10. SITUAÇÃO ECLESIÁSTICA
Em consequência da expulsão das ordens religiosas de todo o território nacional português, em 1834, o vasto solo de Angola ficou desprovido de actividades missionárias, pois as missões fecharam todas. Os religiosos, que já antes mostravam pouco interesse por uma região em que a morte campeava livremente e a duração média da vida, depois de desembarcarem nestes portos, era extremamente baixa, viram-se agora desobrigados desta tarefa e da responsabilidade dela, deixando o gentio entregue aos seus costumes mais atrasados e práticas mais cruéis.
Não ficou em Angola, efectivamente, nenhuma missão congregacionista e também as não havia do clero secular, que mal sustentava as paróquias das principais povoações, deixando mesmo algumas delas desprovidas de assistência religiosa e chegando a concentrar-se todo na cidade de Luanda. Não havia abundância de clero, mas também faltava o espírito de sacrifício e dedicação que levasse os clérigos a preocupar-se com a evangelização do sertão. Por isso se diz, com verdade, que a obra missionária angolana atingiu, nos meados do século XIX, o zero absoluto. Trabalhavam aqui, por volta de 1850, cinco sacerdotes; em 1835 ainda havia vinte e sete clérigos, sendo vinte e quatro nativos. Muitas das antigas paróquias estavam abandonadas e a actividade apostólica quase chegou a ser encerrada.
A falta de missionários, que se seguiu à expulsão dos jesuítas em 1759 e à extinção das demais ordens religiosas em 1834, veio agravar ainda mais o antigo mal, acentuando-se os defeitos que a decadência monástica vinha fazendo sentir desde há muito tempo. Em consequência disso, a soberania portuguesa assim como a jurisdição dos prelados sofreram consideráveis limitações.
No primeiro caso, basta recordar que muitos pontos geográficos, que Portugal considerava sujeitos à sua autoridade e à obediência aos seus governantes, lhe foram violentamente arrancados; outros foram energicamente contestados, tendo de sofrer vexames que poderiam ter sido evitados, se a política ultramarina do Governo português não tivesse sido tão infeliz, durante períodos relativamente longos. Seguindo embora uma linha de conduta quase inalterável, nem sempre a actuação prática e imediata era idêntica; alguns políticos mostraram ser dotados de sentimentos humanitários destacados e de senso administrativo invulgar, tornando-se credores do respeito e da gratidão dos povos africanos.
No segundo caso, e é esse que pretendemos focar com maior incidência, verifica-se que a zona de jurisdição do bispo de Angola e Congo sofreu notável diminuição, sendo criadas duas prelazias ou prefeituras apostólicas em território que até então havia estado, pelo menos teoricamente, dependente da sua autoridade, uma ao norte, a do Congo, e outra ao sul, a da Cimbebásia.
A Sagrada Congregação da Propagação da Fé enviou missionários estrangeiros para diversos pontos, suprindo assim a falta de sacerdotes missionários portugueses, que não havia, e o ardor missionário, que se tinha perdido. Estes religiosos receberam o encargo de fundar novas cristandades e de pastorear as que ainda tivessem tradições, como a do Congo. Por isso, aquele dicastério apostólico começou a exercer jurisdição em terras que, em teoria, deveriam estar na dependência do prelado de Luanda. Aparecem-nos, nesta altura da História das Missões Angolanas, sacerdotes de outras nacionalidades europeias, que temos de considerar grandes nos anais da actividade missionária lusíada, pois o seu fervor religioso e o seu inflexível carácter não colidiram com os interesses da terra em que vieram a exercer a actividade missionária e nem com os direitos das autoridades que nelas exerciam funções soberanas.
No ano de 1845, a diocese de Angola e Congo foi desligada da sé metropolitana da Baía, no Brasil, da qual era sufragânea, em consequência da separação deste país do conjunto nacional português, proclamando a independência. Passou a estar incorporada na província eclesiástica de Lisboa, isto é, passou a ser sufragânea do Patriarcado. A subordinação à sé brasileira começara em 1677.
Em 6 de Junho desse mesmo ano de 1845, a rainha D. Maria II aceitava a escusa do bispo eleito de Angola, D. João Baptista de Castro, que justificou a sua atitude invocando a falta de saúde. Tinha sido apresentado em 8 de Agosto de 1843. Não conseguimos identificar esta individualidade histórica; não faz parte das listas de bispos titulares das dioceses portuguesas, mas isso não impede que tenha sido bispo auxiliar de alguma delas. Também poderá ter acontecido que a Santa Sé o não confirmasse, não chegando a receber a ordenação ou sagração episcopal. As relações de Portugal com o Vaticano não eram muito ortodoxas.
No dia 8 de Maio de 1846, o P. Bernardo José Pinheiro foi nomeado para o cargo e lugar de pároco da cidade de Benguela. Antes de tal data, esta capital não tinha o serviço religioso devidamente assegurado; pelo menos passou grandes períodos sem assistência eclesiástica, que naquele tempo era quase tudo o que podia fazer-se pela elevação social e cultural de qualquer povoação ou sociedade humana, em Angola. Não podemos deixar de ter isso em conta, para não sermos levados a fazer juízos temerários, apreciações erróneas e deduções falsas; devemos ser suficientemente tolerantes, abstraindo dos nossos sentimentos e hábitos, procurando compreender as condições e o ambiente em que os nossos antepassados de há século e meio tiveram de viver. Essas condições não se alteram a posteriori pelo simples facto de nós as não compreendermos ou não aceitarmos. A verdade histórica é inalterável; nós é que nem sempre a abrangemos perfeitamente.
O sacerdote acima indicado, P. Bernardo José Pinheiro, tinha exercido antes o ministério paroquial em S. José de Encoje, para onde foi nomeado em 4 de Junho de 1841, fazendo-se referência à sua colocação na igreja de S. José, de Pungo, no distrito de Dande ou Dange, em 1 de Dezembro do mesmo ano, concluindo-se de análise dos topónimos que deve ser o mesmo lugar. Este missionário veio a falecer em Ambaca, onde trabalhava, no dia 9 de Fevereiro de 1853.
