A história da Carol é um exemplo da desorganização de muitos programas de transplante no Brasil, um país com "muita lei e pouca saúde". Fica evidente que a principal pedra no caminho dos transplantes é a desinformação, a falta de estrutura, a burocratização exagerada das coisas e a ausência, inclusive na classe médica, de um pouco de boa vontade para o coletivo.
O seguinte relato foi escrito, na primeira pessoa, pelo pai do Eduardo, tio da Carol (fnassis@uol.com.br).
Em 05 de fevereiro de 1997, após um acidente de automóvel junto com meu irmão, a Carol deu entrada em um hospital especializado em atendimentos de emergência, com sinais visíveis de descerebrização. Pouco tempo depois, um neurologista fez o diagnóstico de morte encefálica com base em testes clínicos e em uma tomografia computadorizada, realizada em uma clínica localizada a uma quadra do hospital. O hospital que leva o pomposo nome de Hospital Memorial de Natal, não possuía sequer um Eletroencefalógrafo.
Os pais da Carol não vacilaram em autorizar a doação dos órgãos possíveis, comunicando a sua decisão aos médicos assistentes e à administração do hospital. Eles agiram assim por duas razões: primeiro, já haviam experimentado o drama da espera por um doador para o nosso sobrinho que teve as duas córneas transplantadas no Instituto de Olhos da Paraíba, há mais de 15 anos, para resolver um problema de cegueira, provocado por uma doença chamada ceratocone. Segundo, o Eduardo já estava há mais de três anos com um problema sério de saúde e a indicação de transplante cardíaco seria apenas uma questão de tempo.
Quando cheguei a Natal, três dias após o acidente, sabendo da decisão dos pais da Carol, verifiquei no hospital que nada havia sido feito para viabilizar a doação dos órgãos. Indagados, médicos e enfermeiros apenas diziam: "aqui ninguém não faz isso não". Telefonei para o médico do Eduardo, em Porto Alegre, RS, o qual orientou-me para procurar o médico da Secretaria de Saúde responsável pela captação de órgãos no Estado e até mesmo telefonar para a Central de Transplante de São Paulo a qual, possivelmente, teria condições de captação em Natal.
Conseguiu-se o nome e o telefone do tal médico da Secretaria de Saúde na própria administração do hospital. Enquanto um amigo ligava para ele (no caso ela: Dra. Sanali) liguei para a Central de Transplante de São Paulo (011 306-41649). Uma atendente muito educada, mostrando grande interesse pelo caso, solicitou as informações básicas da possível doadora: nome, idade, causa do acidente cerebral, grupo sangüíneo, peso aproximado, etc.. Outras informações, deveriam ser fornecidas por um médico com acesso ao prontuário da paciente. Forneci-lhe então o número do hospital. Para minha surpresa ela falou-me que não estava autorizada a fazer uma ligação interurbana. O hospital de Natal era que tinha que ligar. Fui então à administração deste que retrucou: "nós também não fazemos ligações interurbanas, a não ser que o plano de saúde do seu irmão autorize"
A batalha seguinte foi conseguir convencer a médica plantonista da UTI, onde estava a Carol, a falar com São Paulo através de um celular de uso pessoal. Ela recusava-se terminantemente a entrar em contato com a Central de Transplante porque jamais tinha tido experiência semelhante (sic). Somente foi convencida quando lhe foi dito com "muita calma": olha, pega este telefone, digite este número, diga seu nome, quem é, porque está telefonando que certamente a conversa deslanchará. Dito e feito. Mas já era tarde. A pressão arterial da Carol zerara (ou tornara-se inaudível?) há mais de 12 horas.
Foi assim que uma menina de 16 anos, bela e, mais importante, saudável, perdeu a chance de, tornando-se doadora, reciclar seu corpo permitindo que possivelmente outras seis pessoas, de imediato, continuassem vivendo sem a ajuda de máquinas. De algum modo, entretanto, conforta-me o fato de saber que pessoas por aí vêem o mundo através das córneas dos belos e inesquecíveis olhos da Carol.
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