Fernando Pessoa.

Heterônimos
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Lisboa: Horizonte, 1993, p.17

                    O que conhecemos de Pessoa são peças soltas de longo romance-drama-em-gente
(adaptando a conhecida expressão de «drama em gente» com que definiu a sua obra) que
ele foi escrevendo para viver e vivendo para escrever. É preciso nunca esquecer que
Pessoa nunca encontrou esse «caminho para a vida, que é a vida», de que fala Campos.
Consciente embora, sempre pela voz de Campos, de que «é preciso continuar a viver»,
viveu intensamente, multiplicadamente mas por interpostas pessoas. Através delas até teve
a vida comum das criaturas que realmente existem: afrontou corpo a corpo o acontecer,
como Álvaro de Campos, teve «o corpo deitado na realidade», como Alberto Caeiro e, além
de uma filosofia privativa, um estatuto social de «doutor», como Ricardo Reis (foi médico e
até «professor de humanidades num importante colégio americano»). Isto para só falar
desses «outros» a que concedeu a carta de alforria de heterônimos. De fato, em muitas
sombras se desdobrou, a que deu nome e vida e obra, mas só a estes três - por razões que
ele lá tinha e até enunciou - concedeu a total libertação de «voar outro» (expressão que
Pessoa usou para definir o seu desgarrar-se em heterônimos). Aos outros concedeu apenas
o estatuto de «personalidades literárias», segundo a sua própria designação. Dir-se-ia que
estas últimas (algumas perpassam por este volume: Charles Robert Anon, Alexander
Search, Thomas Crosse, Bernardo Soares...) são sombras que o projetam para fora de si
mas que não adquirem golpe de asa próprio para «voar outro». Multiplicam-no apenas na
horizontal, apenas como um leque que se abre.

Inconsciência
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 106-107

                    Pessoa e os heterônimos são unânimes em exprimir a nostalgia do estado de
inconsciência. [...] Até Caeiro, quando não se pinta como queria ser, lamenta desdobrar-se
no eu que sabe:

                    «Os meus pensamentos são contentes. / Só tenho pena de saber que eles são contentes / Porque, se o não soubesse, / Em vez de serem contentes e tristes / Seriam alegres e
contentes.»

                    E parece invejar a completa insciência das árvores. «Mas que melhor metafísica que a
delas, / Que é a de não saber para que vivem / Nem saber que o não sabem?»

                    Campos, apesar do seu vitalismo postiço, traz consigo "o espinho essencial de ser
consciente". Também nele os sentimentos pensam, e por isso admoesta o coração: «Pára,
meu coração! / Não penses, deixa o pensar na cabeça!» E tão farto está de analisar, de
esmiuçar, de ver «as subtilezas, o interstício, o entre» de fazer «metafísica das sensações»,
que desejaria ser folha de árvore titilada pela brisa ou poeira duma estrada [...].

Influências
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 139-140.

                    Os dois poetas portugueses que, por razões opostas, tiveram mais influência no jovem
Pessoa foram Teixeira de Pascoaes e Cesário Verde. Teixeira de Pascoaes (1877-1952) é
ainda um jovem nesse momento, mas já publicou várias obras importantes. Nos anos
seguintes, vai fundar o «saudosismo», incarnar melhor que ninguém o espírito da
«Renascença Portuguesa» e tornar-se o teórico da «arte portuguesa». É na sua revista «A
Águia» que Pessoa se vai iniciar. Será um dos seus admiradores mais fervorosos, ao ponto
de pretender, num texto de 1912 «Sobre a Literatura Portuguesa Moderna» (redigido em
inglês) que Teixeira de Pascoaes é «o maior poeta lírico europeu de hoje». Muito mais tarde,
há-de negar essa paixão da juventude, e executar o seu antigo ídolo com uma palavra feroz.
Depois de dizer que «Junqueiro morreu», acrescenta: «e Pascoaes está moribundo». A
verdade é que o glorioso poeta, mais velho do que ele, irá sobreviver-lhe mais de quinze
anos, mas, a seus olhos, ele já desaparecera há muito tempo.

