7. DECADÊNCIA MISSIONÁRIA
A cultura intelectual não se compreende hoje sem a imprensa, valor positivo que pode servir para avaliar o interesse de um povo pelos problemas do espírito. Este valor manifestou-se logo em toda a sua extensão e importância a seguir à invenção de Guttemberg. Por isso, encontramos frequentes referências a obras editadas na Europa mas que se prendem de perto com a evangelização, escolarização e civilização ultramarinas.
À medida que o tempo passa, mais se acentua a importância do Ultramar na actividade literária portuguesa. Pode dizer-se que a maior parte dos grandes monumentos da cultura lusíada, dos séculos XVI, XVII e XVIII, foram inspirados na realidade ultramarina, uns de forma imediata e directa e outros indirectamente. Alguns cronistas, o grande Luís de Camões e outros épicos, sobretudo os dois brasileiros (Basílio da Gama e Santa Rita Durão), o fabuloso Fernão Mendes Pinto e os autores da literatura de viagens, os redactores anónimos das emocionantes narrativas que constituem a História Trágico-Marítima, e até parte dos escritores moralistas, de que se destaca o P. António Vieira com os seus impressionantes sermões, puderam enriquecer o seu estilo e dar vida às obras produzidas com a sua experiência pessoal do ambiente transmarino. Sabemos que o próprio João de Barros empreendeu a elaboração da sua Gramática, a primeira da língua portuguesa, pensando nos serviços que poderia prestar às escolas e professores das terras de além-mar.
A actividade civilizadora de Angola traduziu-se na elaboração de alguns trabalhos editoriais, à semelhança do que se verificou noutras paragens. Não podemos dizer que sejam muito numerosos; no entanto, regista-se número significativo de obras e de edições, a condizer com o nível intelectual angolano e as necessidades da sua escolaridade. Compreensivelmente, publicavam-se apenas obras catequéticas e de linguística; as demais vinham da Europa, aproveitando-se o que ali se usava e editava. A actividade missionária antecipou-se, neste particular, em mais de dois séculos às solicitações científicas, que só começaram a manifestar-se na segunda metade do século XIX.
No ano de 1624, no dia 4 de Março, tendo acabado de se imprimir a Cartilha da Doutrina Cristã, do jesuíta P. Mateus Cardoso, foi dada licença para circular ou correr, como naquele tempo se exigia. Este livro foi o primeiro que se editou numa língua africana falada no hemisfério sul, e estava escrito em português e em quicongo.
Olhando para o frontispício desta edição, que o P. António Brásio reproduz no seu livro História e Missiologia, verificamos que a obra foi composta pelo P. Marcos Jorge e acrescentada pelo P. Inácio Martins, tendo sido "de novo traduzida na língua do reino do Congo por ordem do P. Mateus Cardoso, teólogo, da Companhia de Jesus, natural da cidade de Lisboa", e dedicada "ao muito poderoso e católico rei do Congo, D. Pedro Afonso, segundo deste nome", tendo como título: Doutrina Cristã.
Logo em 1642, foi impresso na cidade de Lisboa o primeiro catecismo em quimbundo. Tratava-se de uma obra bilingue, pois tinha também o texto português. Foi organizado pelo P. Francisco Paccónio e reduzido a método mais breve pelo P. António do Couto. O título da obra era Gentio de Angola Suficientemente Instruído. Na gravura que o P. Brásio fez inserir no livro acima mencionado pode ler-se que se tratava de edição póstuma. Em 1661, saiu a segunda edição, mas desta vez trilingue, pois além do português e do quimbundo incluía o texto latino, a que era dado o título: — Gentilis Angolae Fidei Misteriis. Reconhecia-se ter grande interesse para uso das escolas no ensino das verdades da Fé e noções rudimentares da doutrina cristã. Continuou a editar-se durante mais de dois séculos, como veremos na devida altura.
Deve salientar-se que todos os intervenientes nas três edições referidas eram membros da Companhia de Jesus.
O missionário capuchinho italiano, P. Jacinto Vetralha, parece ter traduzido, em 1650, a cartilha de doutrina cristã do P. Mateus Cardoso, publicando-a desta vez em quatro idiomas, latim, italiano, português e conguês. O mesmo missionário escreveu uma gramática, com vocabulário da língua quicongo, editada em 1659, em Roma. O frontispício da obra está em latim: — Regulae quaedam pro difficillimi congentium idiomatis faciliori captu ad Gramaticae normam redactae. Veio a ser traduzida pelo bispo de Luanda, D. António Tomás da Silva Leitão e Castro (1884-1891), e publicada nesta cidade em 1886, em edição da Imprensa Nacional de Angola, recebendo então o título: —"Regras para mais fácil inteligência do difícil idioma do Congo". A primitiva edição tinha sido efectuada na tipografia da Sagrada Congregação da Propagação da Fé e levou no rosto uma gravura em redondo com legenda missionária, de inegável beleza.
