernidade estava com o anarquismo e não com o marxismo!
A tradição socialista e comunista das duas últimas Internacionais desenvolveu experiências profundamente anti-autônomas e anti-democráticas, quer dizer, burocráticas e autoritárias, tanto em relação à organização estatal quanto, principalmente, no tocante à organização partidária. E, mais do que isso, essa tradição forneceu o background para que se erigissem doutrinas com o objetivo de orientar, estimular, justificar e legitimar a construção e a manutenção de estruturas verticais de dominação, o que revela, não há como negar, a supervivência desta matriz hierárquica do paradigma da Tradicionalidade.
2.6.4. A autocracia
Atitude autocrática é aquela que concebe a ordem como fim da política. Ora, a ordem que se mantém no presente é a que se herdou do passado e a que se espera que vá persistir no futuro. Ao invés de fim utópico a ordem constitui, pois, um fim mítico, sobretudo quando se acredita que ela espelha qualquer modo (ou modelo) natural (de organização) inerente à natureza humana, a desígnios extra-humanos ou à própria história.
O "socialismo real" apoia-se justamente nesta visão, segundo a qual a ordem estabelecida pelas "leis da história" deve ser mantida pela política (mas apenas por aquela política praticada ex parte principis, isto é, pelo Partido-Estado) para a sociedade progredir em direção ao bem-supremo representado pelo reino da liberdade e da abundância.
Se em boa parte das visões míticas próprias das teocracias existe uma ordem (estabelecida por Deus ou identificada ao próprio Deus) que preexiste ao mundo manifestado, na ideocracia representada pelo socialismo autocrático estamos sob o influxo da mesma matriz de Tradicionalidade, ainda que, aqui, a "lei de Deus" seja designada por outro nome (como "lei da história").
Como todas as autocracias, o "socialismo real" tem horror ao acaso, ao que não pode ser derivado de um conhecimento prévio da lei. Seus pressupostos ideológicos baseiam-se na idéia de que há sempre uma lei regendo tudo e que, por conseguinte, o que se chama de acaso reflete apenas o desconhecimento da lei num caso específico. Para tal pensamento é mesmo insuportável conviver com a anarquia do mercado e com a imprevisibilidade da política, "instâncias" que teimam em escapar ao planejamento (sacerdotal) do Estado-Partido. E por isso que o socialismo autocrático, como fórmula de Tradicionalidade, abole (ou usurpa da sociedade) tanto o mercado quanto a política, estes dois principais "momentos de liberdade" introduzidos pela Modernidade (concentrando o controle de ambos nas mãos de um protagonista único - o Estado).
Porém, onde não há lugar para o acaso também não há lugar para a liberdade. Pois se existe sempre uma lei regendo tudo, a liberdade do homem não passa de uma liberdade de concordar com a lei, o que - como já se disse - não significa verdadeira liberdade.
Evidentemente a alternativa "socialista real", baseada em tais pressupostos da Tradicionalidade, jamais poderia conviver com a matriz democrática da Modernidade. É por isso que o socialismo só vingou em países considerados pré-modernos. E é por isso que o socialismo realmente existente no presente século constitui, juntamente com o faz cismo, o melhor exemplo de supervivência do paradigma da Tradicionalidade numa "época" de Modernidade.
3. CONTEMPORANEIDADE
O paradigma da Modernidade jamais se realizou como estado alternativo à Tradicionalidade. Não por "insuficiência de Modernidade", porém em virtude da própria natureza do que se chama de Modernidade.
A Modernidade é um movimento para nos libertar da repetição de passado conhecida por Tradição. Mas ao fazer isso, a Modernidade promete um futuro que não se materializa.
A chamada crise da Modernidade é esta irrealização que surge do tensionamento "não-resolvido" com a Tradicionalidade, o qual desconstitui o velho sem, contudo, constituir o novo como alternativa de estado, como outro mundo durável. Esta crise é o nome do percurso entre o que já foi e o que, todavia, ainda não é.
Eis as tensões básicas que geram a crise da Modernidade:
História = |
Mito |
x |
Utopia |
Saber = |
Sacerdócio |
x |
Profecia |
Poder = |
Hierarquia |
x |
Autonomia |
Política = |
Autocracia |
x |
Democracia |
3.1. MITO X UTOPIA
No confronto entre o mito e a utopia, se tomarmos partido da utopia nos libertamos do domínio do passado, mas corremos o risco de ser capturados pelo futuro. Pois a realização utópica é assintótica (Boff, 1971). A pátria da utopia está situada em algum lugar do futuro sempre futuro.
Não é difícil captar o sentido da crise da Modernidade como urna crise da utopia. Não desta ou daquela utopia em particular, mas do "mecanismo da utopia" que nos joga na corrente alucinante que arrasta para o futuro e, por isso mesmo, nos impede de materializar um outro estado do mundo. E assim que todas as utopias (da Modernidade), ao não se realizarem, são "congeladas" em mitos (da Tradicionalidade). Ou seja, a Tradicionalidade acaba supervivendo porque, embora negada, não é superada pela Modernidade.
