Na tríade revolucionária da "LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE", o núcleo sígnico do agir e do fazer comunicativos na formulação de políticas

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O núcleo sígnico de uma epístemologia da ciência política e a divisão estrutural dos estudos políticos
Esboço preliminar de um paradigma epistemológico para a ciência política

Num desenvolvimento teórico anterior à elaboração do paradigma epistemológico da ciência política [AYDOS,1995], conceituei três níveis de elaboração da teoria democrática, utilizando para isso os conceitos revolucionários da igualdade, liberdade e fraternidade:

"De Péricles a Aristóteles, de Rousseau a Montesquieu, de Jefferson a Madison, de Marx a Weber, a teoria democrática tem experimentado o manejo e a tentativa de conciliação das linhas de força, aparentemente contraditórias, que se expressam nos conceitos de liberdade e igualdade. E o que, de alguma forma, se busca nessa conciliação pode, também, significativamente, ser evocado pelo terceiro conceito embutido no lema da Revolução Francesa: fraternidade.

O que essa análise postula, mais além da contradição aparente, é que, no seu encadeamento lógico-genético, a igualdade como atributo, a liberdade como condição e a fraternidade como conseqüência, expressam três níveis, articulados e não contraditórios entre si, da elaboração de uma política democrática.

A igualdade é dom, atributo substancial do ser humano, fundamento intrínseco da sua própria dignidade; enquanto a liberdade é conquista, condição extrínseca para a afirmação da racionalidade que o ser humano projeta em sua intervenção na história; e a fraternidade é valor, expressa o fundamento ético - individual e social - a consolidar a plena afirmação da igualdade, na experiência da liberdade." [AYDOS, 1995:39]

Partia, nessa ocasião, de uma afirmação axiomática da igualdade - como atributo genérico da natureza humana. Visualizava neste conceito, o nível último de justificação da teoria democrática, como uma necessidade - um imperativo ético - a orientar valorativamente o construto da ordem política:

"Num primeiro nível de formulação da política democrática, uma concepção radical da democracia a única compatível com o princípio da soberania popular, que expressa o significado próprio, semântico, desse conceito - constrói-se como afirmação da igualdade substancial dos seres humanos, no fato que são detentores originários de todo poder social." [AYDOS, 1995:39/40]

Não dispunha, então, do instrumental teórico que me permitisse distinguir os conceitos do fazer e do agir comunicativos - e nesta perspectiva, especificar e clarificar a tensão diádica entre a IGUALDADE, como dimensão do fazer comunicativo e a sua VIABILIDADE, como dimensão do agir comunicativo.

Não percebia, portanto, que essa categoria da IGUALDADE, enquanto um fim em si mesma, que nos permite afirmar a dignidade da nossa condição humana e superar, assim, a frustração da existência desigualmente trágica - como um princípio de resistência, como uma radical teleologia da ação - constituía por isso mesmo o OBJETO de um fazer comunicativo - cujo FUNDAMENTO se encontra no conceito da LIBERDADE, e cujo INTERPRETANTE vamos encontrá-lo na categoria da FRATERNIDADE.

A tríade sígnica composta por esse três conceitos é extremamente esclarecedora: a IGUALDADE, sendo objeto do fazer comunicativo, é uma totalidade refletida e, como tal, só se particulariza - ou se atualiza - como FRATERNIDADE. E, assim também, a IGUALDADE como fundamento ou teleologia do fazer comunicativo, é aspiração do seu próprio ser numa outra totalidade refletida... que emula o conceito da LIBERDADE.

A postulação da LIBERDADE, por sua vez, como FUNDAMENTO do fazer comunicativo, encontra o seu correlato na perspectiva do agir comunicativo no conceito da DESEJABILIDADE - a pulsão da vontade política, que a ciência trabalha como critério de decisão social. Assim concebida, a LIBERDADE constitui, efetivamente, o princípio da ação comunicativa, porque constitui o ato originário da existência social - em outros contextos conceituado como "livre arbítrio" - capaz de desencadear o processo da auto-reflexão comunicativa.

A condição da FRATERNIDADE, enfim, encontra, na perspectiva do agir comunicativo, o seu correlato no IDEAL DA EFICIÊNCIA. Essa correspondência, aparentemente espúria, entre a perspectiva humanitária do sentimento fraterno e a fria lógica do custo-benefício, justifica-se numa dimensão mais totalizante do raciocínio político:

"A análise recupera neste ponto, a relevância do lema conceptual da Revolução Francesa - egalité, liberté et fraternité - para a construção da democracia. É por democrático, nesta tríplice acepção de valores, que podemos declinar o conceito de legitimidade política. Surpreende-se aqui, o significado profundo da fraternidade, condição necessária da democracia e, pela sua crucialidade na realização dos fins e utilização dos meios políticos, princípio legitimador do exercício da autoridade pública.

