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Entre a Carol e o Edu: pedras no caminho dos transplantes.

(Artigo publicado no jornal Diário Popular, Pelotas, RS em 16/06/98)


Em fevereiro de 1997, após um acidente de automóvel, Carolina, uma menina de 16 anos, entrou no Hospital Memorial de Natal, especializado em atendimentos de emergência, com sinais de descerebração. Pouco tempo depois, um neurologista, com base em testes clínicos e em uma tomografia computadorizada, realizada em uma clínica localizada fora do hospital, fez o diagnóstico de morte encefálica.

Os pais da Carolina, sem vacilarem, autorizaram os médicos assistentes e à administração do hospital a doação dos órgãos possíveis. Agiram assim por duas razões: primeiro, já haviam experimentado o drama da espera por um doador para um sobrinho que, portador de uma doença chamada Ceratocone, teve as córneas transplantadas no Instituto de Olhos da Paraíba, há mais de 15 anos; segundo, outro sobrinho, Eduardo, já estava há mais de dois anos na expectativa de uma provável indicação de transplante cardíaco.

Três dias após o acidente, verificou-se que o hospital nada fizera com respeito à doação. Indagados, médicos e enfermeiros apenas diziam: "aqui ninguém não faz isso não". Em contato com o médico do Eduardo, em Porto Alegre, o mesmo orientou no sentido de procurar, em Natal, o responsável pela captação de órgãos no Estado ou, até mesmo, telefonar para a Central de Transplante de São Paulo a qual, possivelmente, teria condições de captar órgãos em Natal.

Fez-se um contato com tal médico, que por sinal atendia no mesmo hospital, que passou o telefone da equipe de transplante em Recife. Em seguida foi também feito um contato com a Central de Transplante de São Paulo. Ali, uma atendente muito educada, demonstrando boa vontade e treinamento para a situação, solicitou as informações básicas da possível doadora: nome, idade, causa do acidente cerebral, grupo sangüíneo, peso aproximado, etc..

Outras informações, estritamente de natureza médica, deveriam ser fornecidas por um profissional com acesso ao prontuário da paciente. Foi-lhe então fornecido o número do hospital. Surpreendentemente ela respondeu: "não estamos autorizados a fazer ligações interurbanas". O hospital de Natal era quem deveria ligar. Na administração deste a atitude foi semelhante: "nós também não fazemos ligações interurbanas, a não ser que o plano de saúde do seu irmão autorize". O autor é irmão do pai da Carolina.

A batalha seguinte foi convencer uma médica, plantonista da UTI, a falar com Central de Transplante através de um celular de uso pessoal. Recusava-se porque, alegava, jamais tivera uma experiência semelhante (sic). Somente foi convencida quando lhe foi dito com "muita calma": olha, pega este telefone, digite este número (011 306-41649), diga alô, quem é, porque está telefonando, que certamente a conversa deslanchará. Dito e feito. Mas já era tarde. A pressão arterial da provável doadora zerara (ou tornara-se inaudível?) há mais de 12 horas.

Foi assim que uma menina de 16 anos, bela e, mais importante, saudável, perdeu a chance de, tornando-se doadora, reciclar o seu corpo, permitindo que possivelmente outras seis pessoas, de imediato, continuassem vivendo sem a ajuda de máquinas. De algum modo, entretanto, conforta-nos o fato de saber que pessoas por aí vêem o mundo através das córneas dos belos e inesquecíveis olhos da Carol.

A história do Eduardo, embora diferente em alguns aspectos, também envolve doação de órgãos. Começou em outubro de 1994 quando, com dores abdominais, náuseas e vômitos, foi atendido em um pronto-socorro de Pelotas, onde se suspeitou de apendicite. Dias depois, com os mesmos sintomas, teve um quadro súbito de dispnéia, cianose, hipoglicemia, etc. Transferido às pressas para uma UTI, uma equipe médica multidisciplinar (um Clínico, um Cardiologista e um Gastroenterologista) rejeitaram acertadamente a hipótese de apendicite e estabeleceram, com base na interpretação equivocada do resultado de provas de funções hepáticas, o diagnóstico de hepatite fulminante. Esta hipótese, para visível decepção da equipe, principalmente do "professor" de Gastroenterologista, não foi comprovada.