3.2. SACERDÓCIO X PROFECIA
Na esfera do saber também se enfrentam duas matrizes de mundivisão: a sacerdotal e a profética. Sacerdócio e profecia constituem-se, mutuamente, como pólos de uma relação conflitiva.
Ocorre que, se o sacerdote fala pelo passado, o profeta fala pelo futuro. Ambos não falam por si mesmos, pelo presente.
O profeta é um porta-voz do futuro. Ele não traz o futuro para o presente. Ao possibilitar a relação direta, sem intermediações, do homem com o seu futuro, a profecia faculta ao homem a capacidade de atribuir sentido à sua história. E assim que a profecia inventa a utopia e por ela é inventada. Mas ao não conseguir presentificar o futuro, com o profeta a utopia permanece como utopia, como futuro inatingível, como lugar a que não se chega. Destarte, ao nos libertar das cadeias do passado, a profecia nos entrega ã custódia do futuro.
A visão sacerdotal do saber retira do homem a capacidade de um falar diferente daquele consagrado pelo sistema de sabedoria. A visão profética, embora permita ao homem uma nova fala, não o capacita, ainda a falar-por-si-mesmo. Ambas oferecem falas representantes. Em ambas o homem conduz (porta) ou recebe (concebe) a voz, mas não tem a voz. A voz que tem não é a sua voz. Em ambas a opinião é desqualificada pelo saber que provém ou advém de uma instância que mantém uma exterioridade temporal em relação ao sujeito. Diante do saber sacerdotal ou diante do saber profético, o homem encolhe, recolhe, a sua opinião.
Uma opinião que só pudesse ser justificada pelo futuro (por um projeto - utópico - de futuro) ficaria submetida à inspiração daqueles que são capazes de comungar com este futuro: os portadores da revelação profética. Portanto, se a atitude sacerdotal diante do saber desqualifica a opinião, também não a qualifica - como substância da política - à atitude profética.
Embora necessária na criação de futuro, a atitude profética não pode constituir, por si só, uma nova política (para o presente) na medida em que, na profecia, a utopia não se realiza. E por isso que os grandes movimentos proféticos da modernidade - como os movimentos revolucionários libertários - ao serem capazes de anunciar um amanhã melhor mas, em geral, incapazes de construir efetivamente um hoje melhor, promovem um "salto de qualidade" nas visões de mundo, apontando (novas) finalidades (éticas) para a política, mas não oferecem um novo modo de fazer política, ou seja, não modificam o meio da política enquanto atividade capaz de construir um outro mundo estável. Em virtude disso, todos esses movimentos têm um destino mais ou menos comum: a utopia que anunciam é "congelada" no mito; e os profetas que anunciam a utopia são sucedidos pelos sacerdotes que a codificam e transformam em doutrina.
Já se disse que "todo intelectual busca uma nova ideologia, esperando tomar-se um outro Marx que possa inspirar um Lenin melhor..." (Thompson, 1987). Mas o problema não está propriamente em Lenin e sim na "lógica" que fez o Lenin-sacerdote substituir o Marx-profeta! No "mecanismo' que fez a Tradicionalidade não-superada reinstalar-se após cada "momento" de Modernidade.
3.3. HIERARQUIA X AUTONOMIA
Tanto a hierarquia quanto a autonomia são atitudes que se constituem dentro da mesma "lógica do poder". Pois a autonomia é também um poder, sobretudo quando se refere a coletividades, haja vista que a capacidade de autodireção pressupõe, substantivamente, tanto a posse dos meios para obter alguma coisa ou produzir os efeitos desejados (Hobbes, 1651 1 Russel, 1938), quanto, subjetivamente, uma vez que não pode deixar de ser uma capacidade do sujeito de obter certos efeitos (Locke, 1694). Mas ainda do ponto de vista relacional (DahI, 1963), a autonomia se revela como um poder na medida em que na relação ente dois sujeitos coletivos autônomos não se pode afirmar uma coincidência permanente de interesses e perspectivas. E assim, quando se dá a incoincidência, um dos sujeitos pode ser compelido, por sua própria razão, a obter da outro um comportamento que não advém necessariamente da vontade ou liberdade de escolha deste outro. Neste caso, a não-liberdade de um é implicada pelo poder do outro.
Ambas, hierarquia e autonomia, pressupõem, portanto, um poder: sobre o outro ou sobre si mesmo (o que eqüivale a um poder para evitar ou se subtrair ao poder do outro, pelo menos enquanto não estiver plenamente instalado o "reino da liberdade").
Com efeito, a autonomia só deixa de ser um poder quando se universaliza. Mas aí ela pressupõe, no limite, a possibilidade de que cada ser possa ser-sem os demais. Um mundo onde, rigorosamente, todos se auto-governam, é um mundo de seres auto-suficientes, micro-deuses nas suas esferas de existência. Não um mundo unificado por comum-humanização, mas pulverizado por auto-capacítação.
