LÍNGUA E LITERATURA NO ESPAÇO INTERATIVO: O COLETIVO PENSANTE

Clarmi Regis

Mestranda em Literatura Brasileira - UFSC

A escrita determinou um caminho aberto a ser seguido pela espécie humana. A memória registrada agora não é mais aquela necessária ao indivíduo enquanto sujeito de si mesmo ou membro de uma comunidade. É muito mais ampla. Afasta-se da identidade pessoal e coletiva e cresce como um corpus disponível, independente dos sujeitos que a comunicam. Nessa rede intertextual que vai tecendo em sua trajetória, a palavra escrita, ao mesmo tempo, garante a preservação do pensamento e o abre a mil possibilidades.

A partir de Guttenberg, o desenvolvimento da tecnologia vem servindo de suporte e de instrumento que possibilita o registro e a difusão das idéias. A palavra impressa, por outro lado, permitiu que a literatura e a arte em geral alcançassem um público maior.

Nesta segunda metade de século, o avanço da tecnologia da informática, a par do espanto que desperta pela rapidez com que se transforma, vê seu emprego constituir-se razão de controvérsias. Assim como o prelo deu voz aos tempos modernos, a Internet leva a palavra dos tempos pós-modernos. Não sem susto, porém. O abandono da página concreta, da ordenação visível das páginas, da linearidade; a possibilidade de múltiplas associações; a margem de iniciativa; a singularidade das interpretações permitidas a partir das associações disponíveis, tudo se transforma em um grande questionamento. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Literalmente. Toda a cultura humana solta, dispersa no ciberespaço. "Ao ritmo regular da página se sucede o movimento perpétuo de dobramento e desdobramento de um texto caleidoscópico." Com o emprego de textos lançados em programas na rede, cria-se um jogo de comunicação, em que o sentido emerge da construção do contexto, das novas inter-relações propostas. Os agentes desse jogo são indivíduos que tecem sua própria rede, seu próprio hipertexto, a partir das possibilidades apresentadas e de tantas mais por eles mesmos propostas.

Loucura? Dentro do pensamento determinista que condiciona o raciocínio humano parece instaurar-se o caos. É preciso que se acompanhem, porém, as correlações que caracterizam o caminho da percepção e do entendimento humanos: é o contexto de cada um, suas vivências, seus conhecimentos anteriores, seu domínio de Língua, sua sensibilidade para a criação artística, sua visão de mundo que encaminham a construção e o desenvolvimento de sua rede de conhecimentos. O conhecimento não se constrói em linha reta, mas por correlações. Pierre Lévy afirma que, no momento atual, a partir de uma nova configuração técnica, um novo estilo de humanidade está sendo inventado. "A técnica não é sinônimo de esquecimento do ser ou de deserto simbólico, é, ao contrário, uma cornucópia de abundância axiológica..."

Fred FOREST, em sua análise da arte contemporânea, afirma: "Les technologies életroniques ont la possibilité fonctionnelle d’agir comme un dispositif de contact à distance, c’est à dire de modifier fondamentalement les modes de présence."

"As tecnologias eletrônicas têm a possibilidade funcional de agir como um instrumento – um dispositivo – de contato à distância, ou seja, de modificar fundamentalmente as formas de presença."

O mesmo posicionamento adota Pedro BARBOSA quando considera o momento atual como de surgimento de uma nova corrente artística que atrai para si todas as modalidades artísticas, até mesmo o cinema.

"Na Ciberliteratura, o computador funciona como ‘máquina aberta’, ou seja, uma máquina em que a informação de entrada ou input é diferente da informação de saída ou output (por oposição às ‘máquinas fechadas’, como é o caso de um gravador áudio ou vídeo, onde a informação de entrada é igual à informação de saída). O computador no seu todo (hardware mais software) equivale a uma ‘máquina semiótica’ criadora de informação nova, o que conduz a uma alteração profunda em todo o circuito comunicacional da literatura no que concerne à criação, ao suporte e à circulação da mensagem."

O que se pretende é, pois, o aprofundamento no conhecimento das múltiplas possibilidades apresentadas pelas tecnologias intelectuais enquanto redes de interfaces para a criação literária e para o estudo de Língua e Literatura.

"É preciso deslocar a ênfase do objeto (o computador, o programa, este ou aquele módulo técnico) para o projeto (o ambiente cognitivo, a rede de relações humanas que se quer instituir)."

É preciso desmistificar, conhecer e empregar as tecnologias da inteligência.

 

Um campo de novas tecnologias abre-se, de forma incerta e conflituosa, às mais diversas experiências. O uso dessas tecnologias, a introdução de computadores nas escolas, a criação de uma rede telemática são etapas que conduzem a um processo progressivo de instauração de uma tecnodemocracia, pois inegável é constatar-se que o emprego que se faz (ou se fizer) das tecnologias intelectuais carrega consigo, de forma clara ou diluída, um programa político-social, um projeto cultural. Campo aberto, que abre caminho para a "redistribuição da configuração do saber", a informática se apresenta como a possibilidade de escapar do determinismo tecnológico e de instalar o coletivo pensante. Ao mesmo tempo, exige que se proceda a uma revisão da filosofia política e a um repensar da filosofia do conhecimento.

"Tomando os termos leitor e texto no sentido mais amplo possível, diremos que o objetivo de todo texto é o de provocar em seu leitor um certo estado de excitação da grande rede heterogênea de sua memória, ou então orientar sua atenção para uma certa zona de seu mundo interior, ou ainda disparar a projeção de um espetáculo multimídia na tela de sua imaginação

As opções abertas ao leitor dentro de um programa interativo permitem que ele não apenas elabore sua própria leitura mas também possa "construir" o material de que pretende fazer uso ou a forma artística que sua liberdade inventiva vier a determinar. "Fica desse modo aberta a via para uma verdadeira ‘arte variacional’." O ato passivo frente ao texto, literário ou não, ou à obra de arte em geral transforma-se em atividade participativa de criação.

A própria arte, aliás, presta-se a conexões, exige-as até, nelas se completa. A intertextualidade que a caracteriza, as paródias, os palimpsestos, os temas retomados eternizando e dando nova feição aos mitos e emoções humanas estão aí a confirmar que os textos se completam e se inter-relacionam. Júlia KRISTEVA, analisando o texto como escritura-leitura, afirma :

"Le language poétique apparaît comme un dialogue de textes: toute séquence se fait par rapport à une autre provenant d’un autre corpus, de sorte que toute séquence est doublement orientée: vers l’acte de la reminiscence (évocation d’une autre écriture) et vers l’acte de la sommation (la transformation de cette écriture)."

A linguagem poética aparece como um diálogo de textos: toda a seqüência é duplamente orientada – pelo ato da reminiscência e pelo ato da transformação.

As novas tecnologias transformam as configurações do imaginário, permitem novas formas de criatividade e de expressão, criam o ambiente para a realização da vocação natural da arte.

Por outro lado, a integração de variados elementos – imagens, palavras, sons – na rede traz ao texto uma dimensão de multimídia, potencializando as possibilidades de conexões e transformando o papel do leitor, agora criador de seu próprio texto dentro de um sem-número de escolhas e combinações possíveis.

Talvez o mais importante de tudo seja a possibilidade funcional de, por meio das tecnologias da inteligência, contatos à distância serem mantidos. Modifica-se, assim, a forma de presença do homem junto ao homem, quando são ultrapassadas barreiras de tempo e espaço e feita a descoberta de um novo contexto. O ser humano e sua cultura abrem-se para o universo.

Clarmi Regis

Florianópolis, de setembro de 1999

 

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Última atualização: 10/06/01 01:33:17

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