Ainda dentro do século XVII, embora já no final da última década, foi dada licença para correr à primeira gramática de quimbundo de que se conhece a edição. Foi seu autor o jesuíta P. Pedro Dias que, como já referimos noutro lugar, a elaborou no Brasil e a fez imprimir em Lisboa, no ano de 1697. Afirma-se que a licença para poder circular lhe foi dada a 7 de Agosto desse ano. Pela gravura incluída no livro do P. António Brásio, já mencionado, pode verificar-se que era dedicada à Virgem do Rosário, "Mãe e Senhora dos mesmos Pretos".
A poucos anos da publicação da gramática de quimbundo, foi publicado um catecismo, em 23 de Dezembro do ano de 1704, ao qual se dá por vezes o nome de pastoral e cujo autor se diz ter sido o bispo de Angola e Congo, D. Luís Simões Brandão (1702-1720). Usou-se para a catequese e também para o ensino das primeiras letras, até ao princípio do século XX, portanto durante cerca de cem anos.
No ano de 1715, foi impresso em Lisboa um livrinho cujo título era: —Doutrina Cristã acrescentada com alguns documentos. Muitos missionários preferiam esta obra ao trabalho dos jesuítas, segundo a edição de 1642, outras vezes impressa e então ainda em uso. Estava também escrito em duas línguas, português e quimbundo. Era seu autor o P. José Gouveia de Almeida, natural de Luanda, onde exerceu entre outras as funções de presidente da Santa Casa da Misericórdia.
Em 1784, fez-se nova edição do catecismo inaciano, dos padres Paccónio e Couto, que o Marquês de Pombal havia proibido em 1772, sob o pretexto de que deveria usar-se somente a língua portuguesa nas actividades da evangelização. Os legisladores e os políticos não se dão conta, muitas vezes, do ridículo a que se expõem perante a História, ao tomarem certas medidas. A sua prepotência não se impõe aos estudiosos futuros. Reconhece-se facilmente que isso não era possível, no estado em que se encontravam então as missões portuguesas, que caminhavam a passos largos para a decadência e para o aniquilamento. A obra missionária, outrora tão cara aos nossos compatriotas, estava a definhar a olhos vistos!
Em 1765, já a nossa actividade evangelizadora estava bastante diminuída e entrava em pleno período de decadência. O fervor apostólico lusitano arrefecera. O que se fazia era mais de carácter burocrático, rotineiro, do que por exigências espirituais e respeito ao sentido ecuménico da Igreja. Assim, a Santa Sé viu-se na necessidade de erigir uma nova e vasta região missionária, a Prefeitura Apostólica do Loango, confiada aos cuidados de sacerdotes franceses, os quais arribaram àquela região logo no ano imediato. Mas também estes se sentiram pouco atraídos por aquelas terras e por aquelas gentes, e a iniciativa morreu, aguentando-se apenas durante escassos dez anos, manteve-se até 1776. Os missionários franceses sofreram a influência política e social do seu país, que não era favorável à divulgação da doutrina católica em terras de missão nem à aceitação dos sacrifícios que ela impõe. Reinava por toda a parte o racionalismo materialista, as ideias enciclopédicas haviam conquistado muitos espíritos e instalaram-se mesmo em cérebros clericais...
Quando a Sagrada Congregação da Propagação da Fé começou a enviar os seus missionários para o Ultramar Português, o Governo de Lisboa alarmou-se e entrou imediatamente em negociações com a Santa Sé, procurando defender o que tradicionalmente era e pretendia que continuasse a ser um direito lusitano. Como não foi possível substituir por missionários portugueses os missionários estrangeiros, ficou sem efeito o oferecimento da Sé Apostólica, que estava disposta a mandar sair os padres que enviara, à medida que pudessem ser estabelecidos no seu lugar sacerdotes de nacionalidade portuguesa e preparados em Portugal.
Nos primeiros tempos da expansão, até pelos meados do século XVII, os portugueses conservaram um fervor religioso e um interesse missionário digno dos maiores elogios, dos mais rasgados encómios. Dispersavam a sua actividade pelo Oriente, pelo Brasil, e ainda pelas inóspitas regiões da África. A partir daqui, começou a notar-se um acentuado arrefecimento de entusiasmo, que veio a dar num desleixo censurável e num abandono pecaminoso. Por isso mesmo, a partir de certa altura, começam a faltar referências às actividades missionárias de Angola, devido ao abandono quase sistemático das posições anteriormente ocupadas, umas vezes por incúria e outras por razões ponderáveis e importantes.