A atitude-matriz de autonomia em relação ao poder, que compõe o paradigma da Modernidade, tensiona com a atitude hierárquica mas não a supera urna vez que só seria realizável, quebrando a "lógica do poder", num inatingível "reino (universal) da liberdade".
3.4. AUTOCRACIA X DEMOCRACIA
A democracia como auto-governo é o modo que se relaciona á concepção de autonomia como "definição" de liberdade, O problema é que a liberdade é um fim inatingível. O reino da liberdade pressupõe um "fim dos tempos" situado num futuro sempre futuro, ou o fim da história.
Pode-se dizer que quando optamos pela democracia ideal contra a autocracia, fazemos uma opção ética, que pressupõe unia definição teleológica e prescritiva da política: a boa política é a democrática porque é a que leva a mais liberdade. Perseguimos então uma utopia: a utopia da Liberdade. E imaginamos que a democracia é o modo de realizar, no campo da política, o valor, julgado supremo, da liberdade. Trata-se, porém, de uma realização assintótica: a pátria da liberdade é como a estrela polar dos navegantes. Pode orientar a jornada, mas a ela praticamente nunca se chega. Assim, o fim da democracia ideal não é o presente, mas o futuro. Pois que nunca estarão esgotadas todas as possibilidades de liberdade de um coletivo humano.
Quando se fala da finalidade da democracia, fala-se de um futuro. E uma fala pelo futuro, um anúncio profético, uma ante-visão da fé. A democracia ideal não é, no que tange aos seus fins, um regime presentificável.
Além disso, a tradução do ideal de liberdade como autonomia, que fundamenta a idéia de democracia como auto-governo, não inclui a dimensão do outro, pressupondo, no limite, a possibilidade de um ser-sem os demais.
Quando homens se relacionam sob o ideal da liberdade, com o fito de não se submeterem a governo exógeno, eles o fazem do ponto de vista de si próprios, evidentemente de seus interesses. O que mantém no futuro as possibilidades de constituição da humanidade-de-todos-os-homens, uma vez que isto só ocorreria quando todos estivessem plenamente livres, inclusive dos carecimentos que estão na raiz de seus interesses.
Destarte, a atitude-matriz democrática, que funda a Modernidade em termos políticos, inspira um regime impresentificável. Não é por acaso que o que se chama hoje em dia de "democracia", pouco tem a ver com este "modelo" ideal que se opôs à autocracia. Pois o que se chama na atualidade de "democracias" são as repúblicas ou os governos representativos. Tratam-se de "democracias" resignadas a ser - em virtude dos obstáculos apresentados pela extensão e complexidade dos Estados contemporâneos - regimes menos-autocráticos possíveis, mas não de regimes que superaram a autocracia!
A democracia realmente existente constitui-se, então, como um modo de exercer o poder político e uma forma de governo permeada por enclaves sacerdotais (de Tradicionalidade): especialistas de representação política (que dominam as "técnicas" eleitorais, não somente as normas mas os procedimentos que tendem a garantir a eleição e a reeleição de mandatários) e especialistas de execução política (que dominam as "técnicas" legislativas, executivas e judiciárias). O exemplo mais flagrante encontra-se precisamente no aparato jurídico do Estado moderno, A legitimidade dos Tribunais (que continuam, estranhamente, sendo chamados de cortes nas democracias!) provém do suposto ou efetivo saber jurídico de seus integrantes. Em alguns países existe inclusive uma "Suprema Corte", a quem a própria Constituição delega o poder de interpretar a Lei soberanamente, o que significa nada menos do que a legitimação (legal) para o exercício de um poder autocrático. Da mesma forma, são autocráticas a quase totalidade das instituições, mecanismos e procedimentos da burocracia estatal, para não falar do status ainda mantido pelas forças armadas.
Assim, no interior de um regime cuja finalidade seria realizar, no campo da política, o valor supremo da liberdade - se considerarmos sua justificação doutrinária - predominam institutos cuja finalidade última é manter a ordem. Ou seja, predomina o que chamamos de atitude monárquico-militar diante da política, que é uma matriz do paradigma da Tradicionalidade. De sorte que o modelo utópico de democracia ideal da Modernidade jamais se materializou realmente. E entrou em crise de projeto a própria política da Modernidade, já que baseada numa idéia irrealizável de futuro.
3.5. CONTEMFQRANEIDADE
Chamamos de Contemporaneidade a tudo o que realiza antecipatonamente, no presente, o futuro que é desejado-imaginado como superação da crise da Modernidade e que constitui, na verdade, a superação da Tradicionalidade. Pois a crise da Modernidade é, justamente, a sua incapacidade para superar a Tradicionalidade.
Diante da crise da Modernidade afiguram-se três possibilidades básicas (como alternativas ao caos, à barbárie e à decomposição do tecido social): voltar à Tradicionalidade, recuperar a Modernidade ou assumir a Contemporaneidade. Dentre estas somente a terceira possibilidade aponta para uma efetiva superação da crise, pois que é a solução do próprio tensionamento entre Tradicionalidade e Modernidade.
