Gilberto Rabelo Profeta

Capítulo 3

O Uso da Realidade

 

Procurando "as relações do mundo físico com estados profundos do pensamento(AA TSD 93)", julgando ser um absurdo "extrair pensamentos de nossos atos ao invés de identificar nossos atos com nossos pensamentos"(AA TSD 17), Artaud nos liga o homem à sua condição animal vendo o uso da realidade como mola propul-sora do "logos", o primeiro sistema das suas interações com a natureza, transformando-a. Nomeia-se, em Berlyne, pensamento situacional ao tipo de pensamento que ocorre durante a interrela-ção do sistema mental do animal com o meio ambiente. Parece par-tir Artaud da premissa de que todo conhecimento provém dos senti-dos, da experiência, contacto com a realidade, empirismo estóico (JB E).

Chamaremos de objeto ao produto da alteração de uma coisa real pela ação/uso de um animal. Kretschmer(Kretschmer) entende por obje-to "uma imagem de contornos bem definidos situada no espaço e no tempo", a mesma definição de Sartre(JPS I) para coisa. Se a rea-lidade é uma massa amorfa, a coisa real se transforma em objeto a partir da delimitação de seus contornos, como tomados pelos órgãos dos sentidos, definindo-os e representando-os como imagem. Os órgãos dos sentidos já interpretam a coisa real no momento de sua internalização, por exemplo, transformando percepção de ondas em sensação de cor. O aparelho mental coloca um objeto entre a coisa real e o organismo que a observa, tendo o objeto sua face concreta, a coisa real, e sua face abstrata, a imagem/forma. No momento do pensamento situacional, as sensações internalizadas dos contactos atuais eliciam as imagens das sensações internali-zadas nos contactos prévios que se aglutinam em uma imagem/forma que se sobrepõe à coisa real.

Definindo "campo situacional" o campo percebido em uma situ-ação dada, tem o homem como diferença com os outros animais usá-lo independente de nele estar inserido. É capaz de recordar anti-gos e imaginar novos quadros situacionais e de neles se deslocar ou deslocar imagens das coisas reais. Enquanto os outros animais retiram de cada coisa real, pelo pensamento situacional, apenas um objeto, aquele necessário à sua sobrevivência, retira o homem de cada coisa vários objetos, embora tenha permanecido longos períodos de sua história vivenciando exclusivamente o pensamento situacional.

Devemos considerar a interação entre os dois sistemas, LO-GOS/"logos", indo da internalização do pensamento situacional aos mais elevados planos do pensamento. Retomando a visão estóica (Deleuze), dizemos que a profundidade se põe em contacto com as coisas reais através da superfície, que é figuração de todos os órgãos dos sentidos e dos processos de consciência (atenção e percepção). Por causa do tema profundidade /superfície Deleuze condena Artaud à esquizofrenia, deixando de lado a sua afirmação surrealista de estudar o inconsciente. "Psicologia da profundida-de" é o nome da psicologia de Freud na época, e, na França de 1896, Ribot(R1) enxerga os sentimentos não mais como manifes-tação superficial, mas mergulhados no que é mais profundo nos indivíduos, com raízes em suas necessidades e instintos. Pela "tradução" para o Jabberwocky de Lewis Carroll, Deleuze não pode vê-lo "sentindo o verdadeiro problema de uma linguagem em profun-didade" sem ser como esquizofrênico: "para ele não há, não existe mais superfície". Não percebeu Deleuze como Artaud não promove a ruptura da superfície, mas a desnuda para horizontes ainda não imaginados, vendo-a como "membrana que se expande toda vez que estimulada". Demonstra-nos Artaud, o que assusta a Deleuze, que a superfície /consciência deve estar em contacto íntimo com a pro-fundidade, ampliando-se por trazer a cada instante o material inconsciente para o consciente, por não podermos nos contentar em ser meros órgãos de registro. Quer isto dizer: é preciso não se contentar com as aparências da superfície, é preciso não se con-tentar com o que se diz serem as coisas reais, porque, em "O Teatro e os Deuses", a juventude quer que se ligue o segredo das coisas às suas múltiplas aplicações(AV AT 314). Jogo de interre-lações que nos expõe o jogo de múltiplos aspectos, já que a su-perfície de aparências que nos esconde o mundo real é também uma membrana que se expande a cada vez que a tocamos. Rebela-se Ar-taud exclusivamente com "a Voz de cima" que nos ordena o mundo congelando em palavras o que dele devamos apreender e sabe que o conhecimento é uma superfície lubrificante e cáustica. Adotando pontos de vista orientais, não se esquece de que "a mente é como um elástico milagroso que pode se estender ao infinito sem se romper (Yogananda)"(RF JF).

