A PRÉ-ESCOLA DEVE ALFABETIZAR?
Se considerarmos a alfabetização como um simples processo de decifração do código escrito,acredito que esta não seja uma tarefa para a pré-escola. Nem para qualquer outra. Felizmente o conceito de alfabetização vem sofrendo alterações ao longo do tempo na medida em que diferentes correntes: psicológicas, sociológicas, lingüísticas etc. têm influenciado a prática pedagógica.. E cada uma delas chama a atenção dos interessados para um aspecto do processo ainda que não consiga, na maioria das vezes, defini-lo de forma suficientemente abrangente. Mais recentemente se tem procurado dar à alfabetização o cunho de "iniciação", pois a palavra tem sido utilizada em muitos campos do conhecimento científico: "alfabetização matemática", "alfabetização ecológica", "alfabetização científica" etc. Se é assim, ela começa antes mesmo da pré-escola, já quando a criança, curiosa, começa a explorar o mundo ao seu redor e é estimulada para isso. Mas não basta. Na pré-escola, no dia-a-dia de nossa sala de aula, a alfabetização é um processo mais complexo e mais completo. É através dela que a criança, como sujeito, assume sua identidade como ser no mundo, passando a integrar-se de forma satisfatória com ele, conhecendo-se e conhecendo os outros sujeitos, assim como ao ambiente, de forma a garantir uma convivência harmônica e produtiva. A alfabetização passa a ser vista, então, como o instrumento que permite ao homem sair do caos de uma visão indiferenciada da realidade para buscar a organização tão necessária para a sua própria sobrevivência e da humanidade. Aceitando-se este conceito, não se pode encerrar a alfabetização dentro da sala de aula nem reduzi-la a uma abordagem simplista da linguagem como se o "ler" ser resumisse àqueles exercícios programados com o objetivo único de garantir o domínio da técnica da leitura da palavra. Embora a palavra seja de enorme significância para a compreensão da realidade, é apenas um dos instrumentos que fazem parte do processo de alfabetização. A criança começa a se alfabetizar muito antes de entrar na escola. E desde então ela já usa a palavra de forma satisfatória. Quando começa a identificar os objetos de sua realidade bem como os atributos que lhe são próprios, a criança inicia um processo de leitura que lhe permite conhecer tudo aquilo que está ao seu redor, passando a perceber a relação que existe entre as palavras e os objetos e a compreender toda a gama de relações que possam existir entre eles. Nesse percurso a criança esbarra com a escrita antes mesmo de entrar para a escola (já que a fala ela já conhece e manifesta) e passa a reconhecê-la também como um objeto dessa realidade, cuja posse vai lhe possibilitar o acesso aos segredos da história, da ciência, da ficção... enfim, de todo o pensamento humano acumulado ao longo do tempo. Na escola, "Encorajado a escrever, despertado em sua curiosidade por saber o que está escrito aqui e ali, nos livros, cartazes e materiais espalhados pela classe, é o aluno que mostra os caminhos" (Uma revolução ... Revista Nova Escola, março 89, p.12) Assim, ao mesmo tempo em que tem acesso ao pensamento da humanidade a partir do domínio da linguagem, através da leitura e da escrita a criança pode se servir destes "segredos" e descobertas para melhorar a qualidade daquela linguagem, enriquecendo seu vocabulário e ampliando seu universo de comunicação, enfim, fazendo-se entender por um número cada vez maior de pessoas. Não é possível, portanto, falar-se em alfabetização sem se falar em interdisciplinaridade. As informações que o professor veicula, tanto no momento da aquisição como da sistematização do código já dominado devem estar contextualizadas de tal forma que, ouvindo, falando, lendo ou escrevendo sobre um fato a criança seja capaz de perceber a linguagem como um elemento essencial do progresso, assim como a leitura e a escrita como instrumentos de ascenção social e poder. Por esta razão, isto é, por se constituir num projeto interdisciplinar, a alfabetização não pode ser considerada tarefa de um único educador. Especialmente porque ela não se limita no tempo. Não tem um momento para começar nem tampouco para terminar. Começa muito antes de a criança entrar na escola, continua na pré-escola e tem seu ponto alto no Ciclo Básico, mas continua ainda pelo menos ao longo das oito séries do primeiro grau, quando a criança, aprendendo o conteúdo das diversas disciplinas continua usando a linguagem (ouvir, falar, ler e escrever) para formar e sistematizar conceitos com um vocabulário específico (diferentes conteúdos), mas com uma gramática comum que pode ser "descoberta" a partir de formulações adequadas, próximas àquele modelo que se costuma chamar de linguagem "culta". Não há como formular uma construção lingüística incorreta quando se enuncia uma regra ou uma lei, da Física ou da Matemática, por exemplo. Não há como cometer erros na utilização de tempos verbais na descrição de um fato histórico que implique na referência ao passado, mais ou menos recente... e assim por diante. Portanto, se a criança compreende a questão do tempo e desenvolve os conceitos referentes à organização temporal (ou espacial) tão necessários à alfabetização, com certeza ela deverá ser capaz de empregar na sua linguagem, por exemplo, os tempos pretéritos dos verbos regulares. E será capaz, também, de referir-se ao futuro. E essa não é a única e situação. Toda vez que um professor, de qualquer disciplina apresentar uma definição referente aos conceitos-chave de seu conteúdo, fazendo-o de forma correta (não só quanto ao conteúdo mas também quanto à forma), estará contribuindo para melhorar a qualidade da linguagem dos alunos, pois se espera que as definições sejam apresentadas de forma lingüísticamente correta. De maneira geral, o sujeito que relamente aprende é capaz de falar sobre o que percebe de uma dada realidade e suas relações com outras realidades, além do que é capaz de escrever sobre o que fala. A maior ou menor adequação desta escrita depende não só do domínio da gramática, mas também da compreensão satisfatória do conhecimento ao qual o texto se refere. Texto e contexto estão significativamente relacionados (ou deveriam estar, embora a escola ainda seja o único lugar em que muitas vezes a criança escreve - texto - sobre absolutamente nada - contexto -, na medida em que a escrita é posta artificialmente. E, quando começa a aprender a ler também lê textos sem sentido, escritos sobre nada). É urgente e necessária uma mudança. Trabalhar a alfabetização de forma interdisciplinar pode ser uma das maneiras de tornar a criança mais interessada e conseqüentemente, mais permeável à aprendizagem da leitura e da escrita. Aprender a "ler o mundo" (Paulo FREIRE). Este sim, é um processo que pode começar na pré-escola. Como organizar as idéias sobre esse mundo? Classificar e ordenar são os processos. Que fatos, dados ou objetos? - São os conteúdos, que dependem muito mais da visão ampla ou restrita que a professora tem desse mundo do que propriamente de listas pré-estabelecidas seja lá por quem for. |