Pode-se considerar que o paradigma da Contemporaneidade emerge quando a Modernidade é realizada. E somente quando a negação da Tradicionalidade é realizada que se supera a Tradicionalidade. Mas isso implica na negação da Modernidade como promessa de futuro, ou seja, na sua presentificação.
De sorte que nos sintonizamos com a Contemporaneidade toda a vez que apostamos nas tendências de superação que surgem nas crises da Modernidade. Estas tendências apontam para a realização antecipatória da utopia, para a ultrapassagem dos limites da profecia, para a prática da colaboração como um contra-poder e para a radicalização da democracia.
O paradigma da Contemporaneidade poderia ser representado pelo seguinte sistema de atitudes-matrizes:
História = |
Realizando antecipatoriamente a Utopia |
Saber = |
Ultrapassando os limites da Profecia |
Poder = |
Praticando a Colaboração |
Política = |
Radicalizando a Democracia |
3.5.1. Realizando a Utopia
Para "escapar" desta alienação do presente que se chama utopia, outro remédio não há senão "resistir' ao futuro. Quer dizer: realizar antecipatoriamente, no presente, o sonho do Reino que não se materializa em lugar algum.
Poderíamos chamar esta realização antecipatória de "topia". E onde o não-lugar (u-topos) vira lugar (topos).
No que concerne à atitude do homem diante da história, a opção pela utopia no seu confronto com o mito só "produz" um novo estado do mundo se a própria utopia for negada como tal, ou seja, como um não-lugar do futuro, para tornar-se realização localizada no presente (topia).
A crise da matriz utópica da Modernidade só será solucionada com esta "volta ao presente", que significa viver de acordo com o objetivo, realizando localmente, como topia, o futuro imaginado-desejado globalmente como utopia. Não se trata, pois, de ficar esperando pelo futuro para realizar o sonho: o que não for feito aqui-e-agora não cria outro mundo, ou seja, não existe como novo estado concreto.
Juntamente com a "volta ao presente", a "volta ao local" é uma das tendências de superação que estão surgindo da crise da Modernidade, O poder local, o governo para as peculiaridades, a co-decisão, o trabalho local, a produção local de energia e alimentos, com emprego de tecnologia apropriada e com resposta socio-ambiental compensadora, constituem "sinais da presença" da Contemporaneidade na medida em que - envolvendo um pensar globalmente para agir localmente - exigem uma imaginação do futuro para uma atuação no presente.
3.5.2. Ultrapassando a Profecia
Existem limites para a profecia. Estabelecida em oposição ao sistema mítico-sacerdotal-hierárquico-autocrático da Tradicionalidade, a profecia não consegue superar a contradição na qual está envolvida pelo fato de constituir um dos seus pólos. Os profetas que sempre surgem no inicio das grandes transformações sócio-culturais tendem a desaparecer com o desenvolvimento das novas instituições que se erigem após a sua atividade, dando lugar a uma burocracia sacerdotal que passa a fazer tencionar estas instituições.
A profecia não consegue, por si só, superar o ciclo fatídico que desencadeia. Ela inaugura a utopia. Mas com a institucionalização da mudança anunciada pela profecia, a utopia se "congela" no mito. O mito, por sua vez, é mantido pelo rito e conduzido pela tradição. Esta tradição só é modificada por uma nova profecia que "descongela" a utopia inicial e a transforma numa nova utopia, o que reinicia o ciclo "sobre o mesmo plano"; ou seja: temos sempre Tradicionalidade sucedendo Modernidade.
Neste processo, a profecia está todavia em desvantagem, uma vez que sua aparição é episódica: o novo é anunciado abertamente apenas nos períodos de mudança enquanto que o velho é mantido pela repetição durante todo o restante do tempo. De sorte que é o velho que se realiza como status enquanto que o novo permanece somente como processus. Não se trata, porém, apenas de uma exigência "funcional" de estabilidade do instituído. A manutenção do status quo - material e espiritual - passa a ser um imperativo para aqueles que, de certa forma, vivem nele (e dele). E assim que os sacerdotes assumem, como "cavaleiros da Tradição", a tarefa de evitar o surgimento de tudo o que possa alterar a situação estabelecida.
Para sair do plano onde se desenvolve o ciclo profecia-utopia-mito-rito-tradição, é necessário ultrapassar os limites da profecia. Ultrapassar os limites da profecia é realizá-la, ou seja, realizar a utopia que ela anuncia como experiência-de-vida, transformando, num sentido antecipatório (do futuro), utopia em topia.
A tragédia dos profetas consiste em falar pelo futuro sem conseguir antecipar este futuro. Para presentificar o futuro, para que a utopia deixe de permanecer como utopia, é necessário habitar totalmente o presente, falando-por-si-mesmo, o que está além do limite da profecia.
