22. MISSÕES CIVILIZADORAS E ESCOLAS RURAIS

Pode dizer-se que é uma constante da crónica ensinante de Angola, ao longo dos séculos em que aqui estacionaram os portugueses, o facto de se não manter o cuidado de preservar aquilo que de bom havia, quando se registava a necessidade de alterar o funcionamento das actividades escolares, de forma a introduzir apenas no sistema pedagógico modificações que dessem garantias quase seguras de resultado, com a menor margem possível de erro, de perigo de fracasso. Infelizmente, o que se passou não foi isso. Grande parte das alterações aqui introduzidas era ditada pelos interesses de momento, pelo conceito pessoal dos responsáveis, pelo objectivo certo ou discutível que se pretendia atingir, pelo orgulho de fazer "escola" e conquistar adeptos, convictos ou não das vantagens que se apregoavam.

Quando se criou nos territórios ultramarinos o ensino primário oficial, manifestaram-se desde logo duas tendências divergentes — a que defendia a manutenção do sistema antigo, de o ensino estar entregue aos missionários; e a que preconizava o contrário, o sistema moderno e mais europeu, de o Estado tomar sobre si a quase totalidade dos encargos e obrigações correspondentes.

Nessa altura, em relação ao ultramar, mantinha-se certo equilíbrio de forças e posições, não se registando extremismos doentios. A África não era ainda uma zona altamente disputada; a maior parte dos portugueses ignorava quase tudo o que concernia a estas terras, pouco ou quase nada sabia delas; os interesses imediatos não se sentiam muito violentamente nesse tempo; tinha terminado, praticamente, o tráfico esclavagista e não se vislumbrava ainda que o continente negro viesse a constituir valiosa fonte de matérias primas, abundantes e baratas, de que as unidades fabris, então a começar a expandir-se, tivessem absoluta necessidade.

A actividade das missões católicas enfraqueceu notoriamente no decorrer do século XVIII e era extremamente débil na primeira metade do século XIX, para não dizermos em toda a centúria. No seu último quartel, fixaram-se em Angola, além da Congregação do Espírito Santo e das Irmãs Educadoras de S. José de Cluny, missionários protestantes de diversas origens e confissões religiosas, dentre os quais podemos salientar os metodistas, que também desenvolveram influente trabalho de ensino e evangelização.

Com a proclamação da República Portuguesa, em 1910, entrou-se num período em que o ideal católico era desprezado, esquecido, ou mesmo perseguido. Por reflexo, as missões protestantes eram também pouco apreciadas e sofreram as consequências do ambiente social.

Em 10 de Maio de 1919, um decreto do Governo Português criava doze missões civilizadoras nos territórios ultramarinos, metade das quais em Angola; as restantes seriam espalhadas por Moçambique (quatro), Guiné e Timor (uma em cada província). Sabe-se que eram constituídas por pessoal leigo, incluindo um professor primário oficial e três agentes auxiliares, com funções mal definidas. As missões civilizadoras haviam sido instituídas pelo decreto de 22 de Novembro de 1913 e tinham a finalidade de não permitir que os nativos ficassem desamparados; procurariam difundir entre eles os benefícios da cultura, da assistência e da civilização — que o próprio nome destacava.

Não houve, no entanto, a preocupação de intensificar a acção dos seus componentes, como era necessário e como se previra; não houve a disposição ou a possibilidade de criar todas as unidades programadas. Em Angola apenas foram estabelecidas duas, em cumprimento das determinações de 15 de Outubro de 1915, e outras duas em Moçambique. Devemos notar que estas eram anteriores às que neste momento focamos. Pouco a pouco, foi abrandando a rigidez dos princípios que enformavam as missões civilizadoras, quer porque o tempo ia passando quer porque se iam sucedendo os homens da governação. O decreto de 1919, apesar de manter parte da estrutura primitiva, não manifestava já o espírito anti-religioso.

Não podemos dizer ao certo onde se localizaram as seis missões civilizadoras criadas. Não encontrámos nos anos seguintes vestígios da sua instalação. Apenas em 10 de Março de 1922 temos notícia de terem sido criadas nas localidades de Damba (Congo), Cassai-Norte (Lunda), Alto Zambeze (Moxico), e Cuando (Cubango). Como estamos vendo, eram apenas quatro e o decreto falava de seis! As outras duas seriam a de Mossolo e a de Ompanda?!

Ignoramos a data da sua fundação. Tanto poderá pensar-se que sejam as duas criadas em 1915 como as outras, de 1919. Podemos aceitar que nessas seis se englobassem as duas anteriores; o sistema de contagem dos políticos não coincide com o dos cidadãos comuns!