Para fazermos ideia mais exacta da situação, basta olhar para o panorama geral e para a situação normal do clero neste território. Em determinado momento do último quartel do século XVIII, a rainha D. Maria I pediu que lhe fosse enviado o relato completo e circunstanciado do estado da província, sob o aspecto religioso. As notícias remetidas de Luanda foram alarmantes. Então a soberana, por aviso régio de 17 de Junho de 1778, pediu aos bispos do reino, e de modo muito particular ao de Coimbra, que convidassem o clero secular que lhes estava sujeito a oferecer-se para ir para Angola, pois era absolutamente necessário dar novo incremento à obra evangelizadora, que precisava de ser desenvolvida e intensificada, e em que desde longa data Portugal estava empenhado. Nada encontrámos que nos indicasse ter aquele aviso tido a aceitação que D. Maria I esperava do zelo do clero diocesano português, que demonstrou não ser grande.
No dia 4 de Dezembro de 1779, chegou a Luanda uma missão composta por dezassete padres de diversas congregações religiosas e um sacerdote secular. Pretendia-se dar novo impulso à tarefa civilizadora. Esta iniciativa tivera também decidido apoio da rainha Piedosa e do seu ministro Martinho de Melo e Castro. Mas o mal que atacava as missões era crónico, quase endémico e não seria uma injecção de vitalidade que lhe daria a robustez e a força perdidas, no decurso de longas dezenas de anos.
Pouco tempo depois partiram para o Congo quatro missionários, sendo um deles sacerdote secular. Era este o bacharel em Cânones, Dr. André do Couto Godinho. A antiga cristandade de São Salvador não tinha então um único clérigo. Durante o trajecto, morreu o superior da missão, Frei Libório da Graça, no dia 6 de Outubro de 1780. Tinham partido de Luanda a 2 de Agosto, tendo feito diversas e demoradas paragens que se prendem com a actividade evangelizadora, pois de outro modo não se compreenderia tão grande dilação, visto que a chegada ao Congo se verificou já no ano seguinte.
No princípio do seu período de governo, Manuel de Almeida e Vasconcelos (1790-1797) informava que havia em Angola poucos indivíduos brancos e os que aqui viviam, na maior parte dos casos, eram de má índole. Quanto ao aspecto religioso, afirmava que a relaxação dos costumes chegara a termos extremos.
Reconhecendo o mérito dos capuchinhos italianos, continuaram a fazer-se diligências para os encaminhar para este campo de apostolado, tendo chegado dois religiosos a Luanda em Junho de 1791, Frei Raimundo Dicomano e Frei José Maria de Florença; em Agosto chegou outro missionário, Frei Fidelis de Ferraria.
O governador-geral comunicava, em 28 de Julho, a vinda de três religiosos degredados, Frei Pedro de Nossa Senhora do Carmo, crúzio (frade de Santa Cruz de Coimbra), apenas de ordens menores, Frei José Xavier Pereira Valente, religioso da Ordem de São Jerónimo, e ainda outro, franciscano da Ordem Terceira da Penitência, cujo nome não era indicado no documento em questão.
O governador-geral de Angola, D. Miguel António de Melo, conde de Murça, pedia ao príncipe-regente, em 3 de Outubro de 1797, que ordenasse aos superiores das ordens religiosas, dedicadas à actividade missionária, nomeadamente os franciscanos e os carmelitas descalços, pois mantinham convento em Luanda, que escolhessem membros dotados de verdadeiro espírito evangélico para virem doutrinar nestas terras. Esperava-se que pudessem juntar a força persuasiva de exemplos edificantes e de virtudes acrisoladas aos seus ensinamentos e pregação, combatendo a tibieza e o materialismo que se haviam generalizado. Ao mesmo tempo, informava a corte que os barbadinhos italianos eram os mais zelosos e exemplares missionários que trabalhavam nestas terras.
No dia 31 de Julho do ano imediato, comunicando a partida para a Itália dos missionários capuchinhos da província de Toscana, Frei José Maria de Florença e Frei Raimundo de Dicomano, confessava que deixaram aqui muitas saudades e grandes exemplos das suas virtudes. Pedia que viessem mais religiosos desta congregação, pois reconhecia serem os que mais convinham, os únicos que só cuidavam de exercer o melhor possível o seu ministério. Não se esquecia ainda de lembrar e salientar até que ficaram em Luanda somente três sacerdotes capuchinhos, o superior do hospício, um missionário enfermo e outro que tinha mais de vinte anos de estadia em Angola.
Em 1 de Junho de 1801, o mesmo governador-geral, o conde de Murça, D. Miguel António de Melo, propunha que fosse extinta a Junta das Missões, criada em Angola pela carta régia de 18 de Março de 1693, a que fizemos referência. Propunha igualmente que os párocos do sertão (poucos seriam!) fossem pagos pela Fazenda Real sem necessidade de apresentarem os atestados passados pelos capitães-mores, simplificando um tanto as exigências burocráticas.