A luta ente o passado (do mito conduzido pela Tradição) e o futuro (da utopia inspirada pela Revelação) embora vitime constantemente os profetas, não tem fim, O fim só aparece no presente, ou seja, quando o futuro se faz presente. Trata-se de um "fim dos tempos", de uma dimensão escatológica propriamente dita - que constitui a característica fundamental da Contemporaneidade - mas não de um fim da história, de uma intervenção extra-histórica do futuro no presente, como é próprio das escatologias míticas da Tradicionalidade. Nessa escatologia de "volta ao presente", a história não acaba e os seres humanos não são despojados da sua capacidade de construí-Ia. Pelo contrário, é a partir daí que obtêm um sinal claro de que é possível inventar a história concebendo-a como um campo aberto ao que virá (se o futuro almejado for construído no presente). O "fim dos tempos", nessa escatologia da Contemporaneidade, é o fim da sucessão temporal que empurra o futuro sempre para depois do presente. E que significa, portanto, a superação da contradição entre a repetição de passado e a perseguição de um futuro sempre futuro (que só seria realizado num reinado messiânico inatingível pelos esforços humanos). "Fim dos tempos" é, assim, fim da espera (messiânica, no sentido judaico do termo e não no sentido cristológico dos primeiros cristãos) por alguma coisa que está fora da condição humana. Ao colocar a escatologia dentro da utopia a Contemporaneidade "resolve" uma contradição sem solução nos marcos da Modernidade. Ou seja, a utopia deixa de ser um fim inalcançável (ou só alcançável assintoticamente) pelo homem e a escatologia deixa de ser um fim que sobrevem independentemente da vontade humana. A utopia continua, mas já se faz presente!
Ao contrário do profeta que, falando pelo futuro, apenas aponta um caminho para o futuro, aquele que ultrapassa a profecia, falando-por-si-mesmo, antecipa futuro e, assim, o realiza. Mas o realiza antecipatoriamente, ou seja, não termina a história. Sua escatologia é uma finalidade, não uma terminatividade.
Por certo, a história não tem uma finalidade em si, imanente, ou atribuída por alguma instância extra-histórica, transcendente, como ocorre nas mundivisões míticas. Mas a história pode ter urna finalidade se os homens atribuírem a ela esta finalidade. E toda a vez que se realiza, como topia, no presente, o sonho, utópico, do mundo futuro, a finalidade da história está sendo realizada e está surgindo, concretamente, o outro mundo que a Modernidade é incapaz de inaugurar. Isso é o que se chama de Contemporaneidade.
3.5.3. Praticando a Colaboração
Na hierarquia, o sujeito está sempre submetido ao poder (de um outro) e submete, por sua vez, algum outro ao seu poder (tomando-se um potencial inimigo para este, enquanto alguém que lhe retira poder). Na autonomia, que surge como uma reação profética à hierarquia, persegue-se, entretanto, a libertação do poder do outro. De sorte que, em ambas as atitudes, o outro é visto como um potencial inimigo. Ou seja, ambas as matrizes se constituem dentro da mesma "lógica do poder".
Para quebrar o que chamamos de "lógica do poder" seda necessário efetivar unia relação na qual o próprio poder deixasse de existir enquanto tal. Uma relação que decorresse, portanto, não de uma outra atitude de poder, mas de uma (nova) atitude de contra-poder (no sentido de não-poder, de serviço prestado, gratuita e voluntariamente, ao outro: uma relação entre sujeitos que não implicas-se na não-liberdade de algum dos sujeitos, tal como se caracteriza, do ponto de vista relacional, a relação de poder).
Na colaboração ou serviço-mútuo manifesta-se um contra-poder no sentido acima, isto é, não como oposição a um poder determinado, mas como recusa ao poder enquanto forma de relacio-namento que implica na não-liberdade de algum ou alguns dos sujeitos.
A colaboração pressupõe, assim, a aceitação do outro como um outro-eu-mesmo, o que eqüivale à consciência de que "sem o outro eu não-sou". Pois enquanto a hierarquia é uma cristalização do poder-que-separa-do-outro e a autonomia é uma projeção ideal de uma situação na qual cada um possa ser-livre-do-outro (do poder do outro), somente a colaboração ou serviço-mútuo reflete uma atitude na qual só se pode ser-com-o-outro.