Com data de 22 de Janeiro de 1849, aparece-nos a Bula da Cruzada a contribuir para a manutenção das escolas do ultramar, sobretudo as que se dedicavam ao ensino das verdades religiosas e tinham em vista a difusão do Evangelho entre as populações, assim como a formação de pessoal missionário. As disposições em causa foram renovadas e actualizadas em 1856 e em 1862. O decreto de 12 de Agosto de 1856 foi publicado no Boletim Oficial de Angola em 7 de Fevereiro de 1857; por ele se criava, em Portugal, o Colégio das Missões Ultramarinas, destinado à instrução e educação dos candidatos à vida eclesiástica, à preparação de missionários. Ficou estabelecido em Cernache de Bonjardim, onde já funcionara também o Seminário das Missões da China, abrangido pelo decreto da extinção das ordens religiosas, em 1834. Em 20 de Setembro de 1851, havia sido criada a Junta Geral da Bula da Cruzada, que tinha como função principal ordenar a recolha e aplicação dos respectivos fundos monetários. O Papa Clemente XI, pela bula Ex parte regiae majestatis tuae, de 16 de Janeiro de 1721, havia fixado a importância de quinze mil cruzados, ou seja seis contos de reis, para auxílio às missões católicas do ultramar português.
Angola não possuía condições que permitissem a preparação intelectual e religiosa dos candidatos ao sacerdócio. Esta deficiência era suprida enviando os jovens seminaristas para o Brasil ou para a Europa, onde encontravam ambiente e facilidades que Luanda não podia proporcionar-lhes. Entendia-se ser vantajoso levar os estudantes para meios sociais mais evoluídos, pois permitia-lhes receber melhor formação intelectual e moral e, além disso, notava-se neles o gosto de conhecer novas terras e contactar com outras populações, circunstância que tinham em muito apreço, que os lisonjeava e de certo modo os engrandecia aos olhos dos seus conterrâneos. As próprias autoridades, em documentos oficiais, aceitavam a vantagem do contacto com o ambiente metropolitano, acreditando que ficavam mais portugueses e passavam a dominar melhor o respectivo idioma, que quase sempre vinham depois a ensinar, na qualidade de professores.
A fim de se prepararem para o sacerdócio, seguiram para Portugal, em 18 de Abril de 1854, três nativos angolanos; pouco depois eram enviados outros três. Passaram a cursar a secção missionária do Seminário Patriarcal de Santarém, tendo-se ordenado três, metade dos que foram enviados.
A Santa Sé, como já sabemos, procurou mandar missionários para os territórios africanos, inclusive os que estavam sob o domínio português. Ao princípio, o Governo opôs algumas reservas a esta iniciativa, mas por fim teve de aceitar a ideia. Não tinha pessoal missionário que tomasse conta dos trabalhos apostólicos, e por isso justificava-se o recurso a religiosos de outras origens, honrando o seu nome, a doutrina que pregavam, a pátria natal, assim como o país que os aceitava, Portugal, e aquele que directamente serviram, Angola.
De longe em longe mandavam-se missionários ao Congo, para se dar a aparência de continuidade à antiga acção evangelizadora, a que em diversos lugares nos temos referido. No dia 18 de Julho de 1746, faleceu ali o cónego magistral da catedral de Luanda, Dr. Pantaleão das Neves Fronteira, que nascera em Portalegre; havia partido da capital de Angola para São Salvador em 1742.
O muito conhecido religioso capuchinho Frei Raimundo de Dicomano partiu também para aquela missão em 28 de Agosto de 1792, não sabendo se demorou muito a regressar.
No ano de 1855, o rei do Congo pediu às nossas autoridades que lhe enviassem missionários, pelo menos um sacerdote que exercesse o ministério naquelas terras, dando prosseguimento aos trabalhos de evangelização outrora ali desenvolvidos, sobretudo nos primeiros tempos da presença portuguesa nestas paragens. Há muito que esta notável cristandade fora praticamente abandonada. O governador-geral propôs ao vigário-capitular as bases do plano a executar, referindo-se às vantagens da evangelização do Congo e à necessidade de a promover. Em 4 de Agosto foi nomeado para seguir para São Salvador o cónego da sé catedral de Luanda, P. Domingos Pereira da Silva Sardinha, sacerdote nativo de Angola, que partiu para aquela povoação em Setembro seguinte. O pedido do rei do Congo tinha sido feito em 26 de Julho. Isso prova que houve interesse excepcional em dar andamento rápido a esta justa pretensão. A bacia do Zaire começava a estar em perigo, ameaçada por influências europeias estrangeiras. Todavia, deve salientar-se que, no decorrer da História de Angola, se registam muitos outros pedidos de missionários feitos pelos reis do Congo sem serem atendidos, por falta de clero e por condenável incúria.
Pelo ano de 1866, foi necessário recorrer ao próprio vice-reitor do seminário-liceu de Luanda, o cónego da sé, P. António Maria Ramos de Carvalho, quando se reconheceu a vantagem, a conveniência e a necessidade de mandar um sacerdote ao Congo. Exercia cumulativamente com aquelas as funções de pároco da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, a chamada matriz, na cidade alta. Foi nomeado para ir em missão a São Salvador no dia 10 de Maio; regressou no princípio do ano seguinte, muito doente.
Como se vê noutro lugar, em Julho de 1872 foi enviado em missão ao Zaire o conhecido missionário e professor de Luanda, P. António Castanheira Nunes, que se demorou na antiga cidade episcopal perto de meio ano. Tinha o encargo expresso de acudir às necessidades espirituais da cristandade de São Salvador e, ao mesmo tempo, fazer as exéquias de sufrágio pelas almas da rainha D. Maria e de D. António, filho do rei, que haviam falecido.
Em 28 de Julho de 1876, foi oficialmente determinado que se abonassem as ajudas de custo ao P. Boaventura dos Santos, que também tinha sido nomeado para ir em missão ao Congo a fim de prestar assistência aos fiéis daquelas afastadas regiões.