No dia 31 de Outubro do mesmo ano de 1801, entre outras coisas, informava o Governo de Lisboa que não tinha chegado ainda a Luanda um religioso dominicano que vinha degredado para Angola, Frei Domingos de Nossa Senhora. E nesse mesmo dia informava, a propósito do requerimento de um sacerdote, que em seu entender "não devia ser deferido por alterar a verdade dos factos e caluniar o bispo". Continuamos a notar em Angola a presença de elementos indisciplinados do clero e o envio para este território de membros indesejáveis, com o correspondente abaixamento da vitalidade missionária.
Nos últimos tempos do seu governo, apresentou-se ao mesmo governador-geral o problema do pagamento da pensão aos carmelitas descalços. Além da quantia habitual, pediam importância igual pela pregação feita na catedral, nos domingos do Advento e da Quaresma. Como as relações entre o poder civil e o clero não eram perfeitamente cordiais, este simples caso deu motivo a descontentamento e desconfiança, com a correspondente e quase ridícula consulta às estâncias superiores. Notava-se também a tendência exagerada para a concentração dos poderes, sendo necessário recorrer a Lisboa mesmo para questões absolutamente secundárias e que bem poderiam resolver-se em Luanda.
Apresentando-se-lhe o problema da fundação de um convento novo, emitiu opinião desfavorável, aproveitando a oportunidade para salientar que os missionários de Angola, com excepção dos capuchinhos, "não tinham qualquer utilidade". Aqueles sim, levavam vida exemplar e edificavam os povos com o seu exemplo, com o seu trabalho, com as suas palavras e as suas virtudes. É interessante notar a insistência com que este e outros governadores elogiam os capuchinhos italianos, enquanto criticam e condenam os demais. O novo convento, a que D. Miguel António de Melo se referia, deveria ser estabelecido em Benguela, por iniciativa dos franciscanos, que ele dizia "serem prejudiciais em vez de serem úteis". A informação tem a data de 17 de Agosto de 1801, e leva-nos a perguntar se não seria demolidora!
O seu sucessor, Fernando António Soares de Noronha, logo em 2 de Junho de 1803 apresentou queixa contra algumas congregações missionárias, querendo mostrar que eram quase completamente inúteis e apoiando a sua opinião no parecer do próprio prelado da diocese — que então era D. Joaquim Maria de Mascarenhas Castelo Branco (1802-1807) —, pois só tratavam do que dizia respeito aos seus interesses particulares. A propósito dos respectivos conventos, sugeriu que o de Santo António ficasse a servir para o quartel dos oficiais, mudando-se os religiosos para o antigo convento dos jesuítas, extinguindo-se também o dos marianos. Propunha que os respectivos proventos fossem atribuídos à Misericórdia, porquanto fazia anualmente grande despesa com o tratamento de civis e militares que tinham necessidade de se curar no seu hospital. Quer-nos parecer que a sugestão não foi concretizada, pois não há notícia da mudança que se defendia. O convento de Santo António existia ainda à data da extinção das ordens religiosas, tendo sido demolido no tempo do governador-geral Francisco António Gonçalves Cardoso, pelo ano de 1868. Quanto aos religiosos designados por marianos, só poderiam ser os carmelitas descalços, cuja congregação tem como padroeira principal Nossa Senhora do Monte Carmelo, vulgarmente conhecida por Nossa Senhora do Carmo, e portanto pode ser-lhe aplicado aquele designativo. Além disso, só havia em Luanda as três famílias religiosas a que tantas vezes nos temos referido — capuchinhos italianos, franciscanos portugueses e carmelitas descalços — pois os jesuítas haviam sido expulsos quarenta anos antes.
No final do século XVIII, existiam em Angola trinta e nove sacerdotes, assim distribuídos: — vinte e seis seculares, sendo seis europeus, quatro brasileiros e dezasseis africanos; treze regulares, sendo três capuchinhos, cinco franciscanos e cinco carmelitas. Quanto ao clero regular, temos outra informação, também do final do século, embora de outro momento histórico. Por ela podemos fazer ideia mais exacta da situação; era constituído por seis carmelitas descalços, três capuchinhos italianos e seis franciscanos da Terceira Regra; apenas os capuchinhos nada tinham de especial a referir em seu desfavor. Um dos carmelitas estava suspenso de ordens, tendo sido enviado para Angola em cumprimento de pena de degredo, agravada com aquela suspensão; outro estava preso por ordem do prelado, em castigo de crimes gravíssimos, relativos ao ministério sacerdotal. Um dos religiosos franciscanos fora condenado a prisão perpétua por crime de homicídio e roubo; havia outro que cumpria pena de três anos de prisão, por delito de furto e esfaqueamento; o terceiro fora condenado a dez anos de degredo; finalmente, o quarto estava na África em cumprimento de pena judicial, de que não eram dados pormenores, tendo sido remetido para aqui pelo intendente-geral da polícia. Podemos completar as informações que vimos dando, reproduzindo de uma lista oficial a situação dos religiosos, missionários de Angola, referente a 3 de Maio de 1794; segundo ela, havia um capuchinho na Missão do Congo, outro no Hospício de Santo António, em Luanda, e um terceiro na Missão do Bengo; no convento carmelita de Luanda vivia um religioso da respectiva congregação; contava-se ainda na cidade um frade louco; estavam aqui três franciscanos, dois deles condenados a cárcere (ou degredo) perpétuo.