                    Passa-se exatamente o contrário com Cesário Verde (1855-1886), totalmente ignorado em vida, que exprime no seu poema O Sentimento de um Ocidental uma forma de «saudade» intimista radicalmente diferente da saudade mais conspícua de Pascoaes. A arte de Cesário é objetiva, tanto que por vezes a integram na estética parnasiana; mas exprime a emoção,
ora alegre, ora dolorosa, que lhe dá o espetáculo da realidade urbana ou campestre, o que
faz da seqüência dos seus poemas uma espécie de diário de um homem das ruas de Lisboa, um pouco como há-de ser, em prosa, o Livro do Desassossego de Bernardo Soares.
                    A inspiração bucólica de Caeiro e a citadina de Campos devem muito ao seu exemplo. A admiração de Pessoa por Cesário talvez não tenha sido imediata, mas foi profunda e
duradoura. É a de um irmão pequeno pelo seu irmão mais velho, de quem se sente muito
próximo.

Iniciação
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 499-500.

                    Pôs-se a questão de saber se Pessoa terá sido ou não também um iniciado, um «adepto». É difícil imaginá-lo a submeter-se a provas semelhantes àquelas que descreve o biógrafo de Crowley, ou a participar em sessões como as que relata. Ele confirma-o no fim da sua carta
de 13 de Janeiro de 1935 a Casais Monteiro: «Não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma».
Contudo, na nota biográfica que redige em Março de 1935, declara-se «iniciado, por
comunicação direta de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente
extinta) Ordem Templária de Portugal». Só há uma única explicação possível para esta
contradição, e é a adotada por Crespo: «a auto-iniciação» de Pessoa, graças ao estudo dos
escritos esotéricos de toda a espécie, e, acima de tudo, à prática da poesia. Sem que a
palavra seja pronunciada, o Essay on Iniciation é, implicitamente, um manual de
auto-iniciação: e vários outros fragmentos esparsos confirmam esta possibilidade de uma
iniciação do terceiro tipo: ao lado da iniciação «exotérica» (como a «maçônica») e da
iniciação «esotérica» (a «dos Rosa-Cruz»), existe uma iniciação «divina», na qual o neófito é
instruído por contacto direto com o Espírito transcendente, sem a meditação de um Mestre
carnal nem de uma instituição real: «Iniciado Divino é, por exemplo, um Shakespeare. A este
tipo de iniciação vulgarmente se chama gênio.»

Introspecção

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 83-84.

O jovem Pessoa aplica à introspecção o método policial que tanto admira em Poe e Conan
Doyle. Ele persegue a verdade do seu ser como se de outro se tratasse; incluindo essa
própria tendência policial. «I am sorry to say that I feel in myself the indication that if I had
been born in Spain some [...] centuries ago, I might have made a very good inquisitor.»
Pratica uma espécie de auto-análise selvagem, que nada deve a Freud: ainda não o leu, e
nunca será adepto da psicanálise. Esta necessidade incessante de conhecimento e de
avaliação de si é já, e ele tem consciência disso, um sintoma de neurose. Jennings
encontrou um texto particularmente explícito, Histoire d'une âme, escrito em francês após o
seu regresso a Lisboa, em que o jovem, falando de si na terceira pessoa, apresenta o
quadro clínico do seu próprio caso. «C'est (sans aucun doute) un neurasthénique vésanique.
La neurasthénie vulgaire [...] a, pour ainsi dire, bouleversé une organisation mentale
charactéristiquement hystériforme [sic] [...]Ce que je voudrais faire, c'est l'histoire
nosologique de Pessoa [...]. À sept ans Pessoa montre déjà ce caractère résérvé,
non-infantile, une pondération (non la pondération du bon sens tout à fait bourgeois, mais la
pondération mélancolique et intelectuelle, une sériosité) qui étonnent. C'est un solitaire, on
le voit bien. Et à tout cela il faut joindre beaucoup de rage impulsive et presque haineuse [...]
et beaucoup de peur. On peut résumer le caractère: précocité intellectuelle, imagination
prématurément intense, méchanceté, peur, besoin d'isolement. C'est un névropathe en
miniature.» Depois, traçando a evolução desse carácter, observa que com o regresso
provisório de 1901 a Lisboa se tornou «moins impulsif: le climat et la discipline scolaire
l'auraient inhibé».