Na verdade, o Eduardo desenvolvera uma miocardite que evoluiu para uma miocardiopatia dilatada, como sói acontecer, segundo a literatura médica, em um número reduzido de casos semelhantes. É uma das principais causas de indicação de transplante cardíaco no mundo e mata mais da metade dos pacientes em até cinco anos. Esta foi a causa básica de sua morte, no final de maio, no Instituto de Cardiologia, em Porto Alegre, depois três anos e sete meses do diagnóstico dos médicos daquele Instituto. Neste período, passou 165 dias na lista de espera por um doador. Em 1997, através da Lei 9.434, de 4 de fevereiro, regulamentada pelo Decreto 2.268, de 30 de junho, o governo brasileiro estabeleceu as regras para os transplantes de órgãos no Brasil. Essa lei somente entrou em vigor em janeiro deste ano. O período entre junho e dezembro fora reservado para uma campanha de esclarecimento da população sobre o seu aspecto mais importante - a doação presumida, ou seja, a regra, segundo a qual, toda pessoa que não declarou em vida intenção contrária à doação é automaticamente doadora. Quem se lembra dessa campanha? Ninguém. Não houve. Pelo menos até agora.

Enquanto a Carolina não conseguiu doar os seus órgãos, por causa de um impedimento burocrático mesquinho, o Eduardo não teve um doador porque, com certeza, não estamos suficientemente informados e conscientes da necessidade da doação e dos seus critérios. Paradoxalmente, o doador existe. Segundo o responsável pela captação de órgãos no Estado de São Paulo, Agenor Spallini Ferraz, se todas as ocorrências de morte encefálica fossem notificadas, as equipes credenciadas para realizarem os transplantes seriam insuficientes. Mas uma constatação estatística é dolorosa: mais de 30% das pessoas necessitando de um transplante de coração, por exemplo, morre na lista de espera. O Eduardo, 15 anos, entrou nesta estatística, deixando uma imensa e dolorosa saudade.

Entre a Carol e o Edu encontram-se as pedras no meio do caminho dos transplantes no Brasil: num país com muita lei e pouca saúde é gritante a desinformação, a falta de uma estrutura organizada, a burocracia exagerada e a ausência, inclusive, e principalmente, na classe médica, de um pouco de boa vontade para com o coletivo. No conjunto, são coisas que atrapalham a doação de órgãos."

*Professor Universitário



Este site foi criado por iniciativa de Edu e foi lançado no dia 27 de abril de 1998, trinta dias antes de sua partida. Em junho de 1998 foi reformulado como uma homenagem para ele e Carol, sua prima. Em novembro de 1998 foi criada a ADOTE - Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos, como resultado da repercussão dessa iniciativa.

Esta história - intercalada com quase todas as informações sobre o processo doação-transplante no Brasil, incluindo legislação, organização, ética, medos e mitos e o que podemos fazer para ajudar a solucionar um problema de saúde pública que atinge todos nós - está narrada no livro Esperando um coração...


"... o primeiro livro brasileiro sobre o tema doação-transplante escrito por alguém não proveniente da área de saúde"
PREFÁCIO

Esperando um coração nos leva a uma profunda reflexão sobre a problemática dos transplantes de órgãos no nosso país.

Iniciamos nossa atividade nesta área da medicina em junho de 1984 quando tivemos a oportunidade de realizar o primeiro transplante cardíaco no Brasil na era da Ciclosporina (droga que controla a rejeição de órgãos). Nesta ocasião, pela primeira vez, solicitamos a doação de um coração a uma família. Foi uma experiência muito rica e nos demonstrou que os seres humanos possuem um lado humanitário fantástico e o que é necessário é trabalhar sobre esta face da emoção das pessoas, mostrando a elas que o ato de doar é de tamanha grandiosidade que nos aproxima de Deus.

O livro escrito pelo nosso amigo Francisco, mostra de maneira notável o sofrimento dos familiares de ambos os lados, dos que doam e dos que aguardam órgãos. Nos ensina, também, o quanto o médico deve ser humilde como profissional e como ser humano.

Esperando um coração é também um presente a todos que trabalham com doação de órgãos. É o outro lado. A visão que o paciente, os seus familiares e amigos têm do nosso trabalho e de todo o contexto que envolve os transplantes em nosso país.

Além do lado extremamente envolvente do livro temos o lado técnico, já que o autor preocupou-se em esclarecer todos os aspectos, como religião, legislação, centrais de transplantes, dentre muito outros.

É com grande satisfação que escrevo este prefácio. O Francisco, sublimando sua dor, e trabalhando em prol da doação de órgãos, colabora enormemente para minimizarmos o sofrimento de nossos semelhantes.

Amigo Francisco: foi uma honra te apresentar. Parabéns pelo livro que me fez meditar sobre o nosso papel nesta luta.

Porto Alegre, julho de 2000.

Dr. Ivo Nesralla
Pioneiro na América Latina em transplantes cardíacos depois do advento da Ciclosporina e no implante do HeartMate. Diretor do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul e, entre outros, autor do livro Cuide bem do seu coração.

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