A democracia se realiza pela articulação do seu fundamento social (a categoria da igualdade - a política democrática enquanto fim) - que explicita o campo da necessidade, com a dimensão estratégica da ação humana (a categoria da liberdade - a política democrática enquanto meio) - que explicita o campo da possibilidade. A arte e o empenho em utilizar o possível para prover o necessário é, seguramente, o seu substrato tático - a postura ética indissociável do compromisso democrático, que se dimensiona na esfera da fraternidade.

O mesmo conceito, visto pelo ângulo disciplinador do controle democrático, tem sido um permanente objeto de reflexão na teoria política: "Conquanto as estratégias políticas se preocupem com controles externos e sociais do egoísmo dos homens e das nações e conquanto nenhuma pressão individual ou coletiva da vitalidade humana seja suficientemente moral para afastar a necessidade de tais controles é também verdade que os controles externos são insuficientes se não ha controle moral interno efetivo da ambição humana". [NIEBUHR, 1965:121].

É neste espaço de socialização política - porque sem moral não há compromisso, que seja estável e criterioso - que a democracia se viabiliza como administração da Justiça nas decisões de governo, sejam elas executivas, legislativas ou judiciais. Essa concepção enfatiza a relevância dos aspectos distributivos no âmbito de uma política democrática. Na consecução da finalidade e na implementação da estratégia da democracia, emergem questões de natureza conflitiva, cuja solução demanda a capacidade de conciliar a parte e o todo, o bem público e o interesse privado.

É, também, aqui que a política democrática se radicaliza, pois que o compromisso da fraternidade não admite meias medidas ou dupla moral. Não é fraterna a caridade parcimoniosa da esmola; não é fraterna a remuneração espoliativa do trabalho; como não é fraterna a acomodação dos homens à realidade dada, deixando espaços inexplorados de possibilidades de ação, frente à miséria da própria Humanidade. Dissociada dessa tensão permanente, que explora os limites históricos da igualdade e da liberdade, da necessidade e da possibilidade, uma ordem social não será fraterna e uma postura política não será democrática." [AYDOS, 1985:40/41]

A compreensão, tentativamente esboçada nestas reflexões, encontra agora a sua confirmação paradigmática: a FRATERNIDADE desponta como a categoria sígnica de terceiridade, que realiza a transuasão entre as categorias da LIBERDADE e da IGUALDADE. Não se tratam mais de três dimensões do comportamento social, isoladas e independentes no seu enquadramento histórico - há uma lógica subjacente à sua articulação simbólica na bandeira da Revolução democrática.

A FRATERNIDADE é a ponderação generosa da LIBERDADE e da IGUALDADE - emergente no processo da particularização dessas totalidades. Da mesma forma, a EFICIÊNCIA é a ponderação optimal, que permite decidir fraternalmente, entre cursos de ação já demarcados pelas categorias da DESEJABILIDADE e da VIABILIDADE. Disso decorre, que os três conceitos do fazer comunicativo, aqui trabalhados - LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE - e seus correlatos do agir comunicativo - DESEJABILIDADE, VIABILIDADE e EFICIÊNCIA - são indissociáveis e isso tem conseqüência.

O núcleo sígnico de uma epístemologia da ciência política e a divisão estrutural dos estudos políticos

Para configurar a dialética triádica do fazer e do agir comunicativos em ciência política, em correspondência com as categorias do modelo paradigmático da epistemologia de síntese e inspirados na representação das vertentes mais originárias do paradigma dualista - o "idealismo" grego [Nota 6] e o "realismo" da teoria política moderna - propomos a utilização dos conceitos clássicos que referem à POSTULAÇÃO DA LIBERDADE, à DISCIPLINA DA IGUALDADE e à CONDIÇÃO DA FRATERNIDADE; e dos critérios de decisão social que enquadram a PULSÃO DA DESEJABILIDADE, o IDEAL DA EFICIÊNCIA e o CONSTRANGIMENTO DA VIABILIDADE. [O Quadro III, a seguir, formaliza essa proposição conceitual no diagrama central do paradigma sintético.]

Quadro III: Diagrama do núcleo sígnico de uma epistemologia da ciência política.

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No espaço quadrangular desse modelo simplificado do PROCESSO DE FORMAÇÃO DE POLÍTICAS, torna-se possível identificar o locus de uma DIVISÃO ESTRUTURAL deste saber parcelar que é a CIÊNCIA POLÍTICA. É o que segue figurado no Quadro IV, explicitando-se a TEMÁTICA das suas quatro grandes áreas de investigação [Nota 7], que propomos figurar - seqüencialmente - como: [a] CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA; [b] ENGENHARIA DO CONSENSO; [c] PREVENÇÃO DA TIRANIA; e, [d] IMPLEMENTAÇÃO DA ESCOLHA PÚBLICA [Nota 8].

Quadro IV: Diagrama do núcleo sígnico de uma epistemologia da ciência política, apontando uma proposta de DIVISÃO ESTRUTURAL dos estudos políticos.

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É nossa convicção que, a partir desse núcleo sígnico, e mais, identificando-se e localizando-se as PRAXIOLOGIAS POLÍTICAS [para cuja inserção definicional propomos as categorias de: ADMINISTRAÇÃO para a produtividade política; NEGOCIAÇÃO para a regulação social; e LIDERANÇA para a mudança e o desenvolvimento institucionais] no espaço próprio que ocupam na morfologia do modelo sintético, torna-se possível a elaboração de um paradigma epistemológico para a ciência política.

