1. OS PORTUGUESES NO CONGO
Os navegadores portugueses, lançando-se à exploração da costa africana e navegação através do Atlântico, deram início a uma das empresas mais empolgantes da História. Não pode deixar de causar admiração o facto de ser um pequeno e pobre País a realizar uma das mais difíceis, morosas e dispendiosas iniciativas que um povo jamais realizou. E não deve passar sem referência o pormenor curioso de se prolongar por espaço de um século — desde a segunda década do século XV até à segunda década do século XVI — sem denotar cansaço, sem que se tenha esboçado sequer a ideia da desistência. Se houve empresas humanas que tiveram repercussão na evolução histórica, os Descobrimentos marítimos portugueses não podem deixar de ser colocados em lugar destacado!
A gesta assombrosa das navegações através dos mares desconhecidos, importa dizê-lo, assentou um dos seus pilares básicos nas vantagens materiais que dela poderiam advir, mas baseou-se também no misticismo alimentado pelo ideal, na curiosidade científica e na atracção de enfrentar corajosamente o desconhecido, desvendando segredos e desfazendo a bruma do mistério. Os portugueses da época souberam integrar-se no espírito prático e sonhador, realista e quimérico, preso às realidades terrenas mas pairando alto nos domínios da imaginação, de que o Infante de Sagres foi o protótipo mais perfeito.
A expansão portuguesa através do mundo desconhecido, mas de maneira muito particular na África e na América, só se pode compreender, só se justifica e explica pela acção civilizadora que foi realizada ou que pretendeu realizar, em benefício dos moradores dessas regiões. A permanência lusa através de séculos de domínio apoiou-se no ensino ministrado aos naturais e na assistência religiosa prestada aos seus compatriotas, e depois também à população aborígene, que nela colaborou prestimosamente, umas vezes de maneira activa e outras vezes apenas de forma passiva.
Desde muito cedo Portugal tomou consciência de, a pouco e pouco, ir alargando os domínios temporais, dilatando o Império, e também os valores espirituais, difundindo a Fé. Luís de Camões, que viveu e escreveu a sua obra principal em pleno século XVI, começa o seu poema admirável salientando estes dois pontos. E não deixaria de dar apenas a imagem do pensamento colectivo, fixando-a em síntese lapidar, pois não pode sustentar-se que tenha sido ele a criar o conceito, que depois se expandisse e generalizasse!
Um dos objectivos principais que os portugueses tiveram em vista, em toda a sua expansão e depois no período de fixação, consistia em fazer novas cristandades, em dilatar a Fé. Ora a Fé pressupõe ensino aturado, explicação muitas vezes repetida, insistência teimosa na fixação de princípios morais e na aceitação de doutrinas por vezes incompreensíveis, os mistérios e dogmas religiosos. E, por sua vez, o ensino só produz resultados úteis e convincentes quando for reconhecida a sua vantagem prática imediata.
Poderia começar-se o estudo do que foi a tarefa educativa em Angola — e isso por mais estranho que possa parecer — dizendo que tem tanta idade como a presença portuguesa nestas paragens; mas poderia dizer-se também, sem faltar à verdade, que é nova e conta apenas algumas dezenas de anos. No primeiro caso, seria preciso ter em vista que toda a actuação, isto é, a actuação portuguesa, de que Angola é hoje continuadora imediata, foi contínua tarefa de assistência espiritual e de formação intelectual, difusa e geral mas constante e permanente, mais ou menos eficiente ou improfícua. Houve neste quadro manchas escuras e de grande tamanho, não podemos negá-lo nem esquecê-lo; no entanto, o inventário final dos resultados não deixa de ser positivo, traduzindo meritória acção. No segundo caso, quer dizer, ao pretendermos afirmar que a actividade educativa em Angola é nova de poucos decénios, tomaríamos em conta apenas a acção metódica e programada, a actividade oficial organizada e burocrática, com apoio decidido e fundamental dos dinheiros públicos.