A primeira metade do século XIX, sendo de grande importância na História de Portugal, devido às profundas alterações registadas neste período e aos acontecimentos que então ocorreram — invasões francesas, mudança da corte para o Rio de Janeiro e seu regresso a Lisboa, estabelecimento do regime constitucional, independência do Brasil, guerra civil entre D. Pedro e D. Miguel, lutas liberais, revoluções internas — não ficou marcada na História de Angola, quanto ao aspecto cultural, missionário e escolar, por iniciativas dignas de registo e nem sequer podemos localizar referências abundantes, notando-se nos autores um silêncio que não passará despercebido.
Registe-se, no entanto, a tentativa de fundar em Luanda um museu, uma biblioteca e um jardim botânico, atribuída ao governador-geral António Manuel de Noronha, visconde de Santa Cruz, cujo breve período de administração se localiza nos anos de 1838 e 1839. Os frutos práticos da iniciativa não foram lisonjeiros e nem sequer satisfatórios.
A fundação do jardim botânico tinha sido já focada no ofício de 17 de Março de 1812, datado no Rio de Janeiro e subscrito pelo conde de Galveias. Nele se determinava que fossem tomadas providências para que se estabelecesse um horto farmacêutico em Luanda, onde seriam cultivadas plantas medicinais, aplicáveis no tratamento de diversas enfermidades, estranhando-se que não tivesse sido já tomada tal iniciativa, numa região em que a terra arável não tinha grande valor e o trabalho servil era barato... Em 5 de Novembro de 1814, voltava a falar-se no mesmo assunto, e por informações desta data ficamos a saber que havia sido encarregada da sua concretização a Santa Casa da Misericórdia de Luanda, o organismo que mais de perto deveria interessar-se por este projecto e o que tiraria dele maiores vantagens materiais. Outros documentos anteriores, de Novembro de 1812 e Outubro de 1813, tratavam também o mesmo problema.
Quanto ao que diz directamente respeito à actividade escolar e à missão civilizadora e evangelizadora, não podemos esquecer a expulsão das ordens religiosas, cuja vitalidade era quase inexistente e cuja acção prática era quase nula. O período de trinta e cinco anos, que vai de 1810 a 1845, em termos históricos não pode considerar-se extenso. No caso presente, porém, reveste-se de importância excepcional, porque antecede imediatamente a publicação de um decreto basilar na estruturação do ensino no Ultramar português e, consequentemente, em Angola. Os verdadeiros motivos e os fundamentos autênticos do desinteresse registado devem procurar-se mais nos meandros políticos seguidos pelo Governo de Lisboa do que nas necessidades, solicitações ou exigências das populações ultramarinas, europeias ou autóctones.
O decreto de 28 de Dezembro de 1833, que alguns autores dizem ser do dia 31 do mesmo mês e ano, determinava que os bispos do reino promovessem, entre os membros do clero das suas dioceses, o recrutamento voluntário de pelo menos duzentos sacerdotes que quisessem trabalhar nas missões católicas de Angola; através do respectivo aviso régio eram convidados todos os eclesiásticos zelosos a ir trabalhar neste vasto campo, oferecendo-lhes mesmo algumas vantagens materiais, embora não excepcionais. Nem um só se prontificou a ir para a África; por tal motivo, a iniciativa ficou infrutífera. Referimo-nos já a outra tentativa semelhante a esta, que também não deu frutos satisfatórios. Infelizmente, o ideal missionário era pouco apreciado pelo clero nacional português. Não esqueçamos que a Metrópole tinha, nesse tempo, abundância de sacerdotes e poderia ceder os missionários de que se precisava sem grande custo e sem afectar as obras católicas em que eles se ocupavam. A tibieza e o desinteresse que encontramos em Angola é o reflexo e, possivelmente, o fruto do que se estendia pelo reino. Em nota inserida na obra de divulgação histórica já várias vezes citada, o P. Silva Rego afirma que "a densa atmosfera que então se respirava não permitiu a realização deste generoso plano", e quanto à expulsão dos missionários e decadência da actividade evangelizadora afirma também que "não foi este decreto o único responsável pelo declínio das missões, pois as Ordens Religiosas viam-se minadas por dentro, por estranha força de dissolução; rareavam as vocações; as missões eram, em geral, as mais visadas por esta decadência".