Em data mal determinada dos meses de Abril ou Maio de 1877, a Junta-Geral de Fazenda sugeria que fosse aumentada a verba paga aos missionários mandados ao Congo, em trabalhos apostólicos, assim como aos demais missionários de Angola, atendendo aos altos serviços que prestavam à causa da civilização e do progresso do país.
Não era, porém, só o Congo que pedia missionários. Um escrito datado no dia 14 de Março de 1856, em Pungo Andongo, fazia notar a grande falta de sacerdotes na província, e pedia ao rei que olhasse interessadamente para esta necessidade dos seus povos, procurando dar-lhes remédio pronto e satisfação urgente.
A carência de pessoal missionário em Angola era extrema e isso preocupava seriamente os seus habitantes, sobretudo aqueles que se consideravam definitivamente radicados nesta parcela do território nacional português. A presença do sacerdote, naqueles tempos, não tinha apenas significação religiosa, pois não havia, na maior parte dos casos, outros elementos que se encarregassem da difusão da cultura e do ensino das primeiras letras.
Um artigo publicado no Boletim Oficial de Angola, em 23 de Julho de 1857, anunciava ter sido provida de pároco a freguesia de Tala Mugongo, sem indicar o seu nome. Ao mesmo tempo, afirmava que algumas povoações de maior importância e de renome histórico considerável, como Muxima, Massangano, Cambambe e outras, tinham igrejas sem pároco, que fora colocado noutras localidades, desprovidas de templos. Pouco depois, algumas destas povoações vieram, realmente, a ser providas de pároco próprio, de sacerdote que garantisse a assistência religiosa e que era quase sempre o professor.
No ano de 1857, foi feita a nomeação de alguns sacerdotes para irem paroquiar e missionar em Angola. A portaria régia de 26 de Junho nomeou quatro padres para outras tantas localidades angolanas bastante importantes:
—P. António Rodrigues Cerveira, para o Golungo Alto;
—P. José Cerveira Pinto, para o Cazengo;
—P. António Pereira da Silva, para Ambaca;
—P. Onofre Ferreira dos Santos, para Pungo Andongo.
No dia 9 de Setembro foi nomeado pároco para o concelho de D. Pedro V, cuja sede estava na vila de Bembe, o P. José Maria de Morais Gavião.
Em 12 de Dezembro, o P. José Agostinho Ferreira era colocado na vila de Bembe e interinamente encarregado da missão do Congo. Mas, em Junho seguinte, o governador-geral e o vigário-capitular acordaram que ficaria melhor no Ambriz, pois o Bembe já tinha pároco.
A 16 de Dezembro foi nomeado novo pároco para Benguela, o P. Joaquim Celestino da Silva. A não ser em períodos mais ou menos longos, nunca esteve desprovida de assistência religiosa. Não esqueçamos que era a segunda cidade deste território. Falou-se já da assistência religiosa prestada a Benguela neste mesmo capítulo.
Em 8 de Setembro do mesmo ano de 1857, foram concedidas ao pároco de Moçâmedes, P. Joaquim de Oliveira e Moura, todas as vantagens de que gozavam os demais párocos de Angola, auferindo igual vencimento.
Em 20 de Janeiro de 1858, o Governo pôs à disposição do pároco de Golungo Alto o hospício (convento) e a cerca dos frades carmelitas descalços, expulsos do território português, e que ficavam situados em Bango-Aquitamba.
Na mesma ocasião pôs também à disposição do pároco de Ambaca o hospício (convento) e a igreja dos frades capuchinhos, situados em Cahenda, confiscados por motivo da sua expulsão. Podemos informar que existiam já em 1694, estando incluídos no número de estabelecimentos que possuíam fora de Luanda, sendo os outros os de Massangano, Bengo, Dande, Sonho e Congo.
No decorrer de 1858, chegaram a Angola os sacerdotes recentemente nomeados para as paróquias de Cazengo, Golungo Alto, Benguela, Pungo Andongo, Bembe e Ambriz. Vieram também os párocos colocados em Cassange e na Huíla, cujo nome desconhecemos ou não identificamos. Quase todos eles passaram a acumular as funções de professores primários.
A primeira metade do século XIX caracterizou-se por uma frouxidão colectiva lusitana, espécie de enfermidade crónica que afectou as fontes vitais da nação portuguesa e se reflectiu particularmente no ultramar. As principais causas desse estado calamitoso podem ser encontradas nas guerras em que Portugal se viu envolvido, nas invasões francesas, na divulgação das ideias liberais, na independência brasileira, nas guerras civis e nas sucessivas revoluções que se registaram.
A partir dos meados do século, como fruto de relativa estabilidade política, Portugal retomou a actividade ultramarina, prestando a devida atenção ao problema missionário, criando institutos de formação de eclesiásticos destinados à África, fixando-se melhor no continente negro, estudando com interesse os seus produtos comerciais, os povos nativos, os acidentes geográficos... Não conseguiu imprimir a esta actividade um ritmo acelerado. Caminhou-se em passo lento, com pausas intermédias frequentes, olhando muitas vezes para trás, com nostalgia do passado, pouco brilhante, o passado do século anterior. Contudo, sempre se foi fazendo alguma coisa!
Só depois de se conseguir a aquietação política do reino, depois de terminarem as guerras civis entre os partidários de D. Pedro e D. Miguel, é que os problemas ultramarinos começaram a merecer a atenção dos governantes portugueses. Por isso, há pormenores que nos surgem denunciando um estado anterior muito descurado e um interesse inicial ainda enfermiço e débil.
Embora o período de crise tenha começado longe, acentuou-se muito devido às guerras que envolveram diversos países europeus, e em que Portugal se viu forçado a tomar parte, assim como às lutas internas que ensanguentaram e retalharam o já debilitado, anémico e enfraquecido reino lusitano.