Quando Diogo Cão chegou pela primeira vez ao Zaire, levou consigo para Lisboa alguns nativos africanos. Não se sabe ao certo se foram livremente, em jeito de aventura, ou se os portugueses exerceram sobre eles alguma violência. O descobridor de Angola pretendia apresentá-los ao rei e à corte como testemunho válido do seu importante descobrimento.
Depois de desembarcarem na Europa, não se perdeu a oportunidade de os ir integrando nos costumes, hábitos e práticas dos povos civilizados, dando-lhes a conhecer muitas coisas que eles até então ignoravam, tanto sob o aspecto material como no campo social ou religioso.
Pode, portanto, afirmar-se que a tarefa educativa e civilizadora de Portugal, em relação a Angola, começou com a primeira viagem de Diogo Cão. Positivamente, não foi imposta, foram os naturais, as populações silvícolas, que a assimilaram, vendo nisso vantagens evidentes.
O descobridor do Zaire, à semelhança do que acontecia com os demais almirantes, exploradores da costa africana e navegadores de mares desconhecidos, trazia consigo alguns degredados, a quem se confiavam as missões mais perigosas, sendo encarregados de devassar o sertão e entrar em contacto com ambientes geográficos e humanos carregados de ameaças mal definidas. Foram largados alguns deles nas margens do Congo. Os portugueses que Diogo Cão deixou nas terras do Enzaze, dominadas pelo poderoso Manicongo, cumpriram cabalmente a missão civilizadora que lhes fora indicada, influenciando beneficamente as populações locais. Por isso vemos que o senhor do Congo enviou pouco depois ao nosso rei o pedido de elementos que viessem intensificar e apressar a assimilação. Prova isso o facto de, logo nas viagens seguintes, se fazer permuta mais volumosa, indo para Lisboa um número relativamente elevado de naturais, com o objectivo expresso de aprenderem os rudimentos da nossa cultura e da nossa civilização; eram todos ou quase todos eles filhos dos mais poderosos senhores daquelas terras. A partir daqui, bastou dar seguimento a uma iniciativa já encetada e que jamais terminou.
Não pode dizer-se que só nos últimos tempos se prestou escrupulosa atenção aos esquemas de planejamento. Desde remotas eras que o homem planeou aquilo que tencionou fazer. A expansão ultramarina portuguesa fez-se, sem dúvida, dando realidade a projectos inteligentemente elaborados. No entanto, em certas actividades, ao tempo consideradas secundárias, os responsáveis deixavam-se arrastar quase sempre pelos impulsos de momento e pelo condicionalismo local e de ocasião...
Sob o aspecto evangelizador, houve desde o primeiro momento o cuidado de estabelecer programas que se foram cumprindo com o possível rigor. Quanto ao problema propriamente escolar, no sentido que modernamente damos a esta actividade, não haveria, certamente, um plano de antemão traçado. Os responsáveis mais directos deixaram-se arrastar pela força das circunstâncias e pelas condições de momento. Todavia, o resultado prático conseguiu-se quase sempre, com maior ou menor perfeição. Não se dava ainda, nesse tempo, à actividade educativa o carácter de ciência organizada e metódica; mas não deixou de se empregar um empirismo relativamente evoluído e de resultados bastante seguros.
O rei do Congo apercebeu-se logo da distância que havia entre a cultura europeia e a dos africanos. Por isso, teve o cuidado, como atrás salientámos, de pedir ao rei de Portugal que lhe mandasse padres, mestres de letras e oficiais mecânicos, não se esquecendo de sugerir que fossem enviadas também mulheres conhecedoras da realização prática dos serviços domésticos. Pretendia adoptar os costumes portugueses, naquilo que fosse possível, seguindo os exemplos e imitando os modos de viver do povo com o qual estabelecera contactos. Desejava ainda receber animais domésticos europeus e alfaias agrícolas. Entendia que as mulheres do Congo poderiam aprender com as mulheres brancas muitas coisas úteis, que desconheciam, como fosse cozinhar, cuidar da roupa, dos doentes, dos idosos e das crianças, fabricar o pão, que era então trabalho caseiro, como o era há poucos anos nas aldeias da Beira Alta ou de Trás-os-Montes.
