Ovídio é a melhor fonte para esta história. O exagero da tempestade é tipicamente romano. A morada do Sono mostra, com seus fascinantes detalhes, o poder descritivo de Ovídio. Os nomes dos deuses, evidentemente, em sua forma latina.
Cêix,
rei da Tessália, era filho de Lúcifer, o portador da luz e a
estrela que anuncia o raiar do dia. Em seu rosto se estampava
toda a alegria radiante do pai. Alcíone, sua mulher, também era
de elevada ascendência, uma vez que seu pai era Éolo, o Rei dos
Ventos. Os dois amavam-se profundamente, e em momento algum
gostavam de ver-se separados. Não obstante, chegou um dia ele
decidiu deixá-la para fazer uma longa viagem através dos mares.
Vários fatos tinham-no perturbado e ele desejava consultar o
oráculo, o refúgio dos homens em dificuldades. Quando Alcíone
soube de seus planos, encheu-se de dor e de apreensões.
Disse-lhe, banhada em lágrimas e com a voz embargada pelos
soluços, que conhecia melhor que ninguém o poder dos ventos
sobre o mar. No palácio de seu pai, deste criança observara
inúmeras vezes os seus encontros turbulentos, as nuvens negras
que faziam acumular e a fúria do raio. "E muitas vezes pude
ver na praia", prosseguiu, "os restos despedaçados dos
navios que o mar arrastara para as areias. Oh, peço-te que não
vás! Mas, caso eu não possa te convencer a ficar, peço-te ao
menos para me deixares ir contigo. A teu lado, terei forças para
suportar todas as adversidades que porventura sobre nós se
abatam."
Cêix ficou
profundamente comovido, pois Alcíone não o amava mais do que
ele a ela, mas manteve-se firme em seu propósito de partir
sozinho. Sentiu que devia aconselhar-se com o oráculo, e não
admitia a idéia de que a mulher compartilhasse com ele os
perigos da viagem. Ela teve que conformar-se e deixá-lo partir.
Ao despedir-se do marido, tinha o coração tão pesaroso que
parecia estar prevendo tudo o que estava por vir. Ficou na praia
até que o navio de Cêix desaparecesse no horizonte.
Nessa mesma noite uma
tempestade selvagem desabou sobre o mar. Todos os ventos se
entrechocaram em um louco furacão, e as ondas enfurecidas
atingiam a altura de montanhas. A chuva caía com tanta
violência que o céu parecia despencar no mar, e este, por sua
vez, parecia lançar-se em direção às nuvens. A tripulação
do navio destroçado e arrastado pelas vagas estava enlouquecida
de terror, mas havia ali um homem que só pensava em Alcíone, e
se rejubilava por ela ter ficado a salvo do desastre que se
abatia sobre seu navio. O nome dela esteve em seus lábios até o
momento em que a embarcação afundou e as águas se fecharam
sobre ela.
Enquanto isso, Alcíone
contava os dias. Mantinha-se ocupada o tempo todo, tecendo um
traje para o marido usar em seu retorno e outro para ela
própria, que assim se faria mais bela para recebê-lo. Várias
vezes ao dia orava aos deuses por ele, principalmente a Juno. A
deusa comoveu-se com aquelas preces dirigidas a alguém que já
morrera havia muito tempo. Convocou então sua mensageira Íris,
ordenando-lhe que fosse à casa de Somnus, o Deus do Sono, e lhe
pedisse para enviar a Alcíone um sonho através do qual ela
pudesse inteirar-se da verdade sobre o destino de Cêix.
A morada do Sono fica
perto do sinistro país dos Cimérios, em um vale profundo que o
Sol nunca alcança e onde a eterna penumbra envolve todas as
coisas em um manto de sombras. Ali os galos não cantam, os cães
de guarda nunca quebram o silêncio, os ramos das árvores não
farfalham ao sopro da brisa, e nenhuma voz humana vem perturbar a
paz reinante. O único som provém da corrente doce e serena do
rio Letes, o rio do esquecimento, cujo murmúrio convida ao sono.