O prelado que durante mais tempo esteve à frente do governo da diocese de Angola e Congo, em todo o século XIX, foi D. Frei João Damasceno da Silva Póvoas. Tendo sido apresentado para o lugar em 17 de Dezembro de 1812, a sua confirmação só foi dada em 19 de Dezembro de 1814. Recebeu a sagração episcopal no dia 29 de Novembro de 1816 e entrou solenemente na sua catedral em 10 de Junho de 1818. Na prática, o tempo da sua orientação governativa eclesiástica tem de ser muito encurtado, como acabamos de verificar. Faleceu em Luanda, no dia 21 de Fevereiro de 1826.
Um dos principais cuidados deste bispo foi orientado para a formação do clero nativo e sua preparação adequada, conseguindo ordenar quinze sacerdotes indígenas; outros foram ordenados já depois da sua morte, pois quando faleceu havia alguns candidatos que, por iniciativa e com o apoio decidido de D. Frei João Damasceno, estudavam em Portugal e no Brasil. Não esqueçamos que, por ocasião da expulsão das ordens religiosas, em 1835, havia em Angola duas dúzias de sacerdotes autóctones, número que poucas vezes deve ter sido atingido. A maior parte deveria ter ficado a dever a sua ordenação sacerdotal e preparação intelectual à iniciativa do zeloso antístite.
A diocese esteve vaga ou sem prelado residencial no seu território durante todo o segundo quartel do século XIX. Em 1845, ainda foi apresentado para o cargo D. Frei Sebastião da Anunciação Gomes de Lemos, por diploma régio de 18 de Outubro desse ano. Obteve a confirmação apostólica em 16 de Abril de 1846, mas não chegou sequer a visitar o bispado. Renunciou em 1848, sob o pretexto de falta de saúde, passando a exercer as funções de comissário-geral da Bula da Cruzada.
Só no dia 22 de Março de 1852 entrou na diocese o seu novo bispo, D. Joaquim Moreira Reis, que foi apresentado para o bispado de Angola e Congo em 25 de Janeiro de 1849. Era licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra. Esteve durante alguns anos à frente dos destinos desta cristandade, apresentando mais tarde o pedido de renúncia, que o rei aceitou no final do ano de 1856 e a Santa Sé aprovou em 10 de Março de 1857.
D. Joaquim Moreira Reis, prelado diocesano, procurou assegurar a assistência religiosa aos principais núcleos populacionais angolanos. No prosseguimento dessa preocupação, em 1 de Setembro de 1854 a igreja de Nossa Senhora do Cabo, da ilha de Luanda, foi elevada à categoria de matriz paroquial, substituindo a antiga paróquia de S. João Baptista, da ilha de Cazanga, uma vez que o núcleo populacional respectivo era mais numeroso do que o das restantes ilhas adjacentes à cidade.
Em 1855, o bispo da diocese de Angola e Congo, acima referido, solicitou o envio de trinta e dois padres para serem empregados nos trabalhos missionários, no prosseguimento das negociações apontadas noutro lugar, concordando que poderiam ser estrangeiros, italianos ou franceses. Este pedido tem a data de 19 de Janeiro. Impunha-se uma condição, aliás já preconizada pelo Governo, que era ficarem sujeitos à jurisdição do prelado diocesano. Não sabemos se vieram tantos sacerdotes para Angola, mas tudo nos leva a pensar que não, pois não temos conhecimento de um contingente tão numeroso e nem a sua acção deixou memória.
No dia 7 de Setembro de 1859, D. Manuel de Santa Rita Barros, bispo eleito da diocese de Angola e Congo, informava de Pinheiro Grande, freguesia do concelho de Chamusca, distrito de Santarém — que segundo uns era a sua terra natal e segundo outros a freguesia de que foi pároco antes de ascender ao episcopado, podendo dar-se o caso de as duas informações estarem certas — informava, repetimos, o requerimento que tinha sido subscrito pelo P. Domingos Pereira da Silva Sardinha, sacerdote nativo de Angola e cónego da sé de Luanda, em que solicitava a sua elevação à dignidade de arcediago. Dizia dele que não tinha nenhuma das qualidades exigidas — inteligência, aptidão e bons costumes — e que seria grande serviço indeferir a pretensão. Para dar esta informação baseava-se na que o vigário-capitular, P. António Firmino da Silva Quelhas, tinha exarado, afirmando que já era o que nunca deveria ter sido, pois nem sequer sabia ler bem o latim do missal, não se dedicava como cumpria ao serviço religioso, era muito desleixado, e só prestava colaboração quando via nisso alguma vantagem; vivia escandalosamente, em perfeita poligamia, segundo os costumes dos naturais do país e o exemplo de outros capitulares.
No dia 9 de Outubro seguinte, informava outro requerimento, este do P. Joaquim de Oliveira e Moura, que deveria ser ainda pároco de Moçâmedes. Solicitava dispensa do ministério paroquial, a fim de ser nomeado capelão militar. O bispo inclinava-se para a hipótese de o missionário aguardar a sua deslocação para Luanda, onde poderiam trocar impressões de viva voz; esperava, segundo ele mesmo esclarecia, poder reavivar o seu zelo, confortá-lo nos seus dissabores e persuadi-lo a permanecer no serviço paroquial, pois não sabia de causa maior e razões provadas que o obrigassem a abandoná-lo. Ao mesmo tempo, pedia que o pagamento das pensões aos eclesiásticos fosse processado com a possível regularidade e a máxima pontualidade, pois este defeito causava grande descontentamento entre o clero.
Dez dias mais tarde, em 19 de Outubro de 1859, o bispo D. Manuel de Santa Rita Barros informava um requerimento do P. Francisco Maria Constantino Ferreira Pinto, natural de Murça e residente na Golegã, que desejava acompanhá-lo para Luanda. Dizia tratar-se de um elemento recomendável, não só pela sua ilustração como também pela sua compostura e comportamento irrepreensível. Tinha o louvável desejo de servir a Deus nas missões e propunha-o desde logo para cónego da catedral.
Sabemos já que o seminário-liceu de Luanda foi fundado nos termos do decreto de 23 de Julho de 1853, que tornava extensivo a Angola um benefício que a lei concedia aos distritos metropolitanos, dotando cada uma das respectivas capitais com um estabelecimento de ensino liceal. Procurava-se, desta forma, espalhar o saber pelas camadas populares, dando a todos as facilidades possíveis, dentro do condicionalismo do tempo.
