Café da manhã em Madrid
Madri, Espanha
por Danyel Sak * | |
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Se eu conheço uma chocolateria...? Claro, entra naquela ruazinha...isso, aquela estreitinha e anda até o meio do quarteirão, do lado esquerdo da calçada. É a Chocolateria La Austríaca. Mas austríaca, só o nome. Se bem me recordo quando conversamos com eles, era o antigo nome antes deles comprarem o local. Eles? Eles quem? Bom, é uma família, diria, a família Waltons das chocolaterias. Mas, antes vamos à localização. Você tem a Gran Via. E numa travessa da Gran Via, você tem a Fuencarral, uma rua muito longa, antiga e estreita, perfeita para ter hostais...e tem. A Calle Fuencarral abriga a maior parte dos Hostais que você pode imaginar. Pela sua localização central, aos poucos os apartamentos de famílias foram transformados em Hostales. Apartamentos com muitos quartos, verdadeiros labirintos, com as velhas passadeiras nos corredores. E claro, as famílias ainda moram lá, em uma parte reservada. Os preços são relativamente baratos para uma hospedagem de curto prazo. Claro que você encontra de tudo, é bom procurar. Quando eu e a Cinthia viemos visitar a Europa, fomos direto para a Fuencarral, mochila nas costas e percorrendo as ruas para ver o que fôsse mais barato mas dentro dos limites de acomodações aceitáveis: cama e banheiros (apertados) limpos. Acabamos achando um em que a dona era uma senhora muito gorda e ficava o dia inteiro cuidando do casa/hostal dela. Naquele hostal, a vida particular dela e dos hóspedes acabavam se misturando...o que era bom para quem queria apreender algo sobre as pessoas locais. Me lembro um dia em que entrei na sala de estar dela para perguntar algo sobre onde poderíamos encontrar um local para tomar o café da manhã. A televisão estava ligada naqueles programas de concursos. O marido dela vestindo pijama (claro...ele estava em sua própria casa) estava sonolento diante da TV, enquanto ela, gorda e com jeito de mamma, tinha uma tigela sobre o colo enquanto batia os ovos para supostamente fazer uma tortilla. No chão o bebê engatinhava procurando conhecer as caras novas que apareciam todos os dias no hostal. E por falar em caras novas, acabei puxando conversa com as pessoas que estavam junto à senhora-mamma em volta da mesa. O primeiro era um rapaz espanhol que morava na Cantábria e estava ali literalmente morando, pois tinha vindo estudar na Capital, Madrid. Começamos a falar e eu, que na altura não sabia quase nada sobre as regiões da Espanha, acabei tendo uma aula (com mapa e tudo que ele foi buscar) sobre as regiões espanholas. Mas eu não era o único aluno. Ao meu lado estava uma pequena garota japonesa, que prestava atenção muito atentamente a tudo enquanto a mamma batia os ovos. A história da japonesinha era a seguinte: ela e a família achavam que ela deveria aprender espanhol. Então colocaram a garota dentro de um avião e byyyeeee...! Só isso..? É, só isso. Há vários casos destes entre os orientais que vão para a Europa. Eu mesmo encontrei outra garota japonesa em um trem que ia de Munique para Viena. Ela também não falava absolutamente nada, só arranhava um pouquinho (bem pouquíssimo) o inglês. Depois de muitas tentativas durante a viagem, consegui entender que ela queria saber absolutamente tudo sobre as óperas e a Ópera de Viena. Então, se enfiou em um avião e depois em um trem, até chegar em Viena. Sim, isto não é imersão, é uma versão kamikaze de imersão. Eles costumam fazer muito isso, porque além do aprendizado procurado, se defrontam com todas as dificuldades possíveis e imagináveis para quem não está acostumado com o mundo ocidental, o que, apesar do sofrimento inerente, acaba sendo também um aprendizado paralelo muito valioso. Mas voltando à sala do hostal, eu conversava com o rapaz, que me explicava e me mostrava o mapa e ela olhava atentamente tudo...e não falava absolutamente nada de castellano. Depois de muito tempo tentando conversar com ela o máximo que saiu da parte dela foram muitos sorrisos e a palavra 'gracias'...e só. Falei com a mamma do hostal sobre o que a garota japonesa estava fazendo lá. A mamma me disse que ela já estava há uns dois meses e ia ficar naquele hostal durante um ano. E todos os dias se reunia na sala com a mamma preparando a comida, a TV ligada no programa de concursos, o papa sonolento, o bebê engatinhando e quem mais aparecesse para conversar. Bom, a fome foi apertando, nos