Chegou-se, finalmente, ao ponto crítico da História das Missões Católicas Ultramarinas. Em 1834, pelo famoso decreto do dia 28 de Maio, as congregações foram banidas de todo o território nacional português e a obra civilizadora sentiu a dureza de tão profundo golpe. Apontamos aquela data por ser a que se encontra no livro do P. Almeida Silvano, Defesa das Ordens Religiosas e Análise do Relatório do Mata-Frades; também se encontram autores que afirmam ser do dia 30 do mesmo mês; e não é difícil encontrar historiadores abalizados que consideram aquele decreto anticonstitucional, apontando as razões em que se fundamentam.
A actividade missionária nas terras angolanas sofria de uma anemia profunda e orgânica, de verdadeira adinamia. O número de membros do clero regular não está perfeitamente determinado, mas não deveria ir além de meia-dúzia. Quanto ao clero secular, havia vinte e sete sacerdotes, sendo vinte e três angolanos, três portugueses e um brasileiro.
Ainda nesse ano de 1834, a Junta Governativa ou Junta Provisória do Governo de Angola, como também é conhecida, informava que se tinha em vista estabelecer na cidade de Luanda uma casa para a educação de meninos órfãos e pobres, aproveitando as instalações do antigo hospício ou convento dos capuchinhos, disponíveis devido à expulsão dos frades. O relatório oficial afirmava que a instrução da mocidade estava aqui totalmente parada, havendo o perigo de os jovens se tornarem elementos nocivos à sociedade. Salientava que a iniciativa ainda não tinha sido concretizada por falta de professores, não se reconhecendo aos religiosos das casas que haviam sido extintas qualidades bastantes para se desempenharem de tal tarefa. E por fim pedia que a pretensão não fosse considerada utópica nem temerária. O documento em que isto se lê tem a data de 28 de Novembro de 1834.
Finalmente, no dia 7 de Maio de 1835, embarcava no porto de Luanda, com destino à Itália, o último missionário capuchinho, Frei Bernardo do Burgio, que fez a viagem a bordo do brigue "Audaz". Por coincidência notável, no dia em que se completavam cento e treze anos, desembarcavam de novo em Angola os missionários da Ordem dos Capuchinhos, a fim de retomaram o trabalho da missionação. Tinham sido convidados pelo prelado da diocese, o arcebispo de Luanda D. Moisés Alves de Pinho, depois antístite resignatário, titular de Perdices. Haviam saído em 7 de Maio de 1835 e regressaram a 7 de Maio de 1948.
Quando se executou o decreto que expulsava as ordens religiosas, o Conselho Governativo de Angola era presidido por um sacerdote, o cónego Leonardo José Vilela; os restantes membros eram Cândido Francisco da Silva e Inocêncio Matoso de Andrade Câmara. Havia então muito poucos missionários do clero regular nesta província. Costumam apontar-se apenas os nomes dos superiores de cada um dos conventos — Frei Marcelino do Coração de Jesus, dos carmelitas descalços; Frei Alexandre Cardoso, dos terceiros franciscanos; e o já citado Frei Bernardo de Burgio, dos capuchinhos italianos. Nunca nos foi possível saber ao certo quantos foram os frades expulsos nem identificá-los pelo nome.
O governador do bispado e ouvidor interino, cónego Leonardo José Vilela, era certamente o sacerdote brasileiro de quem atrás se fala. Nascera na cidade e diocese de Mariana, no Brasil, pelo ano de 1789, e veio a falecer em Luanda no dia 17 de Julho de 1841, contando cerca de cinquenta e dois anos de idade. Foi eleito vigário capitular em 27 de Fevereiro de 1826, obtendo sucessivas reconduções e confirmações no cargo. Ele era o que se diz "pau para toda a colher". Em 19 de Junho de 1823 prestou juramento à Constituição Política Portuguesa de 1822, sendo pároco da catedral; no dia 6 de Novembro de 1828 assinou o juramento de fidelidade ao rei D. Miguel I e era então deão e vigário-capitular; passou depois a colaborar dedicadamente com os governos liberais, chegando a ser apresentado para bispo da diocese de Angola e Congo, na data de 27 de Novembro de 1840, mas a Santa Sé nunca chegou a confirmá-lo. Vivia-se ainda o período de dificuldades diplomáticas que se seguiu à luta entre D. Pedro e D. Miguel. A intransigência e o pouco senso do Governo português fez com que o reatamento das relações entre os dois poderes se prolongasse mais do que o conveniente, podendo aceitar-se também que o Vaticano se não mostrasse grandemente apressado em resolver problemas e solucionar dificuldades. As autoridades de Lisboa pretendiam, entre outras coisas, que fossem destituídos todos os prelados diocesanos apresentados e confirmados no tempo de D. Miguel I, o que era uma exigência inaceitável e com aspectos ditatoriais e modos regalistas, pretendendo ao mesmo tempo que fossem conservados nas respectivas honras os eclesiásticos que haviam usurpado as sedes episcopais e os que D. Maria II fora apresentando.