Apesar de legalmente criado, o seminário-liceu de Luanda só oito anos depois começou a funcionar, devendo-se isso ao dinamismo e zelo esclarecido do bispo D. Manuel de Santa Rita Barros. Fechou logo a seguir, reabrindo alguns anos mais tarde, no final do terceiro quartel do século ou começos da última quarta parte dele, para arrastar existência pouco frutuosa e desenvolver actividade pouco intensa. Estas razões justificaram que, em 1882, fosse transferido para a Huíla, onde permaneceu durante vinte e cinco anos, voltando a fixar-se em Luanda no decorrer de 1907. Esse acontecimento é testemunho indesmentível de que os habitantes da capital tinham em pequeno apreço a cultura do espírito e os serviços que o estabelecimento poderia prestar, pela sua contribuição para a educação e instrução das gerações que subiam para a vida.
Alguns prelados da antiga diocese de Angola e Congo dedicaram ao ensino das letras o seu maior interesse, pois viram nesta actividade uma alavanca poderosa para moverem a atenção dos habitantes, de todas as origens e etnias, afastando dificuldades básicas e servindo-se do magistério como de meio importantíssimo para influenciarem as populações e espalharem a vivência dos princípios cristãos e costumes civilizados. Entre os bispos da sé de Luanda que mais se distinguiram neste particular devemos destacar a figura excepcional de D. Manuel de Santa Rita Barros, que antes de ascender ao episcopado tinha sido sacerdote secular do Patriarcado de Lisboa e teve em Luanda uma curta permanência de menos de quatro meses, pois foi uma das vítimas da epidemia de febre amarela, que grassou nesta cidade nas últimas semanas de 1861 e primeiros meses de 1862.
O seu nome ocupa lugar de relevo na galeria daqueles que se preocuparam com o ensino, neste território. Durante dois anos, antes de embarcar para Luanda e depois de se ter posto a hipótese de vir a ocupar a sede episcopal, D. Manuel programou, com o máximo cuidado, aquilo que tencionava fazer em Angola, dedicando particular interesse ao estabelecimento prático e concreto do seminário-liceu e à escolha dos respectivos professores.
Vale a pena fazer uma pausa para salientar que o grande antístite conquistou em pouco tempo a admiração e a estima da gente angolana, pelas suas destacadas qualidades e acrisoladas virtudes. O seu nome, aureolado de prestígio e grandeza, é conhecido de todos aqueles que dedicam uma parcela da sua atenção, por mínima que seja, à História de Angola e aos problemas do passado. Conseguiu engrandecer-se e prestigiar-se aos olhos dos seus contemporâneos, sendo prova insofismável do que afirmamos a iniciativa da erecção de um belo monumento funerário para perpetuar a sua memória, que Luanda ainda conserva. Foi construído com o produto de uma subscrição pública, gostosamente acolhida e generosamente apoiada, apesar de se viver um período de enormes dificuldades, causadas pelos estragos das epidemias. Conseguiu pôr em funcionamento o primeiro estabelecimento de ensino secundário liceal que Angola teve. Soube identificar-se com os bons propósitos dos governantes, e soube compreender também as aspirações e os interesses das populações. Não foi, positivamente, aquele que "chegou, viu e venceu"; foi antes, foi sobretudo o organizador meticuloso que, sem perder tempo e sem se deixar arrastar e acabrunhar pelas dificuldades, soube ser o homem capaz, o realizador eficiente, a personagem própria no lugar próprio.
Estando ainda em Pinheiro Grande, sua terra, D. Manuel de Santa Rita Barros elaborou um plano que pretendia pôr em execução, quando chegasse a Luanda; foi subscrito no dia 19 de Outubro de 1859, enviando-o ao ministro para apreciação e aprovação. O projecto elaborado é conhecido em pormenor e desdobrava-se nos seguintes pontos:
—Levar para Angola quatro eclesiásticos, cujos nomes proporia, aos quais seria confiada a actividade docente no seminário-liceu de Luanda;
—Elevar esses eclesiásticos à dignidade canonical, aumentando o seu prestígio e concedendo-lhes melhores condições económicas;
—Instituir no novo estabelecimento de ensino as seguintes aulas: — Ciências Eclesiásticas, Latim e Francês, Lógica e Retórica, Música e Canto, e Escrituração Comercial;
—Transferir os ordinandos de Angola, a estudar no Seminário Patriarcal de Santarém, para a cidade de Luanda, utilizando as quantias que com eles se despendiam no pagamento das gratificações aos professores;
—A importância que ainda faltasse seria tirada do cofre da Bula da Cruzada.
Esclarecia que, para o ensino da disciplina de Escrituração Comercial, dispunha já de um sacerdote habilitado com o curso ministrado na Aula do Comércio.
O que sabemos de D. Manuel de Santa Rita Barros permite-nos deduzir que se preocupou muito com a resolução de diversos problemas afectos ao seu zelo episcopal. Outro documento, este com data de 26 de Outubro de 1860, continuando ainda a residir na sua terra, Pinheiro Grande, antes de partir para Angola, que só aconteceu um ano mais tarde, permite-nos entrar mais em pormenores e fazer referências individuais. Na proposta indicada, sugeria ao Governo:
—Que se oficiasse ao cardeal patriarca de Lisboa, para que autorizasse a saída para Angola dos seminaristas já ordenados ou que estivessem prestes a tomar ordens sacras;
—Que fosse autorizado a admitir à recepção de ordens canónicas alguns estudantes que estavam dispostos a acompanhá-lo, e também dois fâmulos que lhe estavam subordinados;
—Que o P. Francisco Maria Constantino Ferreira Pinto, P. Luís Pereira Gonçalves Araújo, P. Timóteo Pinheiro Falcão, P. António Maria Ramos de Carvalho, P. Augusto Severino Freire de Figueiredo, P. António Castanheira Nunes e P. Joaquim de Oliveira e Moura fossem encarregados de diversas actividades, em Angola;
—Que os estudantes e ordinandos Domingos Marcelo de Mendonça, António Gaspar de Azevedo, José Francisco Nunes, José Luís da Costa Rosa, Luís Maria de Carvalho e Joaquim Fernandes fossem nomeados para diversos cargos em que poderiam prestar serviço;
—Que fossem concedidos subsídios para prover à alimentação e sustentação dos alunos pobres, compra de livros e paramentos litúrgicos;
—Que para a biblioteca do seminário-liceu fossem concedidos livros das bibliotecas dos antigos conventos;
—Que se fizessem obras de restauro no paço episcopal, se aprontassem as instalações e material do seminário-liceu e se concluísse a igreja paroquial de Moçâmedes.