As populações indígenas, por meio dos seus chefes mais categorizados, viram a vantagem da adopção de diversos usos e costumes estranhos, de aplicação e interesse imediatos. Os habitantes do Congo, naqueles remotos tempos, não deviam ter empenho especial nos problemas culturais nem estes se manifestavam com a veemência que nós imaginamos. Mas o importante é que isso existia em potência e era posto em equação.
No dia 19 de Dezembro de 1490, saiu de Lisboa, com destino à foz do Zaire, uma esquadra portuguesa em que viajavam alguns artistas mecânicos e com eles cinco missionários. Se exceptuarmos os que deveriam acompanhar as armadas de descobrimento e exploração anteriormente enviadas, eram os primeiros missionários católicos a tentar a evangelização do Congo e a promover a sua civilização, pelo ensino, pela catequização, pela assistência espiritual e temporal.
Desembarcaram no porto de Pinda, no dia 29 de Março de 1491, e iniciaram imediatamente os trabalhos da missionação. Nesse mesmo ano, foram baptizados os primeiros convertidos, as figuras mais destacadas daquelas terras, à frente das quais devemos colocar a família do régulo e os grandes do país. O rei do Congo recebeu no baptismo o nome de João, que era, como todos sabemos, o do monarca português, D. João II; sua mulher adoptou o nome de Leonor, em homenagem à esposa do Príncipe Perfeito, a fundadora das Misericórdias; o filho, sucessor na chefia dos seus povos, tomou o nome de Afonso, que era o do príncipe herdeiro da coroa lusitana, aquele que, no verão desse ano, iria morrer desastradamente em Santarém, caindo de um cavalo. Outros neófitos tomaram igualmente nomes dos maiores fidalgos e grandes de Portugal.
Divergem os historiadores, quando se referem à congregação religiosa a que deviam pertencer os primeiros missionários do Congo: — dominicanos, franciscanos, terciários de S. Francisco, cónegos regrantes de S. João Evangelista (vulgarmente chamados lóios), etc. Este problema talvez nunca chegue a ser completamente resolvido, porque todas estas congregações religiosas enviaram missionários às terras de Enzaze, nos primeiros tempos da fixação portuguesa.
Começou logo, como já vimos, o movimento de estudantes do Congo, que se deslocavam para Portugal, preparando-se nas escolas de Lisboa, de acordo com a tradição escolar portuguesa. Em 1492, por provisão do dia 5 de Abril, o rei D. João II mandava pagar ao reitor do colégio de Santo Elói, onde estavam hospedados os bolseiros do Congo, a despesa com eles feita na alimentação, no vestuário e nos estudos. O erário régio tomava sobre si o pesado encargo da sua sustentação.
Não queremos deixar passar sem referir, relativamente ao que se expôs no parágrafo anterior, que o Convento de Santo Elói, em Lisboa, no bairro designado Alfama, pertencia à Congregação dos Cónegos Regrantes (depois chamados seculares) de S. João Evangelista, o que prova estarem relacionados de longe com a evangelização do Congo.
Em 1504, o rei D. Manuel I mandou uma missão à foz do Zaire, constituída por sacerdotes seculares. Esta designação poderia adaptar-se aos padres lóios, como sabemos; a afirmação baseia-se no que se lê no Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, que usou os termos frades e clérigos... aos quais podem dar-se várias interpretações. Sabemos que esta missão levava entre outras coisas muitos livros de doutrina cristã, para serem usados no ensino dos mistérios e verdades da Fé, facilitando tal tarefa. No ano de 1508, partiram para estas terras, onde tencionavam dedicar-se à actividade missionária, treze padres lóios; e em 1521 seguiram mais quatro sacerdotes da mesma Ordem.
Em carta do dia 15 de Maio de 1516 (outros afirmam que foi datada em 25 do mesmo mês e ano), o vigário-geral de São Salvador, P. Rui de Aguiar, dava conta ao rei de Portugal das manifestações de fé e devoção do rei do Congo, indicando que havia na sua cidade e em todo o reino diversas escolas, onde se ensinavam as coisas da Fé e também a ler e a escrever, mostrando-se satisfeito com os resultados obtidos. E em 18 de Março de 1526, o rei do Congo, D. Afonso, pedia ao monarca português cinquenta missionários, que pretendia espalhar por diversos pontos dos seus dilatados domínios.
