Charlotte Vamos Jantar Fora
São Paulo, Brasil

por Danyel Sak *

Quando era pequeno (já cheguei aos 1,80) certos Domingos íamos jantar fora. Mas eram outros tempos: jantar fora era mais do que jantar fora. Naquele tempo, jantar fora significava para mim o que hoje em dia seria a mesma sensação de ir viajar: aquela ansiedade, a vontade de sair e chegar lá. Mas para um restaurante...? É, como disse acima (se você perguntou é porque não leu com calma o início) eram outros tempos. Coisas como os almoços de Domingo com a família reunida: sair, ir até a padaria com meu pai comprar frango com a respectiva farofa (e eu pensava quando via a farofa ?mas como é que eles fazem isso...? E essas bolotinhas misteriosas que estão envoltas na farofa....será que é carne...? será que são pedacinhos de frango..? será que são outras coisas...? De volta a casa, abria a porta e lá estavam elas em cima da mesa de jantar, sobre a toalha branca: as duas garrafas de refrigerante sobre a mesa. Uma de 750 ml de Coca Cola e outra 750ml de Fanta. Olhar aquilo era um prazer, porque este tipo de coisa só aparecia em alguns poucos Almoços de Domingo. E este para mim era o Almoço de Domingo. Porque para mim, o almoço de Domingo se resumia a isso, já que nunca fui um gourmet: o passeio para comprar o Frango, a hora de beber um copo de refrigerante e depois de muita discussão conseguir deixar a mesa com o prato pela metade. Pois bem, mas a outra emoção era jantar fora. A notícia vinha lá pelo final da tarde com meus pais entrando em acordo em irmos. Ia chegando a noite e nós nos arrumávamos todos: colocar a roupa de Domingo, eu, meus pais e meus irmãos. E lá íamos nós pegar um táxi até o restaurante (muito tempo depois veio o primeiro carro, um Volkswagem 1300, e uau, refrigerado a ar) que em geral era no próprio bairro. Mas a minha emoção era tanta que nem a minha viagem ao exterior depois de grande, conseguiu superar a emoção de jantar fora (mesmo sempre deixando o prato pela metade). Então, lá íamos nós no táxi (se fôsse um DKW seria melhor, pois cabia todo mundo). Mas toda vez que entrava no DKW sempre achava estranho e me perguntava porque a porta da frente daquele carro abria diferente de todas as outras dos outros carros e porque aquele motor, ao contrário dos outros sempre ficava soluçando? De qualquer jeito eu gostava do barulho daquele carro e dos soluções do motor: era como se estivesse andando em algo muito possante, como um carro de corrida. Daqueles de plástico que eu brincava (aquele plástico mole e ôco, que depois de ser pisado sem querer, não tinha jeito de tirar o amassado que ficava para dentro. Aliás tinha: só mesmo fazendo um furo com a agulha de tricô da minha mãe e ir ajeitando até desamassar mais ou menos). No meio do caminho acontecia aquela coisa que nunca mudou até hoje em época de Internet e de Genomas: a conversa com o motorista do táxi; tempo, futebol, os aumentos do governo, 'ô carrinho que não dá mão-de-obra' e quase chegando ao restaurante terminava no 'dá uma encostadinha que é aqui mesmo, espera um pouquinho até eles saírem (o banco de trás do DKW era afundado e era sempre uma dificuldade para todos saírem), muito obrigado e Boa Noite'. Chegávamos lá, eramos recebidos pelo dono, aquele ambiente de restaurante de imigrante: acolhedor, simples, como se estivessemos entrando na nossa outra casa. Olhavamos ao longe para o salão e eles apontavam a mesa que seria escolhida 'não, esta está muito perto da porta', 'esta está longe do garçon e ele acaba não nos vendo', 'e aquela mesa? não, o casal do lado está discutindo', 'e aquela? não dá porque só tem uma e nós precisamos juntar duas mesas', 'e aquela? fica muito perto do banheiro e é aquele entra e sai'. 'Olha, tem aquela em que o pessoal está saindo. Isso, vamos nos aproximando com calma sem ser mal educado, mas quando eles começarem a sair nós sentamos rápido'. Aguardávamos um pouquinho e quando o pessoal da mesa ia saindo nós ao mesmo tempo íamos nos aproximando. Para mim aquilo era o mesmo clima de dar a bandeirada de partida da Fórmula 1. Só que ao contrário: primeiro era a bandeirada para ir até a mesa e depois a emoção de escolher uma cadeira e sentar; exatamente a mesma sensação de escolher um carrinho no parque de diversões e depois sentar. Já sentados, vinha a parte que menos interessava para mim: a escolha da comida. E logo a seguir a parte que mais interessava: pedir um refrigerante, já que refrigerante só em alguns Almoços de Domingo ou indo jantar fora. É, refrigerante, além de extravagancia era algo visto como não alimentício, então em casa, no dia-a-dia era suco de frutas (e hoje vejo que eles estavam certos: eles eram a Geração Saúde muito antes de aparecer a Geração Saúde). Os refrigerantes chegavam junto com os pães e o couvert, e claro este era o meu jantar: o pãozinho, a manteiga e depois era escolher uma desculpa para deixar o prato pela metade. Meus pais raramente bebiam refrigerante, em geral uma Cerveja comum e outra preta. E claro, uma grande garrafa de água. Então uma vez, quando olhei a grande garrafa de água, pensei 'e se eu colocar um pouco de água junto com o refrigerante que está no copo? Será que dá para aumentar a quantidade?' E lá fui eu pedir a água e colocar no copo. E ao colocar vi que a Coca Cola ficava com a mesma cor, e fui colocando mais e mais, e mais e mais. E no fim o copo, que era grande para mim, estava cheio até a borda e eu muito feliz: havia conseguido o milagre da multiplicação dos refrigerantes. Só faltava agora beber tudo e o meu jantar estaria completo. Coloquei na boca e....o gosto era de água: água total. Tentei disfarçar a minha decepção e provei mais algumas vezes: quem sabe se depois de um tempo o gosto de Coca Cola voltava, devia ser questão de tempo para ele aparecer de novo. Aguardei mais um pouco e quando veio a comida provei: água pura. A cor era de Coca Cola, mas o gosto era de água. A minha invenção não tinha dado certo (se tivesse dado certo, a Coca Cola teria falido). Bom, só restava arranjar algumas desculpas para deixar o prato pela metade enquanto os outros se deliciavam com as cebolinhas em conserva, o presunto crú, a massa ou o frango. Eu por mim, estava satisfeitíssimo com aquelas batatas caseiras, grandes, assimétricas e com purê dentro, que hoje quase nem existem e as pré-fritas num revival estão vendendo com o mesmo old shape nos supermercados. Bom, o copo de refrigerante continuava lá, o prato pela metade foi parar em outro prato e eu lá olhando o ambiente em volta e me divertindo brincando com os palitos de dentes portugueses (aqueles achatados de uma ponta só) e pensando porque estes palitos divertidos só existiam neste restautante e nem tinha na padaria e outros lugares? Então chegou a segunda melhor hora depois do refrigerante: a hora da sobremesa. E foi aí que eu como sempre ia escolhendo uma torta e de repente escutei alguém na mesa mencionar a palavra Charlotte. Logo perguntei o que era Charlotte. Daí procuraram me explicar que era um tipo de sorvete mas que não era tão gelado. Bom, foi meio difícil de entender. Mas eu pensei que deveria ser uma coisa legal, porque sempre que comia sorvete muito gelado pensava 'porque é que ainda não inventaram o sorvete quente?' E a minha mãe respondia que senão ele derretia. E naquele instante pensei: 'que bom, acho que acabaram de inventar o tal sorvete que eu tanto queria'. Fiquei muito feliz e resolvi experimentar aquela invenção pela qual eu tinha esperado tanto tempo. E enquanto esperava o tal Charlotte, ficava pensando quando iam inventar um prego que não amassa. Porque todas as vezes que eu ganhava de presente aqueles jogos de montar que tinham ferramentinhas, martelos e pregos, eu sempre na hora de pregar amassava o prego. E nem pensando que o culpado do prego ficar torto era a minha pontaria pensava sempre 'quando é que vão inventar os pregos que não amassam?'. No meio de todo este pensamento o garçom apareceu novamente com os pratinhos lá no alto começando a pousar sobre a mesa e eu louco para ver o tal Charlotte. E quando pousou foi uma decepção; não tinha aquele jeito de sorvete com aquelas bonitas formas: era um simples retângulo em cima do prato. Apenas um tijolinho. Mas, olhando melhor vi que a cor dele era diferente: ele tinha umas cores muito bonitas, era rajado e os tons tinham vermelho, rosado, amarelo, creme, e mais algumas. Bom, eu nunca tinha visto um sorvete que fôsse rajado e com tantas cores minuciosas. Tinha até umas manchinhas brilhantes cor de cereja que dava vontade de passar a colher e comer. E foi o que eu fiz: tentar decifrar aquele mistério do sorvete que não era tão frio. Peguei a colherzinha e tirei um pedacinho. E com muito cuidado comecei a provar (porque com um sorvete assim tão diferente, todo cuidado é pouco, vai saber se não tem muito o gosto de sorvete ou tem gosto de outra coisa?). Provei. Provei e gostei. Provei, gostei e nunca mais esqueci. E ainda no final, depois de derretido ainda tinha umas coisinhas que ficavam no prato e eram muito gostosas de comer envoltas no sorvete já derretido. Perguntei para a minha mãe o que era e ela disse simplesmente: bolo. Bolo...? Bom, voltamos para casa como sempre à pé, como eles diziam 'para fazer a digestão'. E eu todo feliz, como o bolso cheio de palitos portugueses para brincar em casa, ia pensando: puxa, já inventaram o sorvete que não é tão frio, agora só falta inventar os pregos que não entortam.

