AS TRÊS PRAXIOLOGIAS DA UTOPIA COMUNISTA E SUAS IMPLICAÇÕES NA INSTRUMENTALIZAÇÃO DO MOVIMENTO SOCIALISTA*
por Eduardo Dutra Aydos**
O conteúdo eminentemente utópico da concepção marxista da história - como negação radical do modo de produção capitalista, visualizado como fonte de males e de destruição - desdobra-se nas suas propostas pedagógica, terapêutica e tecnológica.Em obra de cativante apelo social, Marx denunciou as mazelas de uma sociedade, que promoveu a marginalização de um extenso segmento social, ao quais oferecia a capacidade de se reconhecer, no conteúdo dessa mesma denúncia, como o grande contingente dos excluídos de todos os benefícios do processo civilizatório - disso que emergia a formação histórica, do que passou a designar como a consciência comunista. Sua expressão histórica remete ao movimento socialista, como afirmação daquilo que a crítica nietzschiana designou como vontade de potência... - e que na acepção da dialética marxista torna-se capaz de resolver a quantidade (no comportamento das massas humanas)... em qualidade, e assim, da mesma forma, decidir que um particular (a classe operária)... é também o universal. Como, nesse discurso e nessa prática, não há como antecipar qual será, afinal, desde um determinado estado da quantidade e do particular, o sentido da qualidade ou do universal que, por transmutação da sua própria essência, ganha existência concreta; e como, por isso mesmo, não é possível antecipar as condições da sua validação, a sucessão histórica das manifestações do Ser, como essência desvelada e totalidade vivida desse "universal" humano, torna-se, por isso mesmo, absolutamente contingente e arbitrária... dogmática e irreflexiva!
PRAXIOLOGIA DA VIOLÊNCIA: A teoria marxista atualiza essa vontade de potência pelos vetores funcionais da LUTA DE CLASSES e do ESTADO. A História, nessa perspectiva, se reduz à dinâmica: de um permanente conflito, em que se antagonizam as classes sociais: e, de uma forma estatal que serve tão somente para cristalizar e institucionalizar o sucesso de uma(s) em detrimento de outra(s). A posição assumida por Marx, neste contexto, ao invés de oferecer uma perspectiva de solução às contradições, que analisa em profundidade e extensão inéditas, prefere suprimi-las. E, bem ao contrário do que se poderia supor, dado o lastreamento histórico e sociológico de sua análise, Marx propugna essa supressão em bases de uma estratégia eminentemente psicologista. O comunismo é postulado em "A Ideologia Alemã", como uma proposta nitidamente pedagógica, primordialmente orientada à reeducação das massas pela experiência da revolução - cuja função, estratégica, antes da própria satisfação material das necessidades humanas, será a transformação dos homens, que deverão produzir esse momento privilegiado da História. E, na medida em que a pedagogia do comunismo é a revolução, e que a revolução é parturiente das suas próprias e particulares razões de ser, como um ato de fundação de uma nova ordem, cujo único argumento se constitui na sua própria força, clarifica-se o apelo marxista à violência, como o instrumento, por excelência, de conformação da consciência-Humanidade. A saga do socialismo real, que está associada à repressão do pensamento e ao desrespeito à autonomia da consciência individual, não se constitui, por isso mesmo, num acidente histórico, mas numa determinação construída pela sua própria vontade, enquanto movimento social, como derivação lógica da sua própria ideologia.
PRAXIOLOGIA DO HEGEMONISMO: A abordagem marxista da DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO, é demarcada pela sua particular concepção do DIREITO e da IDEOLOGIA. Ao primeiro destes dois conceitos e respectivas instituições, reserva o estatuto de mera cristalização da dominação política na sociedade; e, ao segundo, atribui função de reprodução dessa mesma dominação, inclusive, mediante a sua instrumentalização - como ditadura do proletariado - na tentativa de supressão das contradições subjacentes à diferenciação das forças produtivas (que é produto da divisão social do trabalho). Clarifica-se, destarte, a condição terapêutica embutida na concepção marxista da História, quando a solução final destas contradições, representada pelo comunismo é, não obstante, inteiramente conseqüente com os métodos e a prática mais tradicionais da dominação política na sociedade de classes. A produção da mudança, no escopo da militância marxista, é operada pela sua obstinação na implantação de uma ordem e dos mecanismos de sua reprodução, destinados a assegurar vigência e estabilidade à transformação em massa dos homens, operada pela pedagogia da violência. A saga do socialismo real, por sua vez, constitui-se na condição tática dessa determinação teórica. Na sua esteira, a ideologia marxista comanda a organização da vida em sociedade e nisso submete o direito: o particularismo de sua crítica social, reivindica a condição de um universal concreto, desaguando no estuário dos corporativismos de toda a espécie; e o sectarismo de uma identidade excludente, força passagem no regramento burocrático do intercâmbio social.