O rei do Congo, D. Afonso, foi um católico sincero, modelar na sua fé e nos seus costumes. Um dos seus filhos, D. Henrique, chegou mesmo a ser elevado à dignidade episcopal; recebeu a plenitude do sacerdócio em 1 de Dezembro de 1520; regressou às suas terras no ano seguinte, com outros companheiros de estudo, que também haviam recebido ordens sacras. Era este o célebre bispo titular de Utica, o primeiro bispo originário da África central e austral.
Admite-se a hipótese de ter havido pelo menos mais um ou mesmo dois bispos da sua família, sobrinhos daquele rei. Infelizmente, não foi encontrada confirmação documental para o que sugere um fragmento de uma carta do rei do Congo para D. João III de Portugal, de data ignorada mas que o P. António Brásio localiza pelo ano de 1526, em que se lê que seria grande mercê se regressassem de Roma ordenados bispos, podendo dar ordens, isto é, podendo ordenar padres naturais destas terras, o que se reputava serviço de Deus e acrescentamento da Fé católica.
No mesmo ano de 1526, D. Afonso I, rei do Congo, pedia autorização a D. João III para deter nas suas terras um carpinteiro e um piloto, de um grupo de dez portugueses que aprisionara, e entre os quais havia um clérigo de missa; o carpinteiro era-lhe muito preciso para fazer reparações e cobrir as igrejas, e o piloto tornava-se indispensável por ser bom gramático para assentar escola. Segundo os cronistas, o aprisionamento tinha sido efectuado nos portos do Soio ou Sonho, havendo quem afirme serem tripulantes de um navio francês... Como pode deduzir-se, havia entre os componentes do grupo oficiais mecânicos e pessoas com ilustração, um clérigo já ordenado sacerdote e um piloto que se entendia ser capaz de se transformar em professor.
O mesmo documento inclui logo a seguir o pedido do rei do Congo ao rei de Portugal, de lhe enviar três ou quatro bons mestres de gramática, de que tinha muita necessidade para darem continuidade ao ensino já principiado; estes destinavam-se ao ensino de matéria mais avançada; para as primeiras letras havia muitas pessoas da terra em condições de exercerem o magistério.
O rei de Portugal, embora com bastante demora, de cerca de três anos, satisfez o pedido. Recomendava que os quatro mestres fossem compelidos a viver em boa disciplina de vida e costumes; caso assim não acontecesse, deveriam ser recambiados para Lisboa, de onde iriam outros. No mesmo documento pode ler-se que o monarca lusitano estava informado de que o rei do Congo e a gente desta região davam grande importância à actividade docente. As suas escolas funcionavam sem interrupção e a própria rainha nativa era "mulher lida" e de grandes qualidades. Recomendava-se-lhe que tomasse conta das raparigas, instalando-as em casa separada, aparte dos rapazes, segundo o costume dos povos europeus. A fim de poderem colher-se melhores resultados, sugeria-se que as classes não fossem muito numerosas, para que cada aluno pudesse receber ensino eficiente e directo das matérias cursadas. Se o rei do Congo estivesse de acordo, poderia enviar para Lisboa alguns dos seus netos, que ali receberiam educação mais esmerada, sendo as despesas por conta do soberano de Portugal.
Aproveitava a oportunidade para referir que os antigos escolares falecidos sucumbiram não por falta de cuidado mas por fatalismo, tendo sido essa a vontade de Deus. Sentira profundo desgosto o monarca anterior, D. Manuel I, seu pai, com a morte dos bolseiros do Congo. Não devia ser isso motivo para deixar de mandar outros escolares, da sua família, fazendo a antecipada promessa de serem tratados e ensinados com todo o interesse, respeitando a sua dignidade e dando-lhes a consideração a que tinham direito.
