"Secreaming"Barbara Astman
"Eu era um tipo alegre, mas que
fazer da alegria, quando a dor é
um rio sem vau?"
(MAIAKOVSKI, A Esperança)
A Linha do Trem
A vida da gente agora neste lugar, Ibrahim, tem sido como a linha do trem, ela diz, e eu estou com meio sanduíche na boca e só consigo dizer arrã, sem saber o que ela quer realmente me dizer. Ela bate na minha mão e se levanta dizendo que vai ao banheiro e que já volta, me pedindo para esperar um pouquinho e vai em direção à porta de madeira com o desenho de uma rosa sobre a palavra Damas, na lancheria. Fico escarafunchando no fundo do copo com o canudinho de plástico branco com listrinhas vermelhas, misturando o restinho de suco de mamão no açucar molhado e pensando na linha do trem. A linha do trem, aqueles trilhos de ferro e dormentes de madeira irritantemente iguais, uns ao lado dos outros, ora indo e ora voltando, impassíveis. Pode ser da inércia da nossa vida, que ela quer me falar. Mas pode ser que ela tenha dito isso para me reavivar a dor pelo acidente com o filho, lá em Minas, já que não suporta por muito tempo viver sozinha com a dor. A morte é uma dor personalíssima daqueles que ficam aqui por esta vida. Aos outros não interessa essa dor que não de uma forma absolutamente superficial. Não há solidariedade alheia que lhe seja eficaz, não há consôlo sincero. Há o consôlo bem intencionado, mas esse não alivia em nada. Nada. O alívio só viria se fosse possível ao terceiro sentir no mesmo tempo e na mesma medida daquele que a sente próxima e esse terceiro, desesperado, se jogaria ao chão fulminado pela dor do outro, rolando como um bicho que urra, também atingido por aquela não-dor, por aquela lembrança sentida pelo primeiro. Em questão de meses o sangue do morto seca para quem está olhando de longe e a ferida só continua insuportável para aqueles que carregam consigo o mesmo e fervente sangue do partinte. Ela tentava provocar em mim esse sentimento, a ressurreição desse incômodo, quando falou sobre o trem. E, aos poucos, conseguia. Aqui nem existem trens ou se existe a gente não os vê, não há linhas regulares. Mas a presença do trem, com seu corpo de ferro quente e preto, ameaçador, é uma presença tão forte, constante nos pensamentos dela ou nos seus pesadelos que quando ela menos espera ele, o trem, invade o seu esôfago e chega tinindo, rascante lá de dentro da garganta e descarrila nos dentes, caindo para fora da sua boca. O filho era dela, mas o trem despedaçou o corpo dele e quando a notícia chegou até aqui, tardiamente, o trem também passou várias vezes sobre o meu corpo, pois fui eu quem o estimulou a viajar com os amigos. Eu dei a ele o dinheiro da viagem. Ele nunca me chamou de pai, mas me chamava de Velho, o que eu sei por conhecer o jeito dele - que significava quase a mesma coisa. O verdadeiro pai ele jamais viu, nunca soube quem era. Quando o conheci, ele nasceu para mim, aos cinco anos de idade, um filho pronto, sem fraldas, sem dor de barriga, quase sem mamadeira. Ela demora mais um pouco no banheiro e quando volta me parece que esteve chorando. Eu pergunto a ela o que você quis dizer com aquilo. Com aquilo o que, ela me pergunta. O negócio da linha, eu digo. Os olhos dela se enchem de lágrimas e ela me diz Ibrahim, eu nunca vi uma dor tão injusta e tão covarde. Eu entro no quarto e vejo as coisas dele, os posters, o tênis sujo, até o cheiro do cigarro que ele fumava escondido. Noutro dia, ela diz, eu apertei o spray do perfume dele pelas paredes, como se estivesse pichando elas, fazendo um grafite. E hoje se confundem alguns perfumes daqueles com os próprios tempos em que eu podia sentir a vida que vinha deles. Hoje, Ibrahim, ela me diz - uma lágrima pinga na toalha e as minhas têmporas começam a latejar - hoje não tem mais vida ligada a nada, nadinha daquilo, só lembranças covardes, lembranças que cravam lâminas frias e largas no meu ventre ôco e indefeso e que me empurram em certos momentos para um sítio de desespêro onde, eu