Apresentação

"Que o futuro não se torne um tempo homogêneo e vazio."

Volto à outra caneta, à outra cor (escrevi esta, "originalmente", à caneta). Para mim ainda é mais gostoso escrever com esta caneta. Parece que a escrita, na escritura, flui. Não importa tanto o que escrever, mas o como escrever, a arte da escritura, o modo que permite à escritura fluir em escrita. Já tenho feita uma distinção. A escrita e a escritura. A escrita como o que está aí, à vista, o suporte material, as letras em azul ou negro. A escritura como o ato, o ato de escrever, tomar a caneta e deixar a caneta marcar o branco do papel.

Com os dedos sujos de tinta, escrevo com negra tinta. Caneta tinteiro. Retomo uma antiga paixão, canetas que ainda solicitam ser abastecidas de tinta. Pré-história de nossas descartáveis esferográficas. Uma época pré-revolucionária aquela, superada pelo descartável esferográfico. A mão que escrevia era exigida. Deveria ter boa caligrafia (a redundância em escrever boa caligrafia. Cali já é kalòs. O belo. A bela escrita. As belas letras). Exercícios de caligrafia na infância. Cadernos de caligrafia. Era necessário aprender a ter uma bela letra.

Vieram as esferográficas e a máquina de escrever. Daí tornou-se necessário aprender a datilografar, a escrever com toques dos dedos. E com a datilografia o anonimato. No texto datilografado perde-se o traço, a letra daquele que escreveu. Um texto não poderia mais, daí para diante, ser reconhecido pela letra do autor, pela presença presente na escritura. E nem a letra do copista.

O original do autor, escrito com seu traço e letra, a cópia do copista, escrita com sua letra e traço, fundiram-se na escrita anônima e uniforme da máquina de escrever. A partir daí, o único elemento de diferença, na materialidade da escrita, eram as diferentes máquinas.Tal texto foi datilografado com tal máquina. Somente isto poder-se-á saber neste nível. Todo o sentimento, toda emoção, todo o estado afetivo, todas as idiossincrasias do autor, no ato da escrita, a sua presnça presnte, perderam-se. Resta à frente a frieza e a estereotipia militar de um texto escrito à máquina. No entanto, este texto só fora escrito uma vez; o autor poderia usar folhas de carbono ou uma matriz mimeográfica para fazer cópias. Todas as modificações posteriores poderiam ser comparadas com o original...

Mas eis que inventamos o computador, e o editor de textos. Todas as modificações são feitas diretamente na tela do computador, antes da impressão. E quando se imprime não há mais o original. Todas as modificações - a própria história do texto - estão para sempre perdidas. Assim não se escreve mais um texto. Digitamos.

Toda ciência grafológica, se um dia teve a esperança de existir, torna-se impossível e insensata, assim como a História perdeu seu principal fonte - o documento original. Original quer dizer origem, as origens do texto, aqueles momentos do rascunho, do improviso, da rasura, do reescrever, da anotação à margem, da primeira versão, da modificação das idéias...

Com o computador, o próprio ato de escrever tornou-se distinto.É possível cortar, transferir, colar. Um texto acaba por se tornar um mosaico de colagens, sem um original resgatável. Lembro de um texto que li na internet em que aquele que escreveu falava disso. Sintomaticamente, no texto repetia-se o mesmo parágrafo em lugares diferentes. Provavelmente o escrevente, ao revisar o texto antes de publicizá-lo, não percebeu a repetição, a colagem. Ao ler o seu próprio texto o autro/leitor já não o lê do mesmo modo, atento. Ler numa tela de computador é muito diferente do ler no papel. O próprio movimento da leitura é diferente. (Vou esquecer, propositalmente, do telefone e do e-mail).

No papel, no livro, lemos da esquerda para a direita e de cima para baixo. Num jornal (impresso, pois agora também temos jornais on line) a leitura é da direita para a esquerda, das figuras para o texto. A primeira leitura de um jornal nunca é atenta. Procuramos primeiro o que interessar, a partir de cima e à direita. No caso de uma tela de computador, a leitura passa do centro às bordas, num movimento centrípodo. Já estão chamando isto de escaneamento. Depois de lermos muito tempo no computador, repetimos esta mesma tendência ao lermos o material impresso. Passamos os olhos pelo texto, sem que o leiamos efetivamente. Talvez por isto seja necessário insistir numa leitura atenta...

É assim que ando pensando o trabalho de Derrida e sua obsessão pela escritura, pela leitura, pelo traço, pela margem, pelos intervalos, pelos arquivos. Penso-o não como a uma viúva do papiro e da caneta, mas como alguém que está pensando o nosso tempo. Penso com Derrida para pensar o contemporâneo.

Boa parte da história da psicanálise estaria perdida se Freud e seus discípulos não tivessem escrito tantas cartas. A maior parte da doutrina lacaniana teria se perdido se não houvesse as estenógrafas e os gravadores. Lacan escreveu pouco, proporcionalmente ao que ele falou. Assim também Sócrates não escreveu e o que dele sabemos é através de seu escriba, Platão. O próprio Cristo não escreveu nada. Parece que falar era mais importante do que escrever, e escrever era algo secundário (quase indigno e tarefas de escribas, não de sábios ou filósofos). Derrida não cessa de apontar para isso...

Quando eu era criança, havia em minha casa uma lousa que fora utilizada pela minha mãe, quando ela era criança. Escrevia-se nesta lousa com um estilete. Quando um dos lados estava escrito, poder-se-ia escrever no outro lado. Quando os dois lados estavam escritos, e necessitava-se continuar escrevendo, tinha-se que apagar um dos lados. A lousa era apenas para exercitar a escrita ou para escrever aquilo que deveria ser memorizado, ou como se diz "decorado"(de de cor, de coração. Tinha-se que decorar, saber de cor, de coração). Era o exercício da memória. Tudo isto retornou quando li a leitura que Derrida faz de Platão no A farmácia de Platão. A escrita como auxiliar da memória e como corrupção da memória. A escrita como pharmakon. Remédio e veneno, benção e maldição. Um presente e um castigo dos deuses...O conhecimento empírico, a sabedoria, a verdade da alma em oposição ao conhecimento livresco, às fórmulas decoradas. O lógos vivo em oposição à escrita morta. O filho legítimo que conta com a presença do pai em oposição ao filho bastardo (a escrita) abandonado ao seu próprio destino.

Então, é por estas vias que ando lendo Derrida. Da caneta tinteiro ao computador. Do dito ao escrito. Quanta coisa há neste intervalo.

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