No tempo do rei D. João III, foi para Lisboa um sobrinho do rei do Congo, cujo nome era D. Afonso, portanto igual ao do potentado. Sendo embora de cor escura, como azeviche, foi um cristal de vida e espelho de virtudes, no dizer poético de Frei Luís de Sousa, que se lhe refere. Manteve escola pública na capital portuguesa, fora do Bairro Latino ou Bairro das Escolas Gerais — no que teve tratamento de excepção, pois foi autorizado a estabelecê-la onde quisesse, o que era contrário ao estabelecido, pois todas deveriam limitar-se ao núcleo reservado aos escolares. Esta autorização deve ter-lhe sido concedida no decorrer do ano de 1533, em Junho ou Julho, no dia 6 de cada um destes meses. Era ainda aluno do Colégio de S. Domingos. A sua escola destinava-se a ensinar a Língua Portuguesa a outros estudantes naturais do Congo, pois não seria admissível que fosse professor de naturais do reino, onde havia muitos indivíduos melhor preparados do que ele estaria.
Sabe-se que nesse tempo havia em Lisboa bastantes negros, escravos e homens livres. Muitos deslocavam-se com o intuito de se educarem e aprenderem o que se ensinava nas escolas do reino. O P. António Brásio aceita a hipótese de aquela escola funcionar a expensas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que estava instituída na igreja do Convento de S. Domingos, desde o já afastado ano de 1460.
Conhecem-se numerosas cartas diplomáticas e outros documentos enviados do Congo para a Europa, Lisboa ou Roma, ou da Europa para a África. Tal facto prova que a cultura literária era dominada por numerosos indivíduos e tinha relativa extensão, pois de outro modo não se compreenderia tal volume de correspondência, tratando variados temas. E nem pode sustentar-se a hipótese de os letrados serem apenas os europeus residentes no Congo, porque são muitos os exemplos conhecidos de que os naturais, homens e até mulheres, aprendiam a ler e a escrever, atingindo tal nível de cultura que se consideravam capazes de ensinar...
A actividade cultural exercida através dos portugueses no Congo, desde os primeiros tempos, está suficientemente demonstrada e amplamente documentada. Na lista dos membros do cabido da sé de São Salvador, há referência ao P. João da Estrada, que exerceu as funções de mestre-escola pelo ano de 1610. E ainda no século XV — portanto mais de cem anos antes — há notícia da remessa de livros impressos e manuscritos. Em 1514 frequentavam as aulas cerca de quatro centenas de jovens, filhos das principais famílias, tendo sido construída uma vedação que impedia que saíssem do recinto escolar e se dispersassem. Havia vários núcleos estudantis espalhados pelo território subordinado ao rei do Congo, alguns deles a muitas dezenas de quilómetros da costa ou da cidade de São Salvador.
Muito curioso é o pedido feito em 31 de Maio de 1515, ao rei D. Manuel I de Portugal, em estilo que lembra o dos indígenas africanos com fraco domínio do idioma português, no qual se pedia a vinda de pedreiros e carpinteiros, para construírem uma escola onde os seus parentes e outros elementos da população pudessem estudar e aprender. Nessa altura havia já alguns nativos a exercer o magistério, e não apenas indivíduos do sexo masculino como também do sexo feminino. Uma irmã do rei conguês, que contava cerca de sessenta anos de idade, tinha aprendido muito bem e através dela outras suas conterrâneas e patrícias.
O rei deleitava-se com a leitura assídua de livros edificantes, nomeadamente os Evangelhos e outros textos tirados da Sagrada Escritura, a Vida dos Santos, e também uma obra ao tempo bastante divulgada, a Vita Christi, de Rudolfo de Saxónia.
O regimento dado a Baltasar de Castro, em Fevereiro de 1520, determinava que devia levar consigo pessoas que pudessem encarregar-se de ensinar a ler e a escrever. Deveria deixar em São Salvador dois homens brancos encarregados do magistério, se o rei da terra se não opusesse a isso. E seriam recebidos com agrado os seus próprios parentes que fossem enviados ao reino para se instruírem. Devemos admitir que as despesas com a sua educação continuariam a ser suportadas pelo erário régio.