O fervilhar da profundidade é descrito como "mil impressões internas, mil choques interiores ao acaso", o que pode ser deco-dificado como pensamento autístico. Pensamento autístico como a memória do pensamento situacional lidando com as formas extraídas das coisas reais na tentativa de reproduzi-las fora do campo situacional que o gerou, em associações livres, como livre é o campo abaixo do inconsciente. É o primeiro nível do pensamento autístico. Um segundo nível pode ser reconhecido na lembrança, de modo dirigido, como nos diz Berlyne: "o pensamento dirigido é caracterizado por sua direção, isto é, pela ordem na qual os pensamentos se sucedem. É um pensamento cuja função é nos conduzir a soluções de problemas. Todas as idéias com as quais uma idéia se associa são eliminadas, exceto as que guardam uma associação específica com o estímulo. Sua função é reunião /rejei-ção de informação", seja por uma forma/idéia "a priori", seja por um objetivo /esquema /estrutura a ser alcançado, ou, como nos expe-rimentos de Galton, Wundt e Jung, a partir de uma palavra. Os mil choques interiores do pensamento autístico tentam reproduzir as associações internalizadas, reprodução muitas vezes impossível de se dar e por isto mesmo tentativa criadora de novas formas inter-nas. Associações realmente livres inexistem: o próprio pensamento autístico compreende associações possíveis entre os elementos internalizados, imitando o pensamento situacional. O pensamento autístico é, portanto, um processo de reprodução /produção de formas, enquanto é cópia do devir de LOGOS.

LOGOS, e seu duplo internalizado estão em devir. No "logos", o pensamento situacional, ouro e dia no mito de Eros e Psiquê (MG2), é atividade, conhecimento intuitivo, por indução. O pensamento autístico é lua, noite, primeiro passo do pensamento "racional". O homem é, durante o dia, pensamento situacional; e Mithos durante a noite, pensamento autístico, sonhos e devaneios. A reflexão sobre as formas e os esquemas /formas de organizá-las mentalmente gera noções/ idéias, embora devamos ter claro que a forma/ aparência é desde o início uma "noção" sobre o objeto, permitindo sua reconstrução a partir da coisa real que o origi-nou.

"Quando cria, o deus oculto obedece à necessidade cruel da criação que lhe é imposta a ele mesmo e não pode deixar de cri-ar". Usando a mágica de Artaud e abusando do estoicismo, podemos dizer que cada coisa real "vê" outra coisa real de acordo com suas "necessidades de com ela interagir. É apenas tirando desta palavra todas as conseqüências possíveis, como nos pede Artaud, que perceberemos a possibilidade de, no estoicismo(JB E) e em Artaud, Deus ser Razão, LOGOS, Devir, o ordenador das coisas da natureza e autor do universo, ao mesmo tempo em que é Destino, necessidade suprema. Cada contexto de posições/ ações/ relações/ movimentos/ acontecimentos entre coisas reais cria necessidades/ po-tencialidades/ possibilidades a serem satisfeitas e concretizadas. A coisa real se mostra ao aparelho de leitura do animal que a registra e a usa para suas necessidades. O homem cria necessida-des outras a partir da interação entre a sua percepção da coisa real e a coisa real em si, tantas necessidades que esta palavra se presta a múltiplos usos. Delimitado o uso como necessário/ potencialidades/ possibilidades, pode também o leitor permanecer no campo de significação de Malinosvki e de Berlyne.

Podemos tentar "reencontrar o ser através de analogias mate-máticas" (AA TSD - Um atletismo Afetivo).

CONTACTO COM CR = HOMEM + NECESSIDADES ", o contacto do ho-mem com a coisa real varia com a necessidade em jogo, e, então, derivar

"CR + CONTACTOS = OBJETOS".

Como o contacto se faz com um objetivo determinado pela ne-cessidade, temos que

"CR + USO = OBJETO"

que é a fórmula do pensamento situacional e que se pode extrair de "a inteligência cria o objeto e o experimenta, só o uso da realidade verifica a atividade mental".

As necessidades/po-tencialidades/possibilidades interpretam a coisa real no momento de internalizá-la.

O PONTO DE VISTA CRIA O OBJETO

Pensamento situacional é, também, o resultado do treinamento de uma tarefa a ponto de a executarmos inconscientemente. Na de-limitação dos contornos da coisa real, a forma previamente inter-nalizada é que permite este tipo de pensamento situacional. A forma é a primeira noção sobre a coisa real, e o primeiro objeto dela criado, e forma/ noção são duas faces de uma mesma moeda. O que os testes de Rorschach nos dizem é que a forma interna cria a forma externa. Artaud, em "Os Taraumaras", assume pontos de vista da cultura indígena e os lê nos acidentes geográficos, demons-trando o processo. Quando nos diz "tudo na destinação de um obje-to é questão de convenção", podemos efetuar a redução:

"tudo na destinação ---> (objeto)
de um objeto ---> (coisa real)
é questão de convenção ---> (acordo entre pontos de vistas)".

Diz-nos Artaud de outra forma em "transmutação de idéias em coisas", ou Lacan(HL IE) em "o mundo das palavras cria o mundo das coisas". Efetuando outra redução temos:

"CR + PV = OBJETO",

ou, o ponto de vista aplicado à coisa cria o objeto.

O "ponto de vista cria o objeto" é também de Saussure(NR CL), referindo-se ao objeto científico.

Colocamos entre a noção e a coisa, a forma que é a primeira interpretação da coisa real, portanto, o primeiro objeto dela criado e o ponto de vista de primeiro nível. Os pontos de vista podem ser em segundo plano as noções que acompanha as formas; em terceiro plano a idéia que nasce ao relacionarmos a forma à sua noção; em quarto plano quando relacionamos a forma/ noção à coisa real, e, por fim, em quinto plano quando relacionamos a idéia à coisa real. Em linguagem corrente, é ainda opinião, ponto de vista individualizado.

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