Em 11 de Março de 1922, foi transferida para o Songo a sede da Missão 5 de Outubro, ficando na localidade designada por Mossolo, e que até então estivera a funcionar em Pamba. Actuaria em toda a área do distrito de Malanje. Ignoramos em que moldes se processaria a sua acção.

Pelo mesmo diploma foram estabelecidas as sucursais da Missão Cândido dos Reis (cuja sede ficava em Ompanda), na Humpata e em Hoque, região do Lubango. O nome desta unidade prestava homenagem a um famoso político republicano morto no próprio dia da proclamação do novo regime. O diploma em questão determinava que a sucursal de Humpata ficasse estabelecida na escola-oficina. A Missão Cândido dos Reis e suas sucursais estenderiam a respectiva actividade e influência por todo o distrito da Huíla, que então era bastante mais extenso do que em 1975, pois sofreu vários desdobramentos

Pode concluir-se que os seus frutos não seriam muito abundantes nem muito valiosos, pois estavam longe de dispor de meios materiais e humanos que lhes permitissem realizar o vasto programa superiormente traçado.

Em 21 de Julho de 1923, era criada no Moxico a Missão Laica Nun'Álvares, que ficaria instalada no edifício da escola-oficina. As referências que se lhe reportam são mínimas e extremamente insignificantes.

No dia 20 de Maio anterior tinha sido estabelecida junto da fronteira do Cuando a Missão Laica 1º de Dezembro, em localidade mal definida. Veio a ser transferida na data de 2 de Outubro de 1925, para a povoação de Menongue (Serpa Pinto), ficando a exercer a sua actividade e a estender a sua influência por toda a área do distrito do Cubango. Os comentários atrás feitos têm também aqui plena e perfeita aplicação!

Verificou-se em breve que, apesar das correcções introduzidas por diversas medidas legislativas, se tornava indispensável tomar novos rumos. O decreto de 24 de Dezembro de 1926, que está no prosseguimento de outro de Outubro desse ano, extinguiu as missões laicas, as antigas missões civilizadoras. E em 31 de Julho de 1927 determinou-se que os seus agentes passassem a prestar serviço como professores do ensino primário, no caso de terem o curso de habilitação para este magistério, como a lei previra, ou então como professores das escolas-oficinas, para que se exigiam menores habilitações literárias; os agentes auxiliares das missões civilizadoras laicas seriam empregados como mestres de ofícios.

Os problemas relacionados com o pessoal transferido foram-se arrastando por vários anos. Assim, temos conhecimento de que ainda em 9 de Maio de 1932 era tratada a questão dos seus vencimentos. Determinava-se por diploma desta data que os ordenados dos agentes de civilização e dos auxiliares, a residir nas colónias na situação de adidos, fora do serviço, seriam satisfeitos dentro de condições especiais que as autoridades aprovaram e puseram em execução. Trata deste assunto a portaria ministerial assinada por Henrique Linhares de Lima.

Pode afirmar-se que o papel exercido pelas missões civilizadoras laicas passou a ser desempenhado pelas escolas rurais, nessa altura criadas. Pelo diploma de 18 de Setembro de 1928, foi fixado em vinte o número de escolas rurais, em Angola. Já outro documento governativo, a portaria de 6 de Janeiro desse ano, tinha estabelecido aquele número.

Não se definiu com clareza qual o objectivo concreto das escolas rurais, a amplitude da sua acção, a finalidade da sua actuação e influência. Embora de data bastante posterior, 9 de Janeiro de 1937, um diploma legislativo do governador-geral de Angola diz-nos que o ensino rural indígena se fundamentava nas actividades práticas, ministrando-se paralelamente os rudimentos de leitura, escrita e contagem; este ensino seria ministrado por algum dos professores das escolas rurais ou das missões católicas. O enunciado leva-nos a acreditar que as escolas rurais não coincidiam perfeitamente com o chamado ensino rural indígena, por certo o que era ou devia ser ministrado pelas escolas elementares profissionais agrícolo-pecuárias; adaptava-se-lhes o limitado ensino literário que todas elas ministravam.

Na data de 21 de Junho de 1929, a missão rural de Quimbala passou a denominar-se Missão Rural Oliveira Martins, em homenagem ao conhecido historiador, estilista apurado e escritor fecundo, autor de obras sobejamente conhecidas, de que se destacam a História de Portugal, Os Filhos de D. João I, e a Vida de Nun'Álvares.

Em 3 de Julho de 1930, foi aprovado o Regulamento da Escola Normal Rural de Vila Teixeira da Silva, criada por decreto de 16 de Dezembro de 1929, segundo informação fornecida por aquele documento legal. Recordamos, antes de prosseguir, que nos capítulos precedentes deste volume nos referimos já a este estabelecimento de ensino e a um dos seus directores.