Não queremos deixar passar sem a merecida referência a anotação do P. António Brásio, que põe a hipótese de a famosa Gramática de João de Barros ter sido elaborada tendo em mente as escolas ultramarinas. Tenha-se presente que foi o nosso primeiro compêndio do ensino e regência do idioma.
Ao princípio da história das relações luso-conguesas surge-nos o nome de um mestre-escola conhecido por Rui do Rego, que se distinguiu mais pelas suas actividades mercantis do que pela dedicação ao ensino e às actividades intelectuais. Tratar-se-ia de um daqueles missionários degenerados, de que teremos ainda ocasião de falar, ou de um leigo que fosse encarregado da missão docente?! Tudo nos leva a crer que se tratasse de um clérigo, até porque encontramos nele uma síntese bastante completa dos males de que enfermava a classe missionária.
Havia começado o intercâmbio de pessoas e bens entre as margens do Tejo e do Zaire. Tinha-se iniciado o movimento migratório de uma para a outra zona, com intuitos culturais, mas em que os naturais do Congo obtinham manifesta vantagem. Contudo, os males sociais manifestavam-se de forma tão saliente que houve necessidade de lhes dar remédio. Assim, em 1536, Manuel Pacheco dava conta da expulsão que, por ordem régia, tivera de executar, embarcando e repatriando alguns missionários que se estavam a comportar pouco convenientemente.
Em 1539, Gonçalo Nunes Coelho avisava o rei de que, neste particular, os negócios do Congo iam de mal a pior. Chegava mesmo a aconselhar que fossem expulsos dessas terras todos os brancos ali residentes, quer clérigos quer leigos, e se mandasse para lá gente nova. Aconselhava, como vemos, uma medida draconiana, que era impraticável e nada resolveria, porque seria difícil, se não impossível, encontrar a tal "gente nova", boa em tudo. Posta em contacto com aquele ambiente, corria o risco de se deixar influenciar também pelos defeitos locais. A sugestão, porém, dá-nos ideia exacta do estado geral do Congo e da amplitude dos males que se pretendia extirpar.
Poucos anos mais tarde, exactamente em 1548, um missionário escrevia aos seus confrades e superiores da Europa, comunicando que não se encontravam já pastores de almas de autêntico espírito apostólico, pois todos eles buscavam o seu interesse material, andavam quase sempre desavindos uns com os outros, o culto divino estava quase completamente abandonado, e os trabalhos da evangelização relegados para o último lugar, se ainda tinham algum!... Em carta de 28 de Janeiro de 1549, o rei do Congo queixava-se dos padres, e até do bispo — que era então o de São Tomé, D. Frei Bernardo da Cruz — assim como dos portugueses em geral.
Alguns anos atrás, em 1546, o rei do Congo, D. Diogo (neto de D. Afonso, falecido anos antes), mandava a Portugal, como seu embaixador, um sacerdote natural do Congo, filho de pais portugueses — o mais provável é que se tratasse de um casal misto, pois não há notícia certa de que pudesse ter nascido nessa altura, no Congo, um filho de mulher branca. Chamava-se ele Diogo Gomes e era um padre exemplar e de muita virtude, de acendrado zelo pelas coisas divinas. O rei, que não pode ser apontado como modelo de crente, tinha grande confiança nele. Entre os problemas apresentados à consideração do rei de Portugal, e dos ministros da corte de Lisboa, conta-se o pedido de mais missionários. Em consequência imediata desta súplica, insistentemente formulada, o rei D. João III chamou o provincial dos jesuítas e pediu-lhe alguns religiosos para mandar ao Congo. O P. Simão Rodrigues, que era então quem desempenhava aquele alto cargo dentro da Ordem, escolheu três sacerdotes e um escolar para trabalhar junto deles, cujos nomes a História conservou. Tratava-se dos P. Jorge Vaz, P. Jácome Dias, P. Cristóvão Ribeiro e do I. Diogo de Soveral. Aportaram a São Tomé, onde se demoraram a tratar-se das febres que já haviam contraído, e só chegaram ao porto de Pinda no dia 18 de Março de 1548. Foram recebidos na corte de Ambasse em 20 de Maio, domingo de Pentecostes.