O «medo», de que fala muitas vezes, não é apenas a timidez (etimologicamente: cobardia)
própria da adolescência: Não há dúvida que, como muitos jovens, se acha feio e
ridículo.«My short sight [..] aided my unbalanced brain. My imagination misinterpreted the
character of their glances [...]. The people in the street laughed: it was at me...» Este medo,
que é o de um ser «forte», é «abstracto», mais metafísico que psicológico. O jovem Pessoa
parece ter vivido na inteligência e na carne, a partir dessa época, a experiência definida
pela fórmula hegeliana famosa que certamente ainda não conhece: cada consciência vem no
seguimento da morte da anterior.

Ironia

Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa,
1990, p. 55.

Pessoa tem sido entendido de muitas e desvairadas maneiras. Mesmo um dos seus
íntimos, João Gaspar Simões, viu nele um blagueur, e, desde esse longínquo dia em que ele
se fez substituir pelo Álvaro de Campos para o receber a ele e a José Régio, no café
Montanha, nunca mais lhe perdoou nem o tomou a sério. Outros, no pólo oposto,
apresentam-no como um iluminado, profeta louco e bruxo recôndito, falando alto através dos
subterrâneos das suas crenças e práticas ocultas, destituído dessa capacidade de ironia
que ele considerava a marca dos seres civilizados. De facto, num texto publicado em 1928,
no Notícias Ilustrado, sobre «O provincianismo português», Pessoa falava precisamente do
exercício da ironia como tratamento para o «sindroma provinciano» e dizia que isso
implicava «um domínio absoluto da expressão, produto de cultura intensa; e aquilo a que os
ingleses chamam detachment - o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois,
produto daquele desenvolvimento da largueza de consciência em que, segundo o
historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização.» Esse detachment outro não
é, afinal, que a arte do fingidor: o da «sinceridade traduzida», como também diz.

Liberdade

Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa,
1990, p. 245.

O conceito de liberdade de Reis tem que ver com esse cortar dos laços que ligam o homem
ao que deseja ou detesta ou teme. É por isso que designa Caeiro como «cirurgião»: o que
ele faz, à sua maneira, é cortar as grilhetas que fazem os homens «escravos cardíacos das
estrelas» (na expressão de Campos). Num dos poemas da série do «Pastor Amoroso»,
Caeiro escreve que, quando se auto-operou, por assim dizer, da paixão que durante algum
tempo fizera dele uma pessoa diferente, «sentiu que o ar lhe abria, mas com dor, uma
liberdade no peito».

Antes de se ter manifestado como médico latinista, já Pessoa o tinha concebido em si como
a parte masculina, por assim dizer, da sua alma andrógina, ditando regras de vida a essa
sua sensibilidade que qualifica de feminina e tantos sofrimentos lhe causa. As «regras de
vida» que, desde cedo, começou a espalhar pelos seus cadernos são as primeiras
manifestações de Reis: algumas delas vamos encontrá-las transpostas em verso. Por
exemplo: «Be complete in everything» escreve, muito antes do parto dos Heterónimos, numa
primeira redacção evidente do verso «Sê todo em cada coisa».

Lirismo

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 144-145

A poesia de Campos reflecte imediatamente as condições da existência empírica, surge
penetrada de todas as actividades humanas, espelha deliberadamente a dinâmica, o
fragmentarismo, o spleen, o tumulto, os contrastes violentos da civilização moderna.

Pelo contrário, o lirismo ortónimo rejeita quanto possível a circunstância, os sinais de uma
época, as impressões fugazes de quando de vive na dependência do exterior; eleva-nos a
uma atmosfera mais rarefeita, mais transparente, isola o que nós chamamos a partir do
Simbolismo o poético puro. As imagens vêm aqui libertas do lastro da realidade concreta,
reduzidas a símbolos intemporais: são a noite, as trevas, o rio, o lago, o mar, o vento ou a
brisa, a fonte, as rosas, o azul; mais raramente imagens-símbolos dum matiz moderno como
o andaime, o cais.