sei, Ibrahim, eu vou terminar os meus dias. Ela me diz isso soluçando sem dar importância às pessoas nas outras mesas, que olham discretamente para essa mulher que chora. Hoje, ela continua, eu descobri que a ausência eterna de alguém bom pode ser infinitamente mais poderosa e destrutiva do que a presença de alguém maligno. O simples perfume das árvores lá de casa na primavera, me arremessa para um campo vazio onde eu corro sem rumo, sozinha, ouvindo os passarinhos cantando e tudo é bonito e colorido, mas assim mesmo é como se fosse um sonho muito ruim, onde eu estou irremediavelmente sozinha e cega pelo medo de estar abandonada no mundo. E quando é assim, ela me diz sorrindo e ainda chorando, me vem na cabeça a lembrança daquela foto antiga onde estamos todos nós, ele com cinco ou seis anos, de pé ao seu lado, Ibrahim, e você sentado. O sorriso de criança que olha para o fotógrafo, feliz, daquela felicidade que só uma criança que não sabe de nada nesse mundo podre pode ter, é como se fosse uma confirmação da segurança que ele possuia, naquele momento, ao estar com a mãozinha direita sobre a sua perna, Ibrahim, como se você fosse o pai dele. Ela me diz isso e um chôro convulsivo também me envolve, sacudindo o meu corpo, e ela põe a mão sobre a minha que está em cima da mesa, engole em sêco e me diz estes meus olhos que também já choraram tanto, se inundam de saudade e é a saudade que me dá força, me faz acreditar até no improvável, no sobrenatural, nas superstições baratas de qualquer curandeiro ou imitação barata de médium, na esperança de um dia eu poder reencontrar em algum lugar o meu filho, a quem a vida me arrancou impiedosamente, sem que eu tivesse a mínima chance de vê-lo partir ou chegar. Hoje eu tenho a certeza sinistra de que eu posso rodar o mundo inteiro chamando por ele e jamais vou ouvir uma resposta, nada, Ibrahim. É uma linha reta, sem começo e sem fim, como a do trem, tanto faz para que lado se vá. Ela diz isso e suspende a xícara de café no ar, pensativa. Olho para fora e um cego trajando terno cinza completo e gravata bordô caminha em linha reta pela Avenida Vinte e Quatro de Outubro, no final desta tarde de primavera, batendo sua bengala de aluminio. O vento trespassa pelo nariz dele o perfume de uma flor que sobrevive em alguma daquelas árvores grandes e antigas. Com a bengalinha dobrável ele tateia o chão fazendo ruídos mais para si próprio ouvir do que pela necessidade de bater com tanta força na calçada. Sua mente deve estar tão cega de lembranças quanto seus olhos estão de imagens. É um andar meio cansado e muito deserto, embora calce bom couro e vista bom linho. O resto é feito de cacos de barulhos e de golpes do vento. O resto são apenas versos ouvidos numa gravação e ditos pela voz cadenciada de um ator de teatro São versos que possui guardados para nada, pois já não enxerga mais nada e ninguém. São versos que leva para recitar numa boa oportunidade ou para mandar alguém transcrever dentro de um livro com exigências de caneta tinteiro ou de gramatura exata do papel. Não há para que ou para quem, mas os leva, pois assim como o vento sente necessidade de arrastar o perfume daquelas flores deslocadas no centro da cidade grande, também ele precisava muito arrastar alguma coisa, qualquer coisa, como se fosse um objetivo. Pode ser que haja alguém em algum lugar fazendo o caminho inverso, pensa. A filha dele está em casa, a umas cinco quadras dali, sentada na ponta de um sofá de veludo vermelho escuro. Ela olha para a tevê mas não enxerga a imagem da apresentadora loura que sorri e ensina uma receita fácil de carpaccio, pois está nervosa e segura com a mão esquerda uma xícara de café com leite, suspensa no ar. Seu pai está demorando e embora durante a maior parte da vida dela ele tenha sido cego, ela não se acostuma com o fato de ele andar sozinho nas ruas. A preocupação e o simples medo de perder o pai lhe despedaçam o coração.
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