Cálice
André de A. Cavalcanti Abbud (1ºDI)
Com a relutância contida própria dos convites a reuniões
familiares, aceitei, mais por conveniência que por gosto, ir à
casa de minha tia em pleno sábado, dia de festa para os jovens e
de filmes com pipoca para os não tão jovens.
Esse era o clássico exemplo de reunião em que uma horda
de quarentões fica intercalando conversas de gente
grande (mesmo que os mais novos no ambiente tenham vinte
anos) sobre a crise no país com ridículas situações da
festejada infância, em que tudo era melhor e mais bonito do que
hoje. Tudo isso acompanhado de pãezinhos com patê,
amendoinzinhos, azeitoninhas e muitos
chopp para manter as barriguinhas
proeminentes.
As minhas expectativas quanto a alguma emoção diferente
de copos caindo ou um tio bêbado fazendo discurso eram nulas, e
seriam confirmadas se não fosse por um detalhe que veio
modificar a noite.
Quando cheguei, notei que a casa havia sido reformada, e a
decoração era moderna ao ponto de dar a certeza de que era obra
de um daqueles decoradores gays que querem dar um
toque em tudo. Observando atentamente, um detalhe em
particular me chamou a atenção: um grande cálice barroco de
madeira deitado sobre uma mesa como se despropositadamente caído
fazia parte do cenário um tanto bizarro ali montado.
Aquilo me deixou de alguma forma incomodado, e eu me fazia
repetidamente a pergunta mas por quê? Qual era a
necessidade, a utilidade, ou mesmo o significado de tal posição
para aquele objeto?
Sua maneira de estar presente me impressionava por algum
motivo, e de tempos em tempos me flagrava olhando para ele,
intrigado.
Comecei a ficar perturbado com tal imagem, a ponto de
deparar com uma gota gélida de suor me cortando pela face
até fundir-se no copo de cerveja que eu segurava na mão. No seu
fundo trêmulo, havia um cálice posto em posição horizontal de
uma maneira tão artificial que me impossibilitava de compreender
sua função em simplesmente estar deitado.
Aquela noite acabou, mas o maldito artefacto esnobe veio
povoar meus sonhos durante um mês. Lá estava ele
quedo,
arrogante, impassível, glorioso. Definitivamente, a angústia
tomara conta de mim.
Novo convite, novamente aceito. Tendo meu plano
premeditado, agi com a frieza digna de um serial killer. Assim
que a porta se abriu fui direta e calmamente em direção ao
móvel, e deixando transparecer um sorriso sarcástico no rosto,
levantei o cálice, e tudo agora estava resolvido.