O I. Diogo de Soveral dedicou-se com entusiasmo ao ensino das crianças, chegando a reunir cerca de seiscentos meninos e meninas, em diversas escolas, onde eram ensinados por monitores, que ele orientava. Não fazemos ideia exacta de que professores se tratava, que escolas eram, onde funcionavam, e que programa de estudo seguiam; provavelmente, não deveriam passar muito além das noções religiosas e literárias mais elementares!
Mostraram-se os jesuítas bastante zelosos, seguindo de perto e com muito escrúpulo as indicações directamente recebidas do rei de Portugal e dos superiores da Companhia de Jesus, honrando a esmerada formação recebida na Ordem e as normas rigorosas pelas quais se orientavam e a que obedeciam religiosamente. Mas o rei do Congo não era jesuíta e tomou atitudes um tanto desconcertantes, pois chegou a obrigar um padre a interromper a pregação, lançando-o fora da igreja, com grande afronta dele e escândalo dos assistentes, por censurar em público males gerais e que o próprio rei devia também praticar, pois se julgou directamente alvejado. Devemos atender a que este pouco mais tinha do que o nome de cristão.
O rei do Congo justificou-se perante o monarca português, dizendo que o missionário lhe dirigira insultos em público e o tratara por nomes injuriosos. Nada mais devia ser do que a adaptação perfeita da crítica oratória ao seu comportamento pessoal. A verdade, no entanto, deveria ser um pouco diferente do arrazoado das suas desculpas, pois pretendia dominar e dirigir toda a actividade dos missionários, cerceando-lhes os movimentos e limitando-lhes a liberdade de actuação. Ameaçou-os mesmo com a condenação à morte, atitude só concebível na África, e que na Europa seria praticamente impossível, atendendo às imunidades que defendiam a classe sacerdotal. Em tudo isto pouco mais fazia do que seguir os péssimos conselhos de alguns eclesiásticos, mesmo clérigos de missa, que não viam com bons olhos o zelo missionário dos jesuítas, cuja pregação e cujo exemplo era a condenação tácita do seu procedimento e da sua vida.
O embaixador do rei do Congo, que os havia conduzido para aquele vasto campo, voltou em breve a Portugal e deu conta do que se estava passando, referindo tudo ao monarca lusitano. Não deixou de relatar os grandes vexames a que estavam sujeitos, e salientou bem que eram injustamente tratados. Tinha embarcado com destino a Lisboa em Fevereiro de 1549. O tempo de sossego que gozaram no Congo foi quase nulo, visto que haviam chegado nove meses antes.
O P. Jorge Vaz voltou em breve a Portugal, gravemente doente, vindo a falecer pouco tempo depois. Os outros dois sacerdotes, seus companheiros de trabalho, que ficaram no Congo, vendo-se sem o conselho e a orientação amiga do que fora seu superior, deixaram-se seduzir pelas condições do meio e pela tentação das riquezas. Fizeram-se mercadores, à semelhança do que acontecera com tantos que os haviam precedido. Não tardou muito que se mudassem para São Tomé. O P. Jácome Dias voltou muito doente à Pátria, sendo mandado para a sua aldeia natal, em tratamento e cura de repouso; quanto ao P. Cristóvão Ribeiro, continuou a exercer actividades mercantis e o eco do seu procedimento em breve chegou ao reino.
Os responsáveis pelos assuntos da Companhia de Jesus quiseram tirar o caso a limpo. Enviaram às terras da África ocidental o antigo embaixador do Congo, agora padre jesuíta, sob o nome de P. Cornélio Gomes, com o encargo de fazer a indispensável inquirição e castigar o culpado — se culpado fosse. No exercício da sua missão, mandou prender o seu confrade, despojou-o do fruto das suas traficâncias e entregou estes bens ao hospital de São Tomé. O clérigo infractor mostrou arrependimento do seu modo de proceder, sujeitou-se à penitência que lhe foi imposta e pediu insistentemente que lhe permitissem continuar na Ordem. Veio sob prisão para Lisboa, onde foi carinhosamente recebido pelos seus confrades; em seguida, recolheu-se à sua aldeia natal; por fim desligou-se da Companhia de Jesus. Assim terminou a primeira experiência missionária jesuíta em terras do Congo.