O facto de Portugal não manter relações diplomáticas com a Santa Sé, nesta década, fez com que o Papa criasse regiões missionárias em diversos pontos do globo, interferindo com territórios até essa altura sujeitos ao padroado português, o que prejudicou muito os interesses e o prestígio lusitano, além de que contribuiu para criar problemas graves no futuro, os quais exigiram de parte a parte estudo apurado, cedência de privilégios e regalias, obrigando a emitir novos títulos de garantia. Bastará recordar que, em 24 de Abril de 1838, pelo breve Multa praeclara, o Papa Gregório XVI desligou da jurisdição portuguesa todas as cristandades situadas fora dos limites das possessões ultramarinas sobre as quais Portugal exercia o domínio. Devemos atender a que, nesta altura, os limites geográficos territoriais de Angola não tinham ainda sido definidos...
Este período difícil da História Ultramarina de Portugal é muitas vezes designado por "cisma português", embora a expressão não seja exacta, pois nunca houve explanação de doutrinas diferentes das que a Igreja apresentava. Terminou, praticamente, em Maio de 1841, com a entrega das credenciais do enviado extraordinário do Governo de Lisboa junto da Santa Sé, o visconde da Carreira, Luís António de Abreu e Lima, e com a expedição do breve papal Nullis explicari verbis, em que o Santo Padre se congratulava pela aproximação empreendida.
No dia 15 de Outubro de 1840, abriu em Angola o último concurso para o provimento de benefícios eclesiásticos. O Estado começava a abandonar um serviço que pouco lhe interessava ou pelo menos assim parecia; a Igreja, embora a aparência denote o contrário, também não tinha grande interesse prático em conservar uma protecção que tinha mais de sujeição e dependência do que de apoio eficaz, decidido e desinteressado. O regalismo seguia o rumo dos seus próprios passos. A Igreja ia sentir pesadamente, em todos os pontos geográficos de dominação portuguesa, o desagrado daqueles que pretendiam dispor dos seus serviços gratuitamente ou então retribuindo-os com afrontas e calúnias, com injúrias e perseguições. As autoridades eclesiásticas foram aguentando a situação, em nome de uma incompreensível fidelidade, até que apareceu um político mais decidido ou mais atrevido, já na vigência da República, que cortou os laços que ainda prendiam entre si os dois poderes — que devem colaborar mas conservar-se independentes, o que por vezes é mais fácil de dizer do que de fazer.
Pouco há a expor acerca do ensino secundário em Angola, no período que estamos a focar e até mesmo no que se lhe seguiu. Todavia, não deixámos de anotar uma ou outra tentativa, uma ou outra experiência realizada. Se mais nada dissemos foi porque mais nada conseguimos saber, e isso deve-se em grande parte ao facto de não terem produzido resultados apreciáveis.
Não devemos esquecer que o ano de 1836 ficou profundamente marcado no panorama escolar português, com a criação do ensino primário obrigatório e gratuito e com a fundação dos liceus distritais. O texto legal, publicado em Novembro desse ano, não exerceu papel de importância fundamental no Ultramar, nomeadamente em Angola, mas deverá admitir-se que conservou a validade legal a qual em pouco ultrapassa a inutilidade prática. Um ou outro político mais audacioso ou mais bem intencionado procurou adaptar o texto daqueles diplomas às condições do ambiente africano, mas os resultados foram pouco animadores.
Apesar de se saber que o ensino em Angola, antes de 1850, em pouco ultrapassa os desejos louváveis, as aspirações longínquas e os projectos idealistas, a recapitulação dos passos que se deram e das dificuldades que se venceram ajuda-nos a compreender melhor as condições de vida que foi preciso enfrentar e a avaliar mais exactamente as contrariedades que surgiram, neste longo e espinhoso caminho. Assim se conseguiu estabelecer uma orgânica escolar que se foi enriquecendo pouco a pouco e se vai estruturando cada vez melhor, à custa de enormes dificuldades e de tentativas mais ou menos satisfatórias, no dilatado caminho que ainda falta percorrer!