Diante da porta crescem papoulas e outras ervas que induzem ao
torpor dos sentidos. Lá dentro, o Deus da Sonolência está
reclinado em um macio leito de penas também envolto em
penumbras. Ali chegou Íris com sua capa de muitas cores, depois
de descer do Céu pela curva de um arco-íris, e de imediato a
luminosidade de suas vestes iluminou aquela casa sombria. Mesmo
assim, não foi nada fácil fazer com que o deus abrisse os olhos
turvos de sono e compreendesse qual era o pedido que ela estava
ali para lhe fazer. Assim que se certificou de que ele estava
realmente acordado o que dava por cumprida sua missão, Íris
tratou de abandonar aquele lugar o mais rápido possível,
temerosa de que se deixasse também contagiar por toda aquela
sonolência.
O velho Deus do Sono
despertou seu filho Morfeu, extremamente hábil em assumir a
forma de todo e qualquer ser humano, e transmitiu-lhe as ordens
de Juno. Com suas asas silenciosas, Morfeu voou pela escuridão
até encontrar-se junto à cama de Alcíone. Tinha assumido o
rosto e a forma de Cêix no instante exato que este se afogara.
Nu, e com água a escorrer-lhe pelo corpo, curvou-se sobre o
leito. "Pobre esposa!", exclamou, "Olha, é teu
marido que aqui está! Reconheces-me, ou estará meu rosto
alterado pela morte? Estou morto, Alcíone. O teu nome estava nos
meus lábios quando fui tragado pelas águas. Para mim, não
existe mais esperança alguma, mas, para que eu não desça para
o reino das sombras sem ser chorado, concede-me ao menos as tuas
lágrimas." Em seu sonho, Alcíone rompeu em soluços,
estendeu os braços, tentando alcançá-lo, e gritou:
"Espera por mim! Quero acompanhar-te!", acordando em
seguida, com o seu próprio grito. Acordou convencida de que o
marido estava morto, e de que o que tinha visto não fora um
sonho, mas o próprio Cêix. "Vi-o exatamente ali",
disse para si mesma, 'e parecia tão digno de pena. Está morto,
e em breve morrerei também. Como eu poderia ficar aqui enquanto
o seu corpo tão querido é arrastado pelas ondas do mar? Não te
abandonarei, meu esposo; não quero mais viver."
Assim que o dia raiou,
foi para a praia, em busca do promontório onde havia ficado até
vê-lo perder-se na distância. Enquanto olhava fixamente para o
mar, viu que alguma coisa foi-se aproximando cada vez mais, até
que percebeu tratar-se de um cadáver. Enquanto boiava lentamente
em sua direção, observou-o com o coração cheio de pena e
horror. Por fim, já estava perto do promontório, quase ao seu
lado. Era ele, Cêix, seu marido. Correu e lançou-se na água
aos gritos de "Meu amado marido!" quando então,
ó maravilha, começou a pairar por sobre as águas em vez de ser
por elas tragada. Viu que tinha asas, e que seu corpo estava
coberto de penas tinha sido transformada em um pássaro.
Os deuses foram generosos, e fizeram o mesmo a Cêix. Quando
Alcíone voou em direção ao corpo, este já não mais ali
estava, mas ele, também transformado em pássaro, veio no mesmo
instante juntar-se a ela. O amor que sempre os unira manteve-se
inalterável, e os dois pássaros são sempre vistos juntos, a
voar ou planar sobre as ondas.
Todos os anos há sete
dias durante os quais o mar fica calmo e sereno, e nem mesmo um
único sopro de vento vem perturbar-lhes as ondas. São os dias
em que Alcíone está chocando os ovos de seu ninho que flutua
sobre o mar. Assim que nascem os filhotes, quebra-se o encanto,
mas a cada inverno voltam esses dias de uma paz absoluta, que
então passaram a ser chamados "dias de Alcíone".
Quando
as aves serenas chocam os ovos sobre a onda
[encantada