PRAXIOLOGIA DO DESENVOLVIMENTISMO: Além do recurso à violência e da sua prática hegemonista, a concepção marxista da História paga tributo ao cientificismo desenvolvimentista que modulou o processo da modernidade. No seu particular enfoque do INTERCÃMBIO NATURAL ENTRE OS INDIVÍDUOS, focaliza-se a capacidade de transformação da própria natureza e o potencial reprodutivo da espécie humana: de um lado, o TRABALHO (como capacidade de transformação do mundo natural e, assim, também, princípio de produção e acumulação de poder); e, de outro, a EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA (que promove a visibilidade das relações de produção e a emergência das forças produtiva). Reconhecidas, essas determinantes tecnológicas, como vetores do processo civilizatório e identificadas como foco persistente das suas contradições, não obstante, restam acriticamente instrumentalizadas pelas premissas estratégica e tática da concepção marxista da História. A praxiologia da violência, privilegia, no enfoque da categoria do trabalho, uma condenação: que submete as classes dominadas ao tributo da sua mais-valia; e a praxiologia do hegemonismo focaliza na explosão demográfica, como reprodução da miséria, o estopim da revolução destinada à libertação dos explorados no processo civilizatório. Como conseqüência, o valor trabalho, nessa concepção da História, desloca-se da sua finalidade primordial - que é a apropriação das condições de produção da própria vida, como satisfação das necessidades humanas - para configurar-se em princípio de identidade, que articula o interesse dos "excluídos" de toda sorte na luta revolucionária. E a condição própria da reprodução da espécie, gradativamente apropriada pelos meios técnicos, que nos tornaram acessíveis o prolongamento da vida e o controle da natalidade, desfigura-se de sua finalidade primordial - que exige a convivência harmônica e sustentável no ambiente natural do planeta - e reitera o paradigma tradicional da nossa civilização predatória e do seu destino malthusiano. Na esteira das suas conseqüências, a consigna revolucionária da concepção marxista da História, tem resvalado numa atitude demissionária do envolvimento proativo na construção das condições da vida cotidiana. Em luta pela conquista da hegemonia política, promove o ativismo cínico, que resulta no conhecido axioma da irresponsabilidade ética do "quanto pior, melhor...". No seu alvo, a purgação dos males sociais pela solução catársica, do irredentismo que aflora nas situações-limite de aguçamento das tensões sociais. E, na administração de uma hegemonia conquistada, essa instrumentalização do desenvolvimentismo tecnológico, resulta inexoravelmente em violentação das condições da vida presente, pela submissão do trabalho e da lógica-reprodutiva da sociedade às razões corporativas e à xenofobia do próprio poder consolidado.
Viabiliza-se, a partir destes fundamentos, uma crítica à concepção marxista da História, que deverá proceder, agora, a operação inversa do que foi empreendido neste esforço de sistematização: a contraposição de práticas e valores, capazes de configurar a pedagogia da não-violência, a terapêutica da cooperação e a tecnologia da sustentabilidade condizentes com os desafios do processo civilizatório nesta transição da pós-modernidade.
Essa conclusão, com certeza, foge aos limites e possibilidades deste texto acadêmico. É muito mais o trabalho da vida... que haverá de conformar essa consciência. Mas, se a academia e a militância política, ao seu tempo e ao seu modo, ainda se permitissem esse alento, poderiam ao menos tratar de originá-la, pelo exercício saudável da crítica, que os conteúdos aqui enfocados, propositadamente, tratam de provocar...
* Este texto sintetiza as conclusões de um estudo mais aprofundado: "PRODUÇÃO DA VIDA E FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA:
IMPLICAÇÕES DA EPISTEMOLOGIA DE SÍNTESE PARA UMA CRÍTICA DA CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA EM "A IDEOLOGIA ALEMÃ" DE KARL MARX.", o qual está disponibilizado na internet, na home-page no autor: http:\\www.geocities.com/edaydos.** O autor é professor de ciência política na UFRGS.