Ovídio é a única fonte para esta história, que nos mostra especialmente bem o gosto do autor pelos pormenores e a habilidade com que os utiliza para fazer com que um conto de fadas nos transmitisse uma impressão de veracidade. São usados os nomes latinos dos deuses.
Na
região montanhosa da Frígia existiam outrora duas árvores que
todos os camponeses, fossem eles de longe ou dali mesmo, sempre
apontavam como uma grande maravilha. E estavam cobertos de razão
por assim procederem, pois uma das árvores era um carvalho e a
outra uma tília, mas ambas nasciam de um mesmo tronco. A
história de como isso pôde acontecer constitui uma prova do
incomensurável poder dos deuses, e também do modo como
recompensam os humildes e os piedosos.
Às vezes quando
Júpiter já estava saciado de ambrosia e néctar lá em sua
morada, o Olimpo, e também um pouco cansado da lira de Apolo e
da dança das Graças, costumava descer à Terra e, disfarçado
de um simples mortal, punha-se então a procurar aventuras.
Nessas incursões, seu companheiro favorito era mercúrio, o mais
divertido, mais astuto e mais criativo de todos os deuses. Desta
vez, Júpiter estava decidido a verificar até que ponto chegava
a hospitalidade do povo da Frígia. Essa qualidade era-lhe
especialmente importante, pois estavam sob a sua proteção todos
os hóspedes e todas as pessoas que procuravam abrigo em terra
estranha.
Para procederem a essa
verificação, os dois deuses assumiram a forma de dois
viandantes e perambularam por toda a região, batendo à porta
tanto das cabanas humildes quanto das casas ricas que iam
surgindo por onde passavam. Pediam alimento e um lugar para
descansar, mas não eram recebidos por ninguém: insolentemente,
todos lhes batiam as portas na cara. Fizeram a mesma experiência
em centenas de casas, e foram tratados do mesmo modo por todos os
proprietários. Por fim, chegaram a uma cabana das mais humildes.
Era coberta de palha, e mais pobre do que todas as casas pelas
quais até então haviam passado. Ao baterem, porém, a porta foi
aberta de par em par e uma voz muito agradável convidou-os a
entrar. De tão baixa que era a entrada, tiveram de curvar-se
para passar por ela mas, uma vez lá dentro, perceberam que tudo
estava muito bem arrumado e limpo. Um casal de velhinhos, ambos
com uma expressão muito amigável, deu-lhes as boas-vindas do
modo mais acolhedor possível, não poupando esforços para que
se sentissem confortavelmente instalados.
O dono da casa colocou
um banco perto da lareira e pediu-lhes que ali se deitassem para
descansar seus corpos exaustos; sua mulher estendeu uma manta
sobre o banco, contando-lhes que seu nome era Báucis, e que o
marido chamava-se Filêmon. Viviam naquela cabana desde o seu
casamento, e tinham sido sempre muito felizes. "Somos
pobres," disse, "mas a pobreza não é uma coisa assim
tão má quando não se tem grandes ambições, e uma boa
disposição de espírito também ajuda muito." Enquanto ia
falando, continuava a preparar coisas para eles. Abanou os
tições da lareira escura até que um fogo muito agradável
começou a arder, e pendurou sobre as chamas uma panela cheia de
água. Assim que esta começava a ferver, o marido voltou da
horta com um belo repolho que foi, por sua vez, colocado dentro
da panela juntamente com um pedaço de carne de porco que pendia
de uma dos vigas do teto. Enquanto a refeição ia sendo
preparada, Báucis pôs a mesa com suas mãos velhas e trêmulas.
Uma das pernas da mesa era mais curta que as outras, mas ela
calçou-a com um pedaço de um prato quebrado. Sobre a mesa,
colocou azeitonas, rabanetes e vários ovos que tinha assado
sobre as cinzas quentes. A esta altura, o repolho e o toucinho
já estavam prontos, e o velho empurrou para perto da mesa dois
banquinhos de pernas bambas, convidando seus hóspedes a tomarem
assento e comerem.