Todavia, o serviço-mútuo dos homens só pode ser obtido se houver uma "razão" para tanto, capaz de fazer sujeitos renunciarem a seus interesses ou relevarem suas opiniões. Esta "razão" que sobrepassa particularismos não pode derivar de um saber como crença. Pois neste caso Seria o saber de alguns, oposto à ignorância dos outros e, assim, seda, ainda, um poder (de alguns). Não pode ser uma ideologia na qual todos acreditem, uma vez que isto seria uma eliminação das diferenças, uma uniformização do pensamento que pressupõe um foco irradiador (e um polo uniformizador) e, portanto, também um poder. Uma nova atitude diante do poder que se opusesse às separações estabelecidas pela hierarquia mas exigisse a preservação das diferenças (da "antropo-diversidade social') só pode ser concebida como uma "ecologia de diferenças coligadas" (Thompson, 1987). Uma ecologia de diferenças coligadas, ao contrário da crença de todos numa (mesma) doutrina, como presssupõe a idéia de unidade ideológica, seria uma (outra) maneira de pensar, para a qual os opostos são inerentes e a oposição é essencial. Uma maneira de pensar na qual a verdade não é contida por nenhuma ideologia, posto que isso pressuporia alguma elite (sacerdotal ou profética) portadora da verdade com a função de infundir (Engeis, 1877) ou transfundir (Kautsky, 1901 1 Lenin, 1902) sua consciência (identificada ao conhecimento desta ideologia) para os demais. Sob este ponto de vista os diferentes, os opostos e, consequentemente, os conflitos, seriam tomados como necessários para que a verdade (do ser) pudesse emergir no lugar da "falsa consciência" (do saber). Pois é quando o saber (que é sempre o saber de alguns) cede lugar ao ser (de todos) ou à vida comum dos homens no mundo, que o sentimento compartilhante que inspira a colaboração se estabelece.
A colaboração ou serviço-mútuo é a única possibilidade de superação da matriz hierárquica da Tradicionalidade, uma vez que a autonomia, como já assinalamos, só realiza a liberdade como não-poder num reino futuro, por definição inalcançável. Pois não é uma futura sociedade utópica de liberdade que liberta o homem. Nem mesmo a luta pela construção dessa sociedade (futura). São as ações presentes de "criação" de mais-liberdade que libertam o homem e não as ações que, concretamente, o não-libertam hoje em nome de uma liberdade que só virá amanhã.
Por outro lado, se libertar-se é colocar-se fora da "lógica do poder", isto é, da relação de poder com o outro, isso significa que é o estar-com-o-outro, numa relação de contra-poder, ou seja, de colaboração, que "cria" mais-liberdade e não o estar-livre-do-outro numa relação de autonomia.
Assim, enquanto a autonomia pressupõe um acúmulo de poder" visando uma libertação futura, a colaboração pressupõe uma renúncia presente a exercer ou "acumular poder" que constitui mais-liberdade.
Ao contrário do fim utópico perseguido pela autonomia, a colaboração sempre pode ser praticada "topicamente", em qualquer tempo e lugar. E uma opção do presente que, como tal, está gerando uma das atitudes-matrizes do paradigma da Contemporaneidade: a matriz anti-hierárquica e não-autônoma mas holônoma diante do poder.
As experiências concretas de colaboração - entre países, instituições, grupos ou pessoas - cuja incidência vem se tomando cada vez mais freqüente na alta Modernidade do mundo atual, revelam esta tendência de superação da Modernidade, apontando uma solução para a crise da matriz autônoma e constituindo, portanto, mais um "sinal da presença" da Contemporaneidade. No piano das formas de organização estes "sinais" de Contemporaneidade também surgem, com a proliferação das redes de conexões (networks), que exprimem a emergência de novas formas de gestão e de relacionamento social e político, tomando inadequados os modelos piramidais e burocráticos - ou seja, hierárquicos - das organizações tradicionais. Conectadas por elos horizontais, unidas por valores compartilhados e não pela dominação centralizada de um chefe ou de uma burocracia permanente, as redes vão materializando uma nova estrutura orgânica, capaz de viabilizar a prática da colaboração como um contra-poder. Os segmentos que compõem as redes não são dependentes (como "força" a matriz hierárquica da Tradicionalidade), nem independentes (como quer a matriz de autonomia da Modernidade), porém interdependentes (como exige a prática da colaboração que está gerando esta nova matriz de holonomia da Contemporaneidade).
3.5.4. Radicalizando a Democracia
Anunciada profeticamente pelos teóricos da liberdade e pelas revoluções (americana e francesa) como um meio de realizar politicamente a liberdade, a democracia encontra-se nos grandes Estados democráticos de hoje consumida por problemas de governabilidade autocrática: de como manter a ordem pública nas relações internas e a defesa da integridade nacional nas relações com outros Estados diante das tensões que a dilaceram (entre o representativo e o direto, o político e o social, o formal e o substancial).
Ocorre que a "democracia realmente existente" não consegue se livrar deste dilaceramento provocado pelas dicotomias entre o representativo e o direto, o político e o social, o formal e o substancial. A tal ponto que se fala em corrigir "defeitos" da representação, estabelecendo institutos de democracia direta. Se discute até quando é possível manter um Estado democrático numa sociedade não democrática (isto é, sem democracia social). E se afirma que um regime democrático, ao mesmo tempo formal e substancial, "pertence ao gênero dos futuríveis" (Bobbio, 1985).
Assim, a democracia está em crise e esta crise se manifesta como uma crise do ideal democrático, dos regimes democráticos - em geral incapazes de promover efetivamente a igualdade de direitos e oportunidades e incapazes de democratizar a sociedade e a própria política - e, ainda, do pensamento democrático que, ao assumir o papel justificatório dos limites das "democracias viáveis", transforma-se num pensamento conservador.