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Passados muitos anos eu até hoje nunca comi um Charlotte como aquele. Mas o nome ficou na cabeça. E o gosto e as cores também. Tenho a certeza de que era receita caseira da mulher do imigrante dono do restaurante. E estes dias enquanto abria a geladeira para pegar o sorvete de Chocolate, me lembrei desta história e contei para a Cinthia. E ela, depois de escutar falou: olha, tem um bolo que eu fiz. Você não quer misturar no sorvete...? Eu olhei para ela, peguei o sorvete e coloquei num pratinho. Depois, com todo o cuidado peguei o bolo. E aí, cortei e amassei em pedacinhos o bolo e o sorvete, e misturei. Provei. E o Charlotte apareceu depois de tantos anos. Claro que não era como aquele e nem tinha aquele gosto: mas era Charlotte. E o principal: era o tal do sorvete quente.

Receita do Charlotte Vamos Jantar Fora

    Resumindo...

  • restaurante: Cantina Montenero
  • endereço: Rua da Graça - Bom Retiro, São Paulo (Brasil)
  • sugestão: seria pedir um charlotte, mas como o restaurante não existe mais, uma opção é provar um parecido na Cantina Monte Verde (Rua Barra do Tibagi, no mesmo bairro)

DANYEL SAK é publicitário e se diverte escrevendo crônicas para os amigos. Atualmente vive em Cascais (Portugal). vansaak@mail.telepac.pt


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