Gilberto Rabelo Profeta

Capítulo 4

Articulação de um "Aglomerado sem Forma" Pré-Verbal

 

Fazendo um teatro preocupado com a "a multidão (que) pensa com os sentidos", inicia Artaud sua busca a partir de um "estado sob as palavras que pode escolher sua forma de expressão". Quer "estudar, até reduzir às suas formas constitutivas a evolução formal do pensamento". Mantém a visão estóica, a alma como uma página onde se inscrevem as sensações (RM1), que traz como uma ferida, escoriação, nos "cimentos físico-psíquicos do eu". Faz todo o seu teatro girar em torno do objetivo de atingir a "sensi-bilidade orgânica profunda", o "campo abaixo do inconsciente, o absoluto informal", "logos" imagem de LOGOS. Poderia ter tomado a Richet(CS NP) que colocou as recordações no interior das células cerebrais, na visão mecanicista do positivismo reinante, e citando Moreau de Tours(1845) que se preocupa com "quando as idéias passam de um estado orgânico a um estado consciente".

REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Na procura da "identidade profunda entre o concreto e o abs-trato que nos propõe Artaud em seu Teatro, enxerguemos os planos:

externo: estrutura física
v
interface: percepção
v
interno: formas = estruturas estáticas(aparências)
v
interface: expressão verbal
v
externo: estruturas linguísticas.

Procuremos uma resposta à questão formulada por Artaud: "a forma já se encontra prefigurada de uma maneira inacessível à consci|ência do espírito (legibilidade da inteligência)?"(A T 43).

Chamaremos de "representação mental", RM, o registro cere-bral de sensações originadas em estímulos, internos ou externos, provocados a partir do contacto com a coisa real, quaisquer que sejam os processos neurofisiológicos que já estejam ou venham a ser descritos, e a tomaremos como "ferida" ou "escoriação profun-da no cimento físico- psíquico do eu". Não crê Artaud em "formas" existentes como representação mental gravadas na matéria cere-bral, mas que este material a que denomina "aglomerado sem forma", produto das sensações corporais, no sentido amplo que empresta a corporal, e no sentido amplo de sensações, se expressa internamente como forma no plano consciente. Não é, portanto, a noção de representação mental veiculada pela psiquiatria da épo-ca, aqui trazida, do livro texto de 1950 da autora norte-america-na Iracy Doyle (ID IMP), como "ato de conhecimento determinado pela reativação de uma recordação". Representação mental é o que é recordável.
Repetindo, para completar: cada coisa real se representa na mente como aglomerado sem forma - representação mental - que ten-de a copiar a coisa real - transformando-a - após contactos repetidos tanto com a coisa real quanto com a forma com que se ex-pressa internamente.

Fazemos jus, agora, às afirmativas de Artaud de que "entre o real e eu, está eu e minha deformação pessoal dos fantasmas da realidade" e que "o inconsciente é físico".

"Quando o pensamento chegado do absoluto informal e inomina-do do espírito, ou surgido da matéria fervente do inconsciente, ou ambas as coisas, começa a querer ser e recorre às suas formas, a todas suas formas...(AT T 41). "O que colocamos ante nó mes-mos, para que a razão do espírito o observe, em realidade, já é passado". Diz-nos Artaud que o pensamento, pensado que foi no plano absoluto, se expressa no plano consciente, recorrendo ás formas/aparências e a todas as formas/tipos de pensamentos. É interessante reencontrar Zacchias(MF HL) com a imagem de "vapores" para explicar os sonhos. Desta metáfora, utilize-se a idéia de que o material internalizado "sobe" à cabeça, em forma de núvens /vapores, associando-a ao fundamento do teste de Rors-chach: refabricamos nestes vapores as nossas vivências, com transformações. As imagens armazenadas "sobem" à cabeça para se colocar em associações de toda espécie, entre si. Jean Pierre Chaugeux(I ELM ), neurobiólogo, nos torna a metáfora mais aceitável: "Toda atividade mental - reflexão, decisão, emoção ou sentimento, consciência de si... - é determinada pelos influxos nervosos neuronais..." A sensação se instala no organismo; o estímulo assim produzido chega ao cérebro, junto com outros tan-tos, formando uma nuvem/ vapor, depois a memória "brinca" com estes estímulos armazenados após de alguma forma codificados.

Retomamos consciência do material internalizado e repetimos o momento do pensamento situacional: as sensações internalizadas nos novos contactos atualizam as RM referentes aos contactos prévios, as quais se aglutinam em uma imagem/ forma que se sobrepõe à coisa real, definindo seus contornos. Quando repetimos automati-camente os atos treinados, o processo é o mesmo. No pensamento autístico, uma forma inicial atualiza as anteriores já interna-lizadas gerando outras formas, pelo caráter dinâmico, que se tornam estímulos para eliciar novas representações mentais, ex-pressando-as internamente, em processo contínuo. O processo de atualização é necessariamente um processo de síntese, pensamento sintético. O pensamento autístico tende a relacionar as formas internas do modo como o pensamento situacional viu relacionarem entre si as coisas reais.

ATENÇÃO E APERCEPÇÃO

Entramos em um sistema de interpretações das coisas reais quando apreendemos o campo situacional onde se inserem, a partir de cada CR, relacionando-a com o todo, que é crescente até deter-minados limites, que sendo culturais, para Artaud devem estar situados no infinito.