Com efeito, o pensamento democrático, que era originalmente um pensamento inovador, acabou virando, na atualidade, um pensamento conservador, uma espécie de efluxo do paradigma da Tradicionalidade. A democracia passou a ser encarada, no trato cotidiano da política, como a "lei do mais forte", com a diferença de que, agora, no lugar da força das armas, do dinheiro ou do saber, a legitimação da dominação e a própria dominação baseiam-se na força do número de votos. E a própria política democrática passou a ser concebida (e praticada), "realisticamente", como a "arte" de conquistar, exercer e manter o poder segundo certas regras (representativo-político-formais) absolvedoras da culpa pelo seu exercício quase que exclusivamente ex parte principis.
De sorte que, a rigor, a autocracia não conseguiu ser superada pela democracia, aí residindo o fulcro da crise desta última na Modernidade.
Porém não são poucos os "sinais" de Contemporaneidade que estão surgindo como tendências de superação desta crise da matriz democrática da Modernidade. Dentre estes, poderíamos assinalar:
a consciência, "em expansão", de que não é possível tomar um atalho autocrático para uma sociedade democrática, ou seja, de que a democracia é, simultaneamente, meio e fim, constituindo-se, portanto, como uma alternativa de presente e não apenas como modelo utópico de futura sociedade ideal; | |
o aumento da diversidade, da organização, da conectividade e, consequentemente, da complexidade social na alta Modernidade em crise, que está causando a crescente e acelerada formação de minorias (e acarretando o fato de que os múltiplos grupos minoritários que compõem a sociedade atual não possam mais se expressar, enquanto sujeitos políticos, nas "democracias reais", que extraem sua legitimidade da relação entre uma minoria de fato governante e a maioria massificada governada); | |
o vertiginoso desenvolvimento tecnológico nas áreas de comunicação e informação, que vai fornecendo o suporte material para uma volta da ágora - agora eletrônica - em vários níveis, descentralizando inclusive o poder de decidir, o que constitui uma das formas de viabilizar a co-decisão da sociedade nos assuntos de governo. |
Estes "sinais" apontam para uma radicalização da democracia, entendida esta como uma superação do modelo utópico de democracia ideal, um tensionamento dos limites das democracias "realmente existentes" e uma ruptura com as visões que as sustentam como única forma possível de democracia nas condições da atualidade.
Do ponto de vista da radicalização da democracia, a democratização da sociedade só é possível através da democratização da própria política. Do contrário caberia a "alguém" democratizar a sociedade para e pela sociedade, o que contradiz o objetivo de democratização da sociedade. Pois democratização pressupõe exercício democrático, participação democrática e, por conseguinte, constituição de novos sujeitos democráticos, o que só é possível no interior mesmo de um processo democrático.
Mas a radicalização da democracia pressupõe, também, uma nova visão da política. Nesta perspectiva, a política apresenta outras dimensões - para além daquela de "ciência do estrategista", vigente na Tradicionalidade - relativas à comum-condução da polis, à "arte do tecelão", que trama o tecido social de modo a possibilitar a interação construtiva da variedade de opiniões e interesses dos múltiplos sujeitos que compõem a sociedade. Desse ponto de vista não é necessário conquistar hegemonia, seja esta entendida como comando ou como infusão ideológica, para implementar um projeto político. A sociedade não precisa ser dominada por alguém ou "ganha" por uma determinada ideologia para que possa se mobilizar no sentido das mudanças sociais. Cabe ao fazer político democratizado, através de múltiplas alianças, a construção de um consenso ativo a respeito de um projeto político de mudanças. Nesta nova visão de política democrática a formação de sistemas cada vez mais complexos de alianças vai ocupando o lugar central do fazer político.
A radicalização da democracia exige, ainda, a subversão do substrato do pensamento democrático-conservador que define a democracia como um regime de maioria. Pois na medida em que as massas forem deixando de ser totalidades indiferenciadas, complexificando a sua estrutura interna e passando da condição de objetos para a de sujeitos políticos, serão as múltiplas minorias que passarão a formar as maiorias. Nestas condições, a democracia transforma-se num regime de minorias, isto é, um modo de regular a interação das opiniões e interesses da variedade de sujeitos interdependentes que constituem um todo social. Evidentemente, isso exige a construção de novas instituições políticas, adequadas à participação dos novos sujeitos emergentes. Os sistemas eleitoral e partidário devem ser radicalmente modificados para se ajustarem à nova realidade. E a própria concepção atual de representação política deve ser questionada e alterada.
Por último, a radicalização da democracia exige a subversão da idéia conservadora segundo a qual uma democracia cada vez mais participativa é impossível nos grandes Estados. Segundo esta premissa, existe uma impossibilidade prática para qualquer sistema democrático que não seja o representativo. Mas na medida em que a política se democratiza e mais sujeitos políticos vão se efetivando na sociedade, mais a crise - de legitimidade, de credibilidade, de eficiência e de eficácia - da representação se agrava e mais se fortalece a idéia de combinar a representação com a participação. Não para "corrigir os defeitos" da representação, mas para criar um novo tipo de sistema combinado. Como é óbvio, aqui também se exige novas instituições de participação e novos procedimentos de decisão, construídos e implantados a partir de redes horizontais e não mais apenas de organizações burocráticas verticais.