O respectivo curso teria a duração de dois anos e destinava-se, expressamente, a preparar agentes do ensino para o magistério rural. Estava previsto, como actividade supra-escolar, o estudo e prática de Fisiologia, Puericultura, Economia Doméstica, Educação Física e Canto Coral. Seria adoptado o seguinte esquema de programas:

— 1º Grupo — Pedagogia Prática;
— 2º Grupo — Português; Geografia; História de Portugal; Educação Moral, Cívica e Social;
— 3º Grupo — Aritmética; Geometria; Desenho; Trabalhos Manuais;
— 4º Grupo — Ciências Físico-Naturais; Economia Rural;
— 5º Grupo — Higiene Prática.

A escola rural que tinha sede em Quirima, circunscrição civil de Songo, foi transferida em 7 de Abril de 1932 para a povoação denominada Quela, circunscrição civil de Bondo e Bângala; aquelas localidades ficavam ambas no distrito de Malanje. Contudo, esta portaria ficou sem efeito por determinação do governador-geral, de 19 de Maio; não estava em questão a escola de Quirima, mas a de Cambo Camana, que foi realmente a transferida. Corrigiu-se assim o lapso cometido. Mas três anos depois, em 29 de Junho de 1935, a escola rural de Quirima passou para a localidade de Duque de Bragança.

Em 27 de Maio desse ano de 1932, a escola rural de Xassengue, circunscrição civil de Minungo, distrito da Lunda, foi transferida para Dala, circunscrição civil de Saurimo, onde se sentia a sua falta. Não foi criada outra de novo, preferindo-se a transferência de uma anteriormente fundada, visto que as disponibilidades económicas não permitiam que se estabelecessem mais.

Por determinação com data de 27 de Julho de 1932, a escola rural de Ebanga, circunscrição civil de Ganda, distrito de Benguela, foi transferida para Nharea, circunscrição de Andulo, distrito de Bié.

A escola rural de Cuíma, no Lépi, era transferida para Dondeiro, no Bié, em igual data.

A escola rural de Vila General Machado foi mudada para Neves Ferreira, no Bié, mas a transferência foi anulada em 9 de Setembro, ficando onde estava.

A escola rural de Gamba era transplantada para Andulo, mas em 15 de Setembro também a transferência foi anulada.

Em 26 de Outubro de 1935, a escola rural de Gungo, em Novo Redondo, distrito de Cuanza-Sul, era transferida para Cassongue, circunscrição civil de Seles.

A escola rural de Puri, circunscrição de Pombo, no Congo, foi transferida em 4 de Abril de 1936 para Damba, também no distrito do Congo. Talvez seja oportuno lembrar que estava ali, embora com outra denominação, desde 1922.

Tal como acontecia com a de Gungo, declarava-se que a mudança se faria sem qualquer dispêndio para a Fazenda Nacional. Isso leva a pensar que não estivessem em funcionamento, ocorrência que era mais frequente do que possa imaginar-se!

Finalmente, o processo evoluiu e veio a ter o desfecho que irremediavelmente poderia diagnosticar-se. O diploma de 9 de Janeiro de 1937 suspendeu o funcionamento de todas as escolas rurais, em Angola. Seria mais coerente dizer logo que eram extintas. Todo o seu pessoal assalariado foi dispensado. Eram desde logo criadas, em sua substituição, as escolas elementares profissionais de artes e ofícios, a que faremos referência noutro lugar.

As informações prestadas acerca das missões civilizadoras laicas e das escolas rurais, assim como das escolas agrícolo-pecuárias, e em boa parte também das escolas-oficinas, permitem-nos concluir que não houve em Angola (o que equivale a dizer, em todos os territórios ultramarinos da soberania portuguesa) critério seguro de orientação escolar, um sistema equilibrado de iniciativas e realizações, o bom senso para escolher o rumo mais conveniente e a coragem de o prosseguir — mesmo que tivessem de ser esquecidos alguns pruridos de partidarismo político, ainda que fosse necessário sacrificar sonhos utópicos de ideologias inconsistentes, mesmo que isso exigisse a confissão honesta dos próprios erros e a aceitação humilde das qualidades dos antagonistas.

O ambiente escolar angolano caracterizou-se por começar e parar, experimentar e suspender iniciativas, abater antes de se tentar corrigir imperfeições. Tomavam-se decisões apressadas e mesmo pouco conscientes. Punham-se em prática planos mal estruturados, o que demonstra ter sido ensaiado um empirismo infrutífero e estéril.



 
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