GATINHOS
Insuportáveis os sabiás neste verão.
No nosso jardim não há palmeiras, mas mesmo assim a gente acorda com a gritaria de uma infernidade de sabiás.
A melodia de muitos decibéis, repetida ad nauseam, encobre as vozes dos outros pássaros. Os gaviões, periquitos e bem-te-vis recém-retornados a São Paulo, os pardais, os tico-ticos, as andorinhas e os rouxinóis mal podem ser ouvidos.
Onde é que Gonçalves Dias estava com a cabeça?
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Naquele domingo, no verão passado, o detestável canto das centenas de sabiás encobria um som que não identifiquei logo; um "piado" novo, estridente, alguma coisa que eu não me lembrava de ter ouvido antes.
Era porque até então eu nunca tivera gatos. Agora tenho.
Mas naquele dia acreditei que o miado fininho e ininterrupto dos gatinhos fosse o grito de algum pássaro que eu ainda não ouvira. Depois de revirar na cama por meia hora, tentando dormir outra vez, resolvi abrir a janela para tentar identificar que raio de ave produzia aquele barulhinho esganiçado.
Eram gatinhos.
Cinco gatinhos.
Estavam dentro do nosso jardim, perto do portão, tentando subir o pequeno degrau que leva ao gramado. E miavam, miavam.
Alguém tinha tido muito trabalho para colocar ali aqueles bichinhos: a parte inferior do portão é uma placa sólida de ferro, até a altura de um metro. Dali para cima, há grades verticais a intervalos de dez centímetros. Os gatinhos não poderiam ter chegado ao jardim sozinhos. Nem poderiam estar lá por acaso. Quem quer que os tivesse colocado ali devia ter feito isso muito deliberadamente, colocando os bichinhos de um em um, através do espaço entre as grades. Por quê? Por que justamente no nosso jardim?
OK, certo, antes assim. Melhor gatinhos que um nenê num cesto, pensei enquanto vestia o peignoir. Desci as escadas com uma caixa de papelão na mão, para juntar dentro dela os bichinhos. Tão bonitinhos.
Peguei os filhotes, olhando bem para a carinha de cada um. Recém-nascidos, miudinhos, menores que a palma da minha mão.
Que gracinha, pensei. Ainda nem abriram os olhos.
Coloquei a caixa de papelão na copa, embaixo da mesa, e esperei Lauro e as crianças descerem para o café-da-manhã. Enquanto não acordavam, aproveitei para cortar flores no jardim para enfeitar a mesa. O café-da-manhã aos domingos é sempre um acontecimento.
Não sei como não percebi nada de estranho naqueles gatinhos. Deve ter sido minha total falta de intimidade com bichos. Cresci sem animais de estimação, e meus filhos também estavam crescendo assim.
Quando Lauro desceu, ficou horrorizado.
Vamos levar embora estes gatos.
Ué, pensei que você fosse ficar contente. Você sempre quis um bichinho para as crianças...
Eles estão doentes.
Levou a caixa de papelão de volta para o jardim, sem deixar que as crianças tocassem nos gatinhos.
Depois do café a gente leva embora.
Lavou as mãos demoradamente, com as sobrancelhas franzidas.
Enquanto tomávamos o café, Sandro, o perfeito tio solteiro, aquele que os sobrinhos adoram, chegou para a visita de "surpresa" que nos faz mais ou menos uma vez por mês. Corri com as crianças para abrir o portão.
Sandro se agachou junto à caixa onde estavam os gatinhos com a mesma expressão horrorizada que Lauro tivera pouco antes.
Quem fêz isso?
Tonta como sempre, respondi:
Quem fêz o que?
Alguém furou os olhos destes gatos. E as patinhas foram cortadas.
Gritei sem perceber que estava gritando. Meu Deus, era verdade. Era isso. E eu achando que ainda não tinham aberto os olhinhos. E, claro, as patinhas eram mais curtas do que deviam ser. Como não percebi? Não havia pés nas extremidades, eram toquinhos mal cicatrizados. Muitas vezes ouvi falar em gente que gosta de torturar gatos. Por que justamente gatos? Um atavismo, algo ligado a feiticeiras e bruxedos?
Lauro vinha saindo de casa, pegou a caixa com os gatinhos.
Vou levar.
Não deixei.
Não; eu levo. Você fica aí com seu irmão, que você não vê nunca. Eu levo. Eu que pus eles para dentro de casa, fui burra, devia ter percebido. Burra.
Lauro não discutiu.
Pus no carro a caixa de papelão e saí dirigindo pelas curvas do Pacaembu, sem conseguir decidir o que fazer com os infelizes. Meu Deus, que judiação. Que maldade.
Eles miavam sem parar. Não sei se sentiam alguma dor ou se gatinhos miam mesmo assim, de cortar o coração. Ai.
Por fim parei no Cemitério do Araçá e coloquei a caixa com os bichinhos à sombra de uma árvore. Esvaziei e lavei uma vasilha que estava junto a um túmulo, com um arranjo de flores já seco e murcho. Coloquei-a dentro da caixa, com água fresca. Provavelmente teria sido melhor matar os gatinhos. Será? Se eu estivesse cega e amputada, será que preferiria morrer?
Não sei o que fizeram com eles, depois que saí do cemitério.
Mas eu não conseguia deixar de pensar: quem nos odiaria tanto? Porque aquilo só podia ter sido um ato carregado de ódio, e esse ódio parecia dirigido a nós. Ou não? Ou algum facínora teria achado engraçada a idéia de machucar os bichos e depois colocá-los laboriosamente dentro do portão de uma casa qualquer?
O domingo azul estava estragado, mas passamos o dia todo sem tocar naquele assunto. Pelo modo como Lauro e Sandro franziam as sobrancelhas a todo momento, eu percebia que lembravam dos gatinhos. E eu, eu não conseguia pensar em mais nada. As crianças, não sei. Acho que não ficaram sequer muito impressionadas.
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No dia seguinte, acordei com o mesmo som, agora perfeitamente identificável. Gatinhos. Por trás da algazarra dos sabiás, miados fininhos e indefesos. Pulei da cama e abri a janela, decidida a surpreender o torturador de gatos.
Eram sabiás.
Sabiás grandes, de cerca de um palmo e meio, traziam nos bicos os gatinhos e os soltavam do alto, sobre o nosso jardim. Desta vez eram quatro filhotes. Estariam fazendo isso no bairro todo, na cidade toda, ou seria só na nossa casa?
Não procurei saber.
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Agora temos gatos. Muitos gatos. Alguns gordos, grandes e fortes, outros esguios, suaves e matreiros. Quando algum deles traz na boca um pássaro qualquer, não me importo. Deixo que brinque à vontade, que exercite seu instinto de caçador.
Vejo que alguns donos de gatos tentam ensinar os bichanos a não matar passarinhos. Ora, gatos são predadores mesmo. Não devemos interferir na natureza. E, além disso, eu sei: gatos matam passarinhos em legítima defesa.