Esboço preliminar de um paradigma epistemológico para a ciência política

No esforço de elaboração paradigmática que passamos a desenvolver, nosso enfoque pretende apresentar, sobre as abordagens em voga na academia contemporânea, as vantagens de uma compreensão holística, de uma reconstrução teórico-proposicional empiricamente controlável, e de uma fundamentação, solidamente enraizada nos princípios e exigências pragmáticas da teoria democrática.

Para tanto, é oportuno resgatar-se e atualizar o conflito entre as visões de mundo arcaica e secular na Grécia Antiga, para a partir desse confronto reconstruído analisar-se a conseqüência, de uma ambigüidade conceitual que remonta a essa origem histórica, e dela retirar a sua lição mais atual.

Sob o impacto da mudança tecnológica na arte da guerra, as falanges hoplitas desencadearam o processo de uma reforma política, cujas implicações imprimiram rumo no processo civilizatório em que estamos inseridos. E foi refletindo criticamente sobre essa comoção social, onde ressalta a ambigüidade da sofística enquanto discurso emancipatório, e sobre a face de Janus da retórica, como instrumento de dominação social, que a teoria democrática emergiu na obra dos grandes filósofos. O confronto primevo da oligarquia pela democracia - da unidade e consistência do mundo mágico-religioso por uma nova cultura secular e fragmentária - de alguma forma se reproduz, nos desafios que a nossa sociedade defronta na transição da sociedade pós-moderna.

O cinismo do discurso que justifica o poder pela eficácia, pertence a esse quadro de ambigüidades que a transuação civilizatória relevou na crise da democracia ateniense. As invectivas de APÁTE [palavra-instrumento], sobre os domínios tradicionais de ALÉTHEIA [palavra-mágico-religiosa], cunharam-se como expressões da ambivalência - do "ser" e do "não-ser-dotado-de-existência" - de uma prática de governo destituída de fundamentação ética e orientação finalística. De alguma forma a teoria política mais sólida construiu-se como crítica militante dessa inconsistência.

O novo paradigma da ciência política retoma essa reflexão desde o movimento de secularização, ocorrido na Grécia clássica, e passa a reconstruir, sobre a compreensão desses fundamentos, uma tradição democrática do Saber que remonta a 2.000 anos. O Quadro V, a seguir, sintetiza essa proposta.

Quadro V- Emergência do paradigma epistemológico da ciência política.

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Nota 6 - Referência aos conceitos derivados de MÉSON, ISON, e ÁGON - cfr. a Teogonia de APÁTE e a Teogonia de ALÉTHEIA, no Capítulo 6, deste texto. Retorna ao texto

Nota 7 - É importante uma referência ao estatuto epistemológico da área de estudos que se tem comumente designado como POLÍTICA COMPARADA. Em muitos currículos e no cotidiano da academia tem sido tratada como uma divisão ESTRUTURAL específica dos estudos políticos. Na perspectiva de nossa abordagem sistemática, no entanto, isso configuraria uma confusão de categorias, decorrente de uma superposição de níveis de análise. A ciência política, como um campo de estudos empíricos, sempre utilizará a "comparação" como um recurso de investigação em todas as suas áreas de investigação. Compara-se a experiência de diferentes partidos, dentro de um sistema político nacional; assim como se comparam as experiências dos sistemas partidários de diferentes nações - o que difere é o nível de abrangência da análise. Isso que não é suficiente para distinguir o primeiro caso pelo designativo de uma teoria dos partidos e o segundo pelo designativo de teoria política comparada. Nessa perspectiva todas as quatro divisões estruturais da ciência política, figuradas no Quadro 23 supra, admitem abordagens de maior ou menor amplitude - em âmbito local, nacional ou internacional [ou globalizante para usar o terminologia em moda]. Por essa razão, não se justifica a inclusão da POLÍTICA COMPARADA como um segmento específico da Divisão Estrutural do Saber em Ciência Política, embora sua perspectiva de análise integre todos os seus ramos. Por essa razão mesma, a POLÍTICA COMPARADA será classificada como uma DIVISÃO FUNCIONAL dos estudos políticos, em correspondência com a HERMENÊUTICA no modelo paradigmático da epistemologia de síntese. Uma posição que lhe dá flexibilidade e amplitude substantiva e mais ressalta o seu potencial crítico. Retorna ao texto

Nota 8 - Nessa divisão dos estudos políticos, inclui-se a disciplina que hoje se denomina como "análise do discurso". De fato, a análise de políticas públicas é o termo genérico de diferentes técnicas que permitem avaliar, tanto a coerência interna do discurso político, como sua consistência em relação a metas e realizações na perspectiva dos seus interlocutores. Retorna ao texto

     

© Copyright by Eduardo Dutra Aydos, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sugestões, comentários e críticas: mailto: edaydos@adufrgs.ufrgs.br.

 

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