Examinando as tendências de superação apresentadas acima não é difícil perceber que ao radicalizar a democracia está se gerando uma nova atitude diante da política, capaz de superar a atitude autocrática da Tradicionalidade, porque é capaz de fazer aquilo que a matriz democrática da Modernidade não conseguiu: inaugurar um novo estudo de relacionamento político no mundo presente dos homens.
3.6. PASSANDO PELO FUTURO
Segundo o esquema interpretativo aqui proposto a Contemporaneidade é um acercar-se do presente. Sob este ponto de vista o futuro "vem antes" do presente:
Passado ------------------------------- Futuro ------------------------------------ Presente
Assim, não caminhamos para o futuro, porém no sentido de nos tornarmos, cada vez mais, contemporâneos do presente. De nos livrar-nos do "poder do mito" e da "alienação da utopia".
É da tensão entre passado e futuro que se produz o presente; por uma realização do futuro nasce o presente. Mas também por uma negação do passado.
Portanto, não é o passado que "produz" o presente, mas o futuro, que se contrapõe ao passado e se realiza como presente. Sem uma idéia de futuro que se contraponha ao passado não há presente, mas repetição de passado.
Para viver totalmente no presente é preciso, antes, "comungar" com o futuro, "passar" pelo futuro.
Por outro lado, realizar o futuro como presente é também negá-lo como modo-de-ser do impresentificável. Mas ao negar a negação impresentificável do passado afirmamos passado para superá-lo. Por isso, pode-se dizer que o novo paradigma emergente, capaz de se realizar como novo estado do mundo, não é o da Modernidade, mas o da Contemporaneidade. Pois enquanto a Modernidade nega a Tradicionalidade mas não se realiza, é a Contemporaneidade que realiza a negação da Tradicionalidade e, portanto, a supera como outro estado, como novo mundo:
Tradicionalidade ------------------- Modernidade ------------------Contemporaneidade
A Contemporaneidade também não é uma época histórica. Existe Contemporaneidade no mundo toda a vez que a Tradicionaldade é superada ou que a Modernidade é realizada.
Entretanto, assim como se estabelece um paralelo histórico entre a Modernidade e os últimos dois séculos do Ocidente e entre a Tradicionalidade e a antigüidade, pode-se admitir que a "Nova Era" tão aguardada para o próximo milênio seja a "época" da Contemporaneidade.
Nada está predeterminado entretanto. A "marca" do momento atual é a da fragmentação dos mundos possíveis: a crise da Modernidade pode desconstituir o mundo atual, degenerando o tecido social ou instalando o caos ou a barbárie. Também pode nos conduzir para "algum lugar do passado" (no retorno à Tradicionalidade) ou pode, em sentido contrário, nos levar "de volta para o futuro" (nas tentativas de recuperação da Modernidade). Todavia, só haverá uma outra era, realmente "nova", se, passando pelo futuro, nos tornarmos, cada vez mais, contemporâneos do nosso presente. Isso é o que significa assumir a Contemporaneidade, ou seja, apostar nas tendências de superação que brotam do interior da Modernidade em crise. (SETEMBRO, 1993)
REFERÊNCIAS: Bobbio, 1985: "Estado, Governo, Sociedade. Para uma Teoria Geral da Política" / Kelsen, 1945: "Teoria Geral do Direito e do Estado" / Hertzler, 1923: "The History of Utopian Thought" / Gottwald, 1975: "As Tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto, 1250-1050 a.C." / Baeck, 1958: "Judaism and Christianity" Fromm, 1966: "O Espírito de Liberdade" / Bloch,1968: "El Ateismo en ei Cristianismo" / Rousseau, 1762: "O Contrato Social" / Spinoza, 1670: "Tratado Teológico-Politico" / Hobbes, 1651: "O Leviatã" / Hegel, 1821: "Princípios da Filosofia do Direito" / Hegel, 1830-31: "Lições sobre a Filosofia da História" / Marx, 1844-45: "A Sagrada Família" / Lenin, 1902: "O Que Fazer?" / Boff, 1971: "Jesus Cristo Libertador" / Thompson, 1987: `Gaia e a Política da Vida" / Russeil, 1938: "Power. A New Social Analysis" / Locke, 1694: "Um ensaio sobre o entendimento humano" / Dahl, 1963: "Análise Política Moderna" / Engeis, 1877: "Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico" / Kautsky, 1901: "Die Revision des Programm der Sozialdemokratie in Oesterreich" (cit. por Lenin, op. cit.).
Reproduzido de: FRANCO, Augusto: Ação Local: A Nova Política da Contemporaneidade. Ágora e Instituto de Política/Brasília; FASE/Rio de Janeiro; 1995.