Tomemos "atenção" pela definição de dicionário: ato de apli-car o espírito em alguma coisa, e "apercepção" como "a função por meio da qual o indivíduo através do pensamento ativo e atento analisa, sintetiza, integra, avalia e absorve a experiência" (re-tirado de texto de psiquiatria).

A coisa real se torna conhecida e representada mentalmente pela análise com os instrumentos de observação inatos do homem. Quando um macaco toma um corpo nas mãos e o examina sob muitos ângulos e com vários órgãos dos sentidos, irá abandoná-lo ou não, desde que lhe sirva ou não para algum propósito. O homem também o faz: toma corpos nas mãos e os examina, retendo-o ou abandonando-o conforme suas necessidades. O homem difere do macaco por tomar de cada ângulo que observa um ponto de vista, estudando a coisa antes de transformá-la em objeto. Interessa ver que a CR e o ob-jeto podem se confundir, e que o próprio ponto de vista/ PV sobre a coisa é um objeto.

Temos, agora, que "CR + ANÁLISE = PV",

onde "análise = modo de considerar ou de entender alguma coisa" e, no pensamento situacional, é "uso"; "PV = OBJETO"(o ponto de vista é um objeto criado a partir da coisa real).

A atenção é analítica(ML LJ), indo do todo à parte e de-pois da parte ao todo, como instrumento primário de apreensão de LOGOS. Na apercepção, faremos os seguintes movimentos:

a - do todo à parte ao todo, quando a parte é relacionada ao todo;
b - do todo à parte e ao todo, quando cada parte é tomada como um todo, de acordo com os limites impostos pela cultura e pelos órgãos de leitura;
c - do todo a estruturas ao todo, quando estruturas são par-tes do todo, formadas de conjuntos/todos de partes que se
relacionam, seja por suas necessidades/potencialidades/possibilidades(nepepos), seja pelas do organismo que observa.

Teremos, então:
"CR + ATENÇÃO/APERCEPÇÂO = OBJETO"
"CR + ANÁLISE = OBJETO"
- mecanismo de atenção/ apercepção é processo de análise do real: quando separa a parte do todo para observá-la, é análise; quando relaciona a parte ao todo é síntese. Não nos esqueceremos que o campo interno do organismo que observa faz parte do todo que se observa, e que "o todo determina a significação da parte" (PF GD PC).

Para a psicologia da forma (PF GD PC), o mundo se dá à percepção da criança como um todo confuso, amorfo, dependente da elaboração em representações mais distintas com a experiência continuada. A atenção partindo do todo às partes e das partes ao todo organiza e internaliza a aparência da coisa real, sensação interna. O contacto continuado dá mais isomorfismo à forma inter-nalizada, mas não apaga os registros iniciais produtos do traba-lho de analisar o todo e suas partes.

Redefiniremos "campo situacional" como o campo percebido de uma situação dada, compreendendo a somatória das regiões onde se fixa a atenção, envoltas, cada uma, por região que se percebe apenas marginalmente. Os campos marginais se somam ao variar os pontos de atenção, restando sempre um campo de percepção margi-nal: os elementos /partes percebidos como estímulos/sensações que não respondem a necessidades ou a pontos de vista anteriores.

Temos, até aqui:
CR + USO = SENSAÇÕES
v

atuação do mecanismo de atenção /apercepção
v
integração( sensação interna):
de cada sensação --> formas 1
de sensações e suas formas --> formas 2
v
armazenamento(sensibilidade orgânica profunda) dos elementos
sensoriais; das formas de sensação; das formas de formas de
sensação,
v
aglomerado sem formas(representação mental)

NUVEM/NÚCLEO DE PERCEPÇÃO

O mito criado, representação mental, não explica a complexi-dade do processo analógico envolvido no mecanismo do pensamento. As RM semelhantes se sobrepõem a cada contacto pelo processo ex-posto. O resultado é uma nuvem de representações mentais, como viu Bronowski(JB OCI). como a formação da pérola na ostra: uma escoriação /estímulo inicia um processo de construção/ pérola por sedimentação de novos materiais. A idéia existe pré, per e pós Artaud. Os estóicos(RM1) nomearam "experiência" à "multidão de representações mentais da mesma espécie", e seu conceito de RM coincide com o que usamos. Herbart(1776-1841), pré-wundtiano, pré-psicologia gestáltica, dirá que "as idéias na men-te são dinâmicas e as idéias novas se fundem na massa apercepti-va" (MW PHP). Ruth Kempson abandona a concepção de Sapir, em 1921, de que o elemento verbal é símbolo de uma "cápsula conveniente de pensamento que compreende milhares de experiências dis-tintas e possa encerrar ainda outras milhares". Ingenieros(JI PPB) vai dar a percepção como síntese das sensações passadas e das sensações presentes".

O primeiro contacto do eu com a realidade se dá através do pensamento situacional, registro dos atos e contemplações do in-divíduo. Com o pensamento situacional, temos contacto com o presente contínuo. Enquanto entre as coisas reais, o presente é o tempo das incorporações, "CR + CR = CR", no mundo interno é o tempo das atualizações, "CR + USO = NP".

Como nos coloca Artaud, "não há uma só imagem que não seja o mundo separado de uma imagem efetuada e vivida em outra parte", descrito por Berlyne como a teoria de Bartlett(1932) como "cada experiência perceptual tem uma relação com o que ocorreu antes", procuremos reduzir a experiência perceptual a um novo mito /metáfora.

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