Devemos prestar atenção ao interesse atribuído pelo prelado à difusão da cultura literária, ensino das primeiras letras e trabalhos de catequese. Os elementos eclesiásticos que o acompanharam, e que ele levou consigo para Angola, tornaram-se suficientemente conhecidos pelo seu saber, valor intelectual e actividade desenvolvida. Boa parte deles eram naturais do território, podendo distinguir-se o luandense P. Luís Pereira Gonçalves Araújo, que era já formado pela Universidade de Roma e depois veio a exercer o magistério superior em São Paulo, no Brasil, por certo nalgum instituto eclesiástico. Apercebeu-se bastante bem do valor de cada um, como se verifica pelas informações exaradas nos respectivos requerimentos; não deixaremos de referir o que o prelado afirmava, por exemplo, a respeito do P. António Maria Ramos de Carvalho, do Seminário Patriarcal de Santarém — sabia quanto honrava a moral pública pelo seu comportamento, distinguindo-se pela forma como ministrava a educação religiosa aos seus alunos, e isso desde o tempo em que desempenhara as funções de vice-reitor e professor daquele estabelecimento de formação eclesiástica, onde pudera observar o seu exemplar comportamento e a sua invulgar aptidão.
Voltando a referir-se aos problemas da evangelização e civilização de Angola, afirmava D. Manuel de Santa Rita Barros, em 11 de Abril de 1860, que sabia de muitos jovens dispostos a acompanhá-lo para Luanda, mas que não podia levá-los, por não ter meios materiais que lhe permitissem fazer as despesas que isso acarretaria. Continuava a interessar-se pela solução dos problemas missionários de Angola, tentando transpor algumas dificuldades.
O P. Joaquim de Oliveira e Moura continuava a querer sair de Moçâmedes, estando na disposição de o colocar em Luanda. Para Moçâmedes estava indigitado o P. Francisco Rodrigues dos Santos Saraiva, de quem não temos mais notícias, colocando-o como pároco encomendado; mas logo a seguir surge a hipótese, que se verificou, de mandar para ali o P. Augusto Severino Freire de Figueiredo, que teria como auxiliar o P. António Castanheira Nunes. Os requerimentos dos dois sacerdotes foram favoravelmente informados pelo bispo na mesma data, 14 de Outubro de 1860; eram ambos sacerdotes seculares da diocese de Coimbra.
No dia 2 de Setembro de 1861, chegou a Luanda o prelado da diocese. Desembarcou e tomou posse solene da sua catedral e do bispado no dia 4 seguinte. No dia 13 publicava a relação dos livros que deveriam usar-se no seminário-liceu, que se propunha abrir nesse ano lectivo. E no dia 15 D. Manuel de Santa Rita Barros comunicava já ter a certeza de que em breve iriam abrir as aulas, que seriam públicas. A notícia produziu grande entusiasmo nos habitantes da capital. Aguardava a chegada do governador-geral para então se fazer a abertura solene do estabelecimento escolar, a que pensava dar o maior brilho possível. Ao mesmo tempo salientava a necessidade de ser enviado para Angola algum material didáctico, sobretudo para as aulas de Geografia — um globo, várias cartas geográficas e uma esfera armilar. Dirigindo-se ao ministro, rogava que se dignasse remeter estes objectos sem grande dilação, aproveitando o primeiro navio que partisse para Luanda.
Em outro documento, de 29 de Setembro do mesmo ano, D. Manuel indicava ser necessário nomear um professor substituto para a disciplina de Ciências Eclesiásticas e outro para Preparatórios, pois no caso de adoecer algum teria de fechar a respectiva classe. Em Angola dava-se com frequência a circunstância de doença e era prudente estar-se precavido, pois a suspensão das aulas transtornava a regularidade dos estudos e prejudicava o aproveitamento dos alunos.
No decorrer do mês de Novembro seguinte, começaram as aulas, utilizando para o seu funcionamento, como estava previsto, parte do edifício do antigo colégio dos jesuítas, então em deplorável estado de conservação. O desprendido e dedicado bispo tinha feito o generoso e voluntário sacrifício de privar-se mesmo de grande parte da sua residência e da sua mobília, para acomodação dos seminaristas. Ficou assim instalado o seminário, inaugurado o ensino e abertas as aulas para que pudesse subministrar-se aos filhos da terra o alimento do espírito, difundindo a luz da Ciência entre estes povos, como se exprimia um dos seus professores em documento oficial.
A obra foi pouco duradoira, devido ao facto de, no dia 3 de Janeiro de 1862, ter falecido o prelado. O seminário-liceu de Luanda não conseguiu organizar solidamente os seus quadros, vindo pouco depois a fechar as suas portas, sem que do seu funcionamento adviessem os benefícios sociais que poderiam esperar-se. Tentou-se ainda reabri-lo algumas vezes, mas viveu muito apagadamente os curtos períodos de actividade que sustentou nestes anos difíceis.
São, realmente, numerosos os documentos que se referem à criação do seminário-liceu de Luanda, não sendo fácil fazer a condensação e a concatenação de todas as determinações e a referência a todas as decisões que se prendem com este assunto. Sabemos, por exemplo, que a portaria ministerial de 10 de Maio de 1856 determinava estar-lhe destinado o edifício do antigo convento da Companhia de Jesus, ocupando a parte que o bispo não costumava habitar. Outra portaria ministerial, esta de 13 de Março de 1861, ordenava também que deveria aprontar-se uma casa em Luanda, do Estado ou obtida por arrendamento, a fim de nela poderem viver em comunidade os seminaristas desta diocese. A Junta de Fazenda, em ofício de 11 de Maio do mesmo ano, comunicava não haver edifício público em condições de ser aproveitado e nem verba orçamentada que pudesse despender-se para arrendar uma casa particular.
