Kant - II
Aluísio Casabianca ( 1º DI )
Acima da lógica da cabeça está o sentimento do coração
Rosseau
No primeiro artigo sobre Kant publicado no também primeiro
número deste periódico, tratamos principalmente da biografia do
filósofo de Konigsberg e sustentamos, ainda que muito
superficialmente, alguns princípios epistemológicos presentes
na Crítica da Razão Pura. Chegamos assim, à
conclusão que a ciência em si mesma persegue escopos
inatingíveis, já que nunca chegará à raiz do conhecimento
que, quando atinge nossa consciência, já não é exatamente
aquilo que pouco antes era em seu estado ainda não percebido.
Diante disso, onde ficam a religião e a moral na teoria
kantiana?
A princípio, a resposta para tal pergunta é obscura, visto que,
não sendo a ciência um instrumento possibilitador do
conhecimento da realidade, não pode a religião basear-se na
ciência, derrubando-se assim também a teologia. Kant esclarece
este ponto afirmando ser a moral a base da religião, de tal
forma que a fé deve ser afastada da corrupção propiciada pela
razão falível, devendo ser derivada do eu interior através da
percepção direta e da intuição. Isto posto, fica difícil
não se fazer uma analogia com as doutrinas metafísicas do
Oriente, v.g., a tradição budista tibetana. Encontramos no
Livro dos Preceitos de Ouro de Nagarjuna, expoente do
budismo Mahayana, a afirmação não pouco semelhante à
filosofia kantiana de que a mente é a assassina do
Real .
Essa moral que, para Kant, deve ser o alicerce da religião, é a
moral universal, matemática, inata, não empírica e, por tudo
isso, absoluta. Poder-se-ia mesmo grafar esta moral absoluta como
Moral, a exemplo do que faziam os filósofos orientais ao
distinguir a realidade cotidiana, o real, da realidade absoluta,
o Real. Sendo tal moral absoluta e, como absoluta, inata, é
considerado como certo o fato de todo ser humano guardar dentro
de si um sentimento que o impele ao dever moral. Ora, essa moral
interior nos propõe a abstinência de qualquer comportamento
que, se fosse adotado pela coletividade, tornar-se-ia
inaplicável. Um comportamento inaceitável seria, destarte, a
mentira, já que se realizado por todos, extinguiria certeza e a
segurança nas relações sociais, o que seria inaceitável.
Percebe-se do exposto que uma ação é boa por condizer com o
senso íntimo do dever, sendo que mesmo que a ação
proibida traga um bom resultado,
continua sendo inaceitável, enquadrando-se nisto a situação da
mentira boa e/ou necessária.
Semelhante posição, sem dúvida bastante radical, leva à busca
da perfeição moral acima da beleza e da felicidade individual.
Contudo, paradoxalmente, esse radicalismo só existe porque somos
livres, podemos escolher nos portar assim; e somos livres porque
liberdade é a essência de nosso eu interior. Ora, o eu
interior, fonte da moral individual, não estabelece relações
lógicas, mas morais. Desta forma, ainda que a lógica nos mostre
que freqüentemente o mal vence o bem, o senso moral nos impele a
caminhar de acordo com o bem. Essa certeza íntima, contudo, só
pode sobreviver porque há também em nosso interior a certeza de
uma outra vida, da qual a presente é o embrião, onde o bem
será pago com o bem e o mal com o mal. Sendo, por fim, a vida
imortal uma necessidade e certeza interiores, essa imortalidade
tem de ter uma causa, sendo Deus essa causa, um Deus não
comprovado logicamente, mas necessário moralmente.
Após esses esboços, quando a proposta inicial de estabelecer um
contato inicial e/ou mais simples e sintético do leitor com
Kant, resta-nos a sensação da enorme pretensão de ter-se
procurado delinear, em tão poucas linhas, algo do pensamento
deste homem genial. Que tal defeito, no entanto, acabe por nos
levar ao estudo mais aprofundado da obra de Kant, aproximando-nos
pouco a pouco de seu pensamento. Certamente o resultado será
engrandecedor sob um aspecto que chega a transcender toda a nossa
personalidade, tocando-nos, para usar uma expressão kantiana, o
eu interior. Fiquemos por ora com a bela inscrição presente na
lápide deste grande filósofo e professor: Duas coisas me
enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais
intensamente delas se ocupa o pensamento: o céu estrelado sobre
mim e a lei moral dentro de mim.
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1 BLAVATSKI, Helena Petrovna, A Voz do Silêncio; Ed.
Pensamento (há uma edição da Editora Ground, traduzida por
Fernando Pessoa, que contém um artigo do Dr. Murillo Nunes de
Azevedo intitulado: Fernando Pessoa, o místico.
- Esta obra de Blavatski é uma transcrição e tradução do
Livro dos Preceitos de Ouro, conhecido de cor pela
autora
em virtude dos muitos anos que permaneceu estudando em mosteiros
budistas do Tibete.