Em seguida, trouxe-lhes
taças de madeira de faia e um recipiente de barro cheio de um
vinho que parecia vinagre diluído em muita água. Filêmon,
porém, estava muito orgulhoso e feliz por poder acrescentar
aquela iguaria à ceia, e muito atento, voltava a encher as
taças assim que estivessem vazias. Os dois velhinhos estavam
tão encantados e animados com o sucesso de sua hospitalidade que
demoraram muito a se dar conta de uma coisa muito estranha que
estava acontecendo a jarra de vinho nunca se esvaziava. A
despeito do grande número de taças que já haviam sido bebidas,
o nível do vinho não se alterava, e a bebida continuava
chegando até a borda. Quando perceberam essa maravilha,
entreolharam-se apavorados e começaram a orar em silêncio e de
olhos baixos. Depois, trêmulos e com voz embargada, rogaram aos
hóspedes que perdoassem a pobreza da ceia oferecida. "Temos
um ganso", disse Filêmon, "que deveríamos ter
oferecido a Vossas Senhorias, mas tenham a bondade de esperar,
pois vamos prepará-lo rapidamente e servi-lo em seguida."
Mas não havia jeito de conseguirem agarrar o ganso. Depois de
muitas tentativas em vão, ficaram exaustos, enquanto Júpiter e
Mercúrio se divertiam muito com a cena.
Quando, porém,
Filêmon e Báucis já não tinham mais condições de continuar
com sua caçada, os deuses sentiram que era o momento de entrar
em ação, o que fizeram de forma realmente generosa.
"Hospedastes hoje dois deuses em vossa casa", disseram,
"e, portanto, tereis a recompensa merecida. Puniremos
duramente este país cruel que despreza o pobre estrangeiro, mas
é nosso desejo poupar-vos." Em seguida, levaram os dois
velhinhos para fora da cabana e pediram-lhes que olhassem em
redor. Para seu grande espanto, a única coisa que viam era
água. O campo todo havia desaparecido, e um grande lago cercava
o local onde se encontravam. Os vizinhos nunca tinham sido
bondosos com os dois, mas, mesmo assim, Báucis e Filêmon
choraram por eles. De repente, porém, uma grande maravilha fez
com que suas lágrimas secassem: diante de seus olhos, a
minúscula e humilde cabana que por tanto tinha sido o seu lar
transformara-se em um templo majestoso, com colunas do mais
branco mármore e um reluzente teto de ouro.
"Meus bons
amigos," disse Júpiter, "pedi o que quiserdes, e vosso
desejo será imediatamente satisfeito." Os dois velhinhos
sussurraram algumas palavras entre si, e em seguida Filêmon
começou a falar. "Permiti que nós tornemos vossos
sacerdotes, e que passemos a tomar conta deste vosso templo
e, já vivemos tanto tempo juntos, não deixeis que nenhum
de nós sobreviva ao outro, concedendo-nos a graça de morrermos
juntos."
Os deuses concordaram,
muito satisfeitos com o que ouviram. Por muito tempo, Filêmon e
Báucis serviram naquele grandioso edifício, mas a história
não nos revela se alguma vez chegaram a sentir saudades da
antiga casinha aconchegante e do crepitar alegre e cordial de sua
lareira. Um dia, porém, em que mais uma vez ali estavam diante
daquela edificação magnífica em mármore e ouro, puseram-se a
falar sobre a vida passada, que tinha sido tão dura e, ao mesmo
tempo, tão feliz. A esta altura da vida, já estavam muito
idosos. De repente, enquanto trocavam recordações, perceberam
que muitas folhas começaram a brotar de ambos. Depois, viram que
sua pele ia sendo transformada em casca de árvore, e só tiveram
tempo de dizer um ao outro: "Adeus, meu grande amor."
Assim que seus lábios pronunciaram essas derradeiras palavras,
transformaram-se em árvores, mas mesmo assim continuaram juntos,
pois a tília e o carvalho nasciam de um mesmo tronco.
De todas as partes do
mundo acorriam pessoas para admirar-se com aquela maravilha, e,
em honra do casal tão piedoso e fiel, dos ramos das duas
árvores pendiam sempre as mais belas grinaldas de flores.