Quando abriram as aulas do seminário-liceu de Luanda, em Novembro de 1861, tinha matriculados oito alunos em Ciências Eclesiásticas, quatro em Filosofia, onze em Francês, nove em Música e Canto. As aulas de Latim só começaram em Dezembro, por motivos que não conhecemos; e as de Geografia e Oratória Sacra não chegaram a funcionar, por falta de compêndios.
No mês de Maio seguinte, o Governo tornava pública a informação de que tinha sido concedida ao seminário-liceu a quantia de três contos de reis fortes, isto é, em moeda metropolitana, que havia sido entregue ao bispo da diocese. Este era, certamente, D. Manuel de Santa Rita Barros, então já falecido, pois o seu sucessor, D. José Lino de Oliveira, só foi apresentado para este lugar por decreto de 20 de Julho de 1863.
Tendo sido confirmado pela Santa Sé em 21 de Dezembro seguinte, o novo prelado chegou a Luanda no dia 4 de Janeiro de 1865. Trouxe também consigo alguns sacerdotes que estavam dispostos a trabalhar na obra missionária angolana; contudo, nota-se grande falta de pessoal a colaborar na tarefa da evangelização, pois sabemos que no final de 1866 havia nesta vastíssima diocese somente dezassete padres, sendo cinco deles indígenas.
É excepcionalmente interessante o relatório do governador-geral Sebastião Lopes de Calheiros e Meneses, datado de 31 de Janeiro de 1862, no que se refere ao assunto que vimos tratando e ao período que acabava de encerrar-se. Permitimo-nos transcrever, com adaptações ligeiras que reputamos indispensáveis, o trecho seguinte:
"O serviço eclesiástico achava-se em estado lamentável. Poucos sacerdotes havia e desses nem todos cuidavam de exercer o sacerdócio. Achavam-se vagas oito paróquias, das dezassete que há na Província, e destas apenas doze tinham igreja. Achei, pois, descurada a Religião e o culto, esquecida a instrução e amortecido o sentimento religioso. O serviço eclesiástico não está debaixo da minha direcção e acção directa. Tomou uma marcha que prometia muito, a bem da Religião e do Estado, sob a direcção do bispo D. Manuel de Santa Rita Barros, e o seu futuro era auspicioso ao encerrar-se o ano de 1861. Infelizmente, começou o novo ano com a morte do zeloso prelado e não posso prever o que acontecerá, pois tenho motivos para recear que as coisas não corram como fora mister no serviço da Religião, a que, nesta Província, está também muito ligado o da instrução pública. Pela educação e instrução, atendendo a que na Província não é possível grande aplicação às ciências, nem aos europeus nem aos indígenas, apenas convirá organizar aqui um bom liceu, além de algum colégio para a infância; e os padres serão mais bem educados nos seminários de Portugal, ficarão mais portugueses e continuarão a sê-lo voltando para o seu país e aprendendo melhor a língua que depois aqui devem ensinar. Não posso dispensar-me de apresentar uma ideia que considero capital sobre o assunto. Se é conveniente aceitar e aproveitar a instituição e autoridade dos sobas, é preciso também educá-los e aos seus macotas; é indispensável aportuguesá-los e, como meio poderoso de o conseguir, devemos ensinar-lhes a ler, escrever e contar, em Português. Saibam Português, quanto possível, os grandes de um sobado que os pequenos o irão aprendendo. Se Portugal não pode, quase com certeza, criar aqui uma nação da sua raça, como criou do outro lado do Atlântico, ao menos eduque um povo que fale a sua língua e tenha mais ou menos a sua Religião e os seus costumes, a fim de lançar mais este novo cimento da causa da civilização do mundo e de tirar depois mais partido das suas relações e esforços humanitários. Demos, pois, aos pretos boas autoridades na pessoa dos chefes, bons mestres e directores na pessoa dos padres, não impúnhamos aos sobas senão a obrigação de dar soldados para a força militar e de ensinar a ler, escrever e contar a seus filhos e aos dos seus parentes e macotas, e deixemos que o tempo, a Religião e a instrução façam o seu dever".
O relatório do governador-geral Calheiros e Meneses está na linha do pensamento que, já em 15 de Julho de 1853, o Conselho Ultramarino explanava na sua resposta à consulta legal que lhe fora dirigida a propósito da fundação do seminário-liceu. Afirmava-se que é sagrada a dívida de acudir com pessoal às missões, empregando os meios de prover à preparação e sustentação dos candidatos à actividade missionária, sendo inútil a existência de dioceses providas de prelados sem terem sacerdotes que os ajudem e com eles colaborem na obra da evangelização cristã. Sabe-se que já antes, pela carta de lei de 28 de Abril de 1845, portanto anterior à publicação do decreto que instituiu o ensino oficial no ultramar, se considerava a hipótese de se fundar um seminário para a formação do clero, em todas as dioceses. Quanto a Luanda, os objectivos que se pretendia atingir eram os de formar eclesiásticos para Angola e São Tomé, suprir a falta de um liceu distrital, pela manutenção de aulas públicas, e servir de hospedaria gratuita ao pessoal missionário em trânsito. Em 14 de Novembro de 1856, vendo que se retardava demasiadamente a fundação, uma portaria régia voltava a interessar-se pelo assunto, dando indicações concretas mas que nem assim tiveram realização prática.