despedímos do rapaz e da oriental e fomos perguntar à mamma onde poderíamos tomar café...era Inverno e estava muito frio lá fora. Ela disse que numa travessa da Fuencarral na Calle de San Onofre, 3 havia uma cafetaria, no meio do quarteirão, do lado esquerdo da calçada. Nos despedimos e enquanto me afastava ainda vi aquele complicado e divertido diálogo entre o rapaz espanhol e a oriental. Descemos e andamos alguns metros, olhamos a placa...sim...aí está a rua, dobramos à direita e de repente encontramos a cafetaria...gente saindo pelas janelas. Aos trancos e barrancos entramos. Quentinho lá dentro. Acabamos conseguindo um local para sentar lá no fundo, no meio de tanta gente. Ea impossível ver o balcão, pessoas animadas (11h da manhã, pausa espanhola para tomar o café) como é típico, falavam todas ao mesmo tempo, e como é costume, em altos brados. Deixei a Cinthia lá no canto e disse 'fica aí, não se mexe, não some' e fui remando através da multidão. Olhei o que o pessoal pedia e pedi o mesmo. Mas só consegui estender o braço e falar para alguém que não vi o rosto.... 'dos chocolates, dos media lunas, una de churros y un jugo de naranja, por favor...' Claro que no meio de tanta gente pensei 'foi um pedido que se perdeu no turbilhão de vozes'...mas qual não foi o meu espanto que apenas uns minutos depois ele veio completo. E correto. Voltei a remar entre a multidão e acabei encontrando a Cinthia novamente. Só então notamos o chocolate....delicioso. O melhor chocolate que já provamos até hoje. Tão quente e espesso que daria até para cortar com faca, delicioso e inesquecível. Fomos nos deliciando com ele e com as medias lunas e de repente o ambiente começa a esvaziar, esvaziar, esvaziar e estamos só nós e eles, os donos...finalmente conseguimos vê-los. A senhora era a típica espanhola; voz firme, boca e olhos pintados e sempre com energia. Ao seu lado estava o marido, um senhor forte e com cara simpática. E para completar estava o vovô, um senhor magro de cabelos brancos, olhos vivos e muito agitado. Eles formavam um time profissional. No meio daquele caos a senhora conseguia lembrar de todos os pedidos (sempre atendidos corretamente), distribuir as tarefas aos brados e ainda fazer todas as contas. Detalhe: eles não cobravam, a pessoa é que se dirigia até eles para dizer o que consumiu. Muitos anos depois, agora morando na Europa fomos dar um pulo até Madrid, e nos lembramos é claro, da cafetaria. Fomos até lá, ansiosos para que tantos anos depois ela ainda existisse. Fomos nos aproximando passo a passo...espera...a cor da parede está diferente...a porta também...vamos nos aproximando...novamente aquela multidão...só que agora saindo porque já era mais tarde...entramos temerosos e de repente...eles...Os Waltons...eles...exatamente iguais. Eu e a Cinthia abrimos um sorriso um para o outro como se tivessemos encontrado velhos amigos. Entramos e fizemos o teste crucial: 'dos chocolates, por favor'. O marido, o especialista em tirar os chocolates atendeu o pedido e recebemos as xícaras...estavam iguais...perfeitas...chocolate fumegando...espesso...delicioso. Após o café começamos a falar com eles que tínhamos vindo há muito anos atrás e que a cafetaria estava diferente. Mary (a dona) disse que eles a haviam reformado. Mas a cafetaria continua sendo um local muito simples e escondidinho naquela rua muito estreita. O que não mudou foram as comidas e o serviço (familiar); continuavam iguais. Acabamos conversando com o vovô também. E agora a filha deles e mais algumas pessoas davam uma mãozinha. Soubemos então o nome foi herdado do negócio anterior ('...muita burocracia para mudar os papéis...'). Acabamos por saber que eles eram migrantes que vieram lá do norte, de Santander onde está o frio Mar Cantábrico. Apesar de serem muito discretos, se você puxar um papo, eles acabam sendo muito simpáticos. Mas, voltando ao café da manhã, imperdível também é a torrada com manteiga (atenção: na Espanha eles consideram uma torrada a metade de um pão) e claro o café com leite. Claro, se você aparecer em outros horários começa a sessão de pinchos, bocaditos, copita de vino, etc.). Mas o imperdível mesmo é o chocolate. Inesquecível. |
Resumindo... |
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DANYEL SAK é publicitário e se diverte escrevendo crônicas para os amigos. Atualmente vive em Cascais (Portugal). vansaak@mail.telepac.pt |
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