A segunda tentativa que os padres jesuítas fizeram para se fixarem em São Salvador foi realizada pelo antigo emissário do rei, o P. Cornélio Gomes tendo como coadjuvante o P. Frutuoso Nogueira. Chegaram ao porto de Pinda em Junho de 1553. O rei não se mostrou muito disposto a seguir os conselhos do que fora seu embaixador, e até o via com certa desconfiança, por saber que era ouvido com muita consideração na corte de Portugal. Procurava contrariá-lo ostensivamente, mostrando o desprezo com que o tratava. Tinham muita culpa em tudo isto outros clérigos da cidade, pois atiçavam a má vontade do rei, dando-lhe conselhos pouco sensatos, pouco cristãos, e mesmo erróneos. Chegaram as coisas a tal ponto que o senhor do Congo o expulsou das suas terras, tendo chegado a Lisboa no dia 21 de Outubro de 1553.
Sabemos que o P. Cornélio Gomes ainda estabeleceu na região uma escola de primeiras letras, tendo elaborado um compêndio, mais provavelmente uma "cartilha", que fez imprimir no reino. Apesar de o rei não simpatizar com ele, reconheceu ou lhe fizeram ver o mérito do seu esforço, tendo pedido que lhe fossem enviados trezentos exemplares do trabalho, hoje inteiramente desconhecido.
Há notícia de uma obra composta por Frei Gaspar da Conceição, bilingue, impressa em 1556. A tradução para o quicongo tinha em vista facilitar a aprendizagem da doutrina cristã aos escravos das fazendas agrícolas de São Tomé, na quase totalidade provenientes desta região do continente africano. Naquele ano de 1556, o seu autor, juntamente com Frei Estêvão de Lagos, deslocava-se para terras de missão, levando consigo grande número de exemplares do seu trabalho catequético e literário. Procurava-se vencer as dificuldades da catequização dos cativos que não dominassem a língua portuguesa, que seria a quase totalidade deles.
A remodelação dos costumes, iniciada com as primeiras tarefas da evangelização do Congo, não foi profunda nem persistente, na maior parte dos casos, pois muitos convertidos voltaram às práticas gentílicas. Se o rei D. Afonso é apontado sempre como exemplo de fidelidade à nova crença, não podemos dizer o mesmo dos seus contemporâneos e seus conterrâneos. Seu pai, o rei D. João, apesar de baptizado, vivia quase como os que o não haviam sido, e parece ter chegado mesmo a tomar atitudes de perseguidor, se não de forma sistemática pelo menos de maneira bastante aberta, mesmo ostensiva, com certo cunho de regalismo dominador.
Várias causas se opuseram à difusão das novas doutrinas, nestas terras. Podemos apontar as principais, numa ordenação que não deve ser tomada como indicativo da sua importância:
Os nativos tinham as suas tradições e os seus hábitos, que a Religião Católica vinha em grande parte alterar e até destruir;
Os missionários nem sempre corresponderam à missão que exerciam, sofrendo a influência depauperante de um ambiente que em nada lhes era favorável, não encontrando aqui o apoio moral de um meio cristão;
Os missionários, sentindo a necessidade de conviver com os outros portugueses que aqui vinham com objectivos puramente materiais, foram influenciados por eles e seduzidos pela tentação das riquezas, muitos passaram a exercer actividades mercantis, usando processos pouco cristãos e até pouco honestos;
Alguns aproveitavam as oportunidades para se repatriarem, a pretexto da malignidade do clima, e muito especialmente aqueles que se tinham dedicado às actividades comerciais;
Os costumes de muitos deixavam bastante a desejar, se os cotejarmos com o que seria lógico esperar vivendo em meios europeus, sofrendo também neste ponto a influência nefasta do ambiente indígena e dos hábitos dos colonos;
O relacionamento social era deprimente, havendo entre os portugueses,
clérigos ou leigos, questões permanentes, desavenças
corrosivas, vinganças mesquinhas, vexames inacreditáveis,
cobiça desenfreada, devassidão corrente e quase geral.
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