Antes de 1851, segundo Ávila de Azevedo, o ensino em Angola estava entregue aos jesuítas. Ora não podemos esquecer que haviam passado noventa anos sobre a data da sua expulsão. Aquele autor, ao falar dos jesuítas, deveria ter em mente as restantes ordens religiosas, pouco antes extintas e os seus membros expulsos de Portugal e seus domínios. Assim, poderemos compreender melhor o que outro autor afirma do ensino, nesta província, referindo-se à segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, salientando que quase desapareceu. Isto significa que diminuiu bastante em relação ao período anterior, apesar dos esforços feitos no sentido de se estabelecer aqui o ensino público produtivo e eficiente.
À semelhança do que sucedeu em Portugal no reinado de D. Maria II, fizeram-se em Angola as primeiras tentativas de estruturação dos serviços escolares. Mas nós sabemos muito bem que a própria parcela territorial europeia, com tradição de alguns séculos, teve de enfrentar dificuldades enormes, que só foram vencidas nos meados da presente centúria, ainda hoje não completamente dominadas. Na África, onde não havia essa tradição e onde o número de pessoas civilizadas era relativamente pequeno, em percentagem bastante baixa com o cômputo total da população, onde a maior parte passava uns anos a amealhar um pecúlio ou fortuna que lhe permitisse viver desafogadamente na Europa, onde muitas vezes não vinham as mulheres nem os filhos daqueles que aqui labutavam, onde as frequentes deslocações dos funcionários, dos militares, dos comerciantes e dos colonos impediam obras fixas e estáveis, as dificuldades encontradas foram incomparavelmente maiores do que em Portugal.
O estudo do desenvolvimento da cultura intelectual, no decorrer dos tempos e na crónica das instituições que com ela se relacionam, não é uma simples e banal curiosidade histórica e literária, mas sim uma actividade que, uma vez satisfeita, se desdobra em prazer e em utilidade. Procurámos dar uma visão panorâmica exacta das condições de vida que predominavam em Angola, no decurso dos primeiros séculos da sua História, fixando-nos sobre pormenores interessantes. Na impossibilidade de os focarmos todos e de os seguir sistematicamente, passámos de uns para os outros de acordo com as exigências do relato e as possibilidades de consulta que deparámos. Procurámos não carregar demasiado nas cores sombrias e nem enfeitar excessivamente o quadro observado. Tivemos a preocupação do equilíbrio, o respeito religioso à verdade e a deliberada intenção de evitar que a narrativa deformasse os factos ou a imagem das pessoas.
Registámos iniciativas cheias de elevação e isentas de mácula, e referimo-nos também a defeitos de actuação, quando surgiu a oportunidade; exaltámos virtudes e apontámos imperfeições, fugindo de as criticar abertamente; referindo com certo desenvolvimento o que se fez em períodos luminosos, não deixámos de focar e talvez ainda com maior desenvolvimento e mais profundamente os tempos e as causas da decadência.
Os autores que se debruçaram sobre este tema, procurando explicações válidas para os factos e para as suas consequências, apontam algumas causas principais da decadência missionária sem, todavia, conseguirem esgotar as razões que podem aclarar o acontecido. As mais salientes são as seguintes:
Os institutos religiosos e as ordens monásticas deixaram de enviar missionários para as terras ultramarinas mesmo quando o clero na Europa era abundante, suficiente ou até excessivo, porque pela dissolução de que sofriam e influências deletérias que as minavam não estavam dispostos a enfrentar as dificuldades que os primitivos missionários procuravam com enternecedor cuidado;
Os processos de recrutamento e formação cultural e intelectual, religiosa e moral, dos membros dos institutos missionários enfermavam de graves defeitos, pelo que muitos sacerdotes, tanto regulares como seculares, tinham costumes duvidosos e até moral francamente negativa, pondo em causa a pureza das intenções e os frutos da evangelização, mal este que, em vez de ser combatido tomou com o tempo proporções maiores;
Os membros indesejáveis do clero eram frequentemente deportados para a África, tal como sucedia com os leigos, livrando a Metrópole dos elementos que se mostravam turbulentos, imorais ou perturbadores da ordem social;
A expulsão dos jesuítas prejudicou muito a acção missionária, deixou as actividades a que eles se dedicavam com maior interesse, as escolas, sem elementos que lhes dessem continuidade, quebrando-se assim uma sequência de serviços necessários ao desenvolvimento e progresso ultramarino, pois eram ainda os mais zelosos e os mais esforçados;
A expulsão das congregações religiosas veio causar
maior descalabro e atraso na ocupação e civilização
da África, por quebrar uma cadeia de actividades que se mostravam
anémicas e inoperantes, consequentemente infrutíferas, mas
que deveriam ter sido antes revitalizadas, incentivadas, melhoradas e não
suprimidas.
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