Recordemos que Almeida Garrett, na qualidade de vogal do Conselho Ultramarino, ao dar parecer sobre as pretensões do bispo D. Joaquim Moreira Reis, concordava que o ponto mais importante era o que dizia respeito ao ensino eclesiástico e ao serviço missionário. Criticava, com o prelado, o desleixo em que tinha sido deixado o desenvolvimento civilizador, de que o Estado tiraria inegáveis vantagens. Apesar dos esforços do marquês de Sá da Bandeira, que o grande escritor reconhecia e exaltava, nada de útil e progressivo se tinha feito nos territórios ultramarinos. Portugal tinha a obrigação de dar missionários e garantir o ensino aos nativos. O bispo até pedia pouco, e era urgente criar o seminário eclesiástico em Luanda, cujas aulas servissem para ministrar o ensino secundário, suprindo o liceu.
Não devemos esquecer que Garrett apoiou o projecto do decreto acerca da criação de escolas elementares de Direito, junto dos Tribunais de Relação, nos territórios ultramarinos, preparando cidadãos hábeis para os diversos cargos, cuja falta era cada vez mais visível.
Podemos admitir que Almeida Garrett deveria estar como que umbilicalmente preso à sociedade angolana, visto que o seu próximo parente, seu tio e educador, D. Frei Alexandre da Sagrada Família foi bispo da diocese de Angola e Congo.
Em 7 de Abril de 1864, foi determinado pelo Governo de Lisboa que o governador-geral de Angola arrendasse um edifício em que pudessem ser acomodados os alunos do seminário-liceu, que até então tinham estado alojados no paço episcopal. Esta decisão leva-nos a pensar que as condições de ocupação e serventia deveriam ser deploráveis, ou então que a instalação dos educandos tornasse demasiado acanhadas as acomodações do prelado e seus comensais.
Um documento que tem a data de l de Dezembro de 1865, conservado em Lisboa no Arquivo Histórico Ultramarino, respondia à portaria de 11 de Novembro, que mandava estabelecer o seminário diocesano de Luanda no paço episcopal, onde antes tinha estado já. O Conselho Governativo de Angola informava terem sido expedidas as ordens necessárias para dar cumprimento ao que fora determinado e dentro de pouco tempo seria efectuada a mudança do estabelecimento de ensino. De tudo isto se conclui que deveria ter-se mantido em actividade durante estes anos, embora de forma muito irregular, saindo do paço do bispo para outras instalações, não identificadas. Vale a pena referir que o governador-geral Sebastião Lopes de Calheiros e Meneses, que deveria ter sido o que o viu entrar em funcionamento, assistindo à inauguração, participava ao ministro, em 5 de Setembro de 1862, que as aulas de Preparatórios não funcionavam e nem poderiam vir a funcionar senão passados alguns anos, depois de os principiantes terem feito os estudos preliminares. Deve recordar-se que o seminário-liceu mantinha quase sempre uma escola de instrução primária, ao lado dos estudos mais adiantados.
Segundo informações referentes ao ano de 1866, uma de 12 de Janeiro, atribuída ao cónego Francisco Maria Constantino Ferreira Pinto, e outra de 26 de Julho, emitida pelo bispo D. José Lino de Oliveira, ficamos a saber que o seminário tinha arrastado existência vacilante e actividade modorrenta, não correspondendo às esperanças que nele tinham sido depositadas.
Documentos de diversas origens dizem-nos que o seminário-liceu de Luanda deixou de funcionar durante algum tempo e reabriu as suas portas no decorrer do ano de 1876, sendo bispo da diocese D. Tomás Gomes de Almeida. No dia 27 de Julho era indicada a sua frequência, que se elevava a quarenta alunos. Não sabemos se este número inclui ou não as crianças que frequentavam a escola de instrução primária ou se apenas se refere aos estudantes mais adiantados. A primeira hipótese parece mais lógica! Não deixaremos de salientar que a sua reabertura foi expressamente determinada pela portaria ministerial de 3 de Abril de 1875.
O novo bispo da diocese, D. Tomás Gomes de Almeida, fez a sua entrada solene no dia 3 de Junho de 1872; havia chegado a este porto, viajando a bordo do vapor Dande, no dia 1 desse mês. Procurou pôr em funcionamento o seminário diocesano, mas só bastante mais tarde conseguiu ver realizados os seus sonhos. A partir de 1866, a sua actividade tinha sido muito reduzida, chegando mesmo a fechar as suas portas. Deve ter havido qualquer questão de certa gravidade, que não conseguimos determinar, pois o futuro bispo D. João Evangelista de Lima Vidal refere-se ao facto e fala de um golpe cego que o forçou a suspender os seus trabalhos. Não indica o facto a que faz alusão e não pudemos encontrar referências que permitam aventar hipóteses ou fazer suposições. Não deveria referir-se à morte de D. Manuel Barros, que estava já longe.
D. Tomás Gomes de Almeida saiu de Angola em 1879. Foi bispo coadjutor do Patriarca das Índias, o arcebispo de Goa, usando o título de "Bispo de Teja". Em 1883 foi transferido para a diocese da Guarda, onde morreu em 1903. Está sepultado na nave da catedral.
O marquês de Sá da Bandeira defendia, em 1873, a criação de um liceu oficial na cidade de Luanda, à semelhança do que se vinha fazendo em Portugal, em todas as capitais de distrito. Outras individualidades defenderam a mesma ideia. Pensava-se em lhe dar autonomia, relativamente ao seminário, mas em breve se reconheceu que o projecto não tinha viabilidade de realização. As condições existentes não permitiriam que se mantivesse como estabelecimento autónomo. O projecto só meio século depois teve concretização e mesmo assim com grandes dificuldades e limitações.
O seminário de Luanda viveu três períodos históricos
distintos. O primeiro corresponde aos primórdios da sua periclitante
actividade, na capital angolana; o segundo abrange um período de
vinte e cinco anos, de 1882 a 1907, quando foi transferido para a missão
da Huíla; o terceiro abrange os tempos subsequentes, de novo estabelecido
em Luanda. Acompanhámos de perto e até com minuciosidades
os primeiros anos da sua actuação; apercebemo-nos das condições
em que nasceu e das que acompanharam o seu raquítico desenvolvimento.
Podemos fazer ideia mais clara das dificuldades que se levantaram, provenientes
não só das condições sociais mas também
da incúria humana.
|
||
|
||
|
|
|
|
|