Livro do Desassossego

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, p. 513.

Não tendo sido composto nem acabado, o Livro do Desassossego é, para todo o sempre,
um «work in progress». Há todo um mundo entre os nobres devaneios de Na Floresta do
Alheamento e a aspereza de certas análises ulteriores que desmistificam os preconceitos e
as ilusões. Começado como uma recolha de ensaios e de textos poéticos em prosa
assinados pelo próprio Pessoa, o Livro torna-se em seguida um jornal íntimo inicialmente
atribuído a Vicente Guedes, e depois, bastante cedo, a um outro semi-heterónimo, Bernardo
Soares, «ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa» (é assim que ele é apresentado
nas revistas em 1929-1932), que para nós fica a ser o seu «autor» definitivo. Mas, também
muito cedo, esse diário entrecortado de ensaios adquire um carácter romanesco, na medida
em que o narrador, suposto autor, o é por uma ficção análoga à de todos os romances de
análise redigidos na primeira pessoa, frequentes na tradição francesa. Por fim, o
romance-diário tem também uma dimensão «dramática», visto que Soares, como Caeiro,
Reis, Campos e os diversos poetas ortónimos (lírico, ocultista, inglês), é um dos
personagens deste «Teatro do Ser» que é o conjunto da Obra.

Louco

Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. Lisboa: Livros Horizonte, 1993, p. 34.

A imagem do louco genial tem-se instalado no espírito não só do grande público mas até dos
exegetas. Não é meu intuito - não estaria para isso habilitada nem isto me parece, aliás, o
problema fulcral - estudar o caso «patológico» ou não, de Fernando Pessoa. O que importa,
parece-me, é contrariar essa perspectiva instalada de um ser que produziu caoticamente, ao
sabor das vozes e dos impulsos da sua loucura ou das vozes por que se sentia habitado,
uma obra fragmentária, sem unidade possível.

Ao contrário do que alguns exegetas pretendem, tomando ao pé da letra afirmações que
Pessoa faz - sobretudo pela voz dos seus outros, de Soares, em particular - o poeta não é
apenas esse grande vazio, a mesinha de pé de galo de que as vozes que hospeda em si se
servem para se exprimir. «Coração de ninguém» será, na medida em que um coração palpita
e assegura, enquanto funciona, a vida do ser que comanda. A aparente disparidade dos
fragmentos que constituem a obra pessoana tem a irrigá-la esse «coração», «de ninguém»,
embora, mas único, de todos, e a organizá-la a unidade de um só sistema circulatório.

Lucidez

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 86-87

Só por um fugaz optimismo o poeta admite que nos é possível entrever " o sentido / do que
aqui está a esgarar". Fernando Pessoa, como ele diz em nome de Campos, está doido a frio:
conserva uma lucidez implacável até nos momentos em que no seu espírito parece haver
centelhas dum lume desconhecido; chama impiedosamente embriaguez ou sonho às
experiências em que a parte irracional do seu ser julga vislumbrar o oculto. Daí o drama da
sua vida de pensamento, que foi a vida autêntica desse homem sem biografia. [...]
Compreendemos agora o sentido das palavras de Campos, ao dizer que o seu mestre
Caeiro lhe ensinou "a clareza da vista" mas não lhe ensinou, porque não podia, "a ter a
alma com que a ver clara". Caeiro representa em Fernando Pessoa a "pavorosa ciência de
ver", a exigência de positividade a que Pessoa obedece. Mas, enquanto, por um esforço
sobre-humano, Caeiro postula que tudo neste mundo é objectivo, Pessoa, continuando a
aceitar a realidade, acredita que tudo neste mundo é subjectivo. Fica assim confinado aos
sonhos, à ilusão, à mentira da subjectividade, pois não confere (Caeiro não lho permite)
valor objectivo ao conteúdo das suas intuições.

Missão

Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa,
1990, pp. 57-58.

Essa íntima convicção de que tinha contas a prestar à humanidade, em geral, ao país a que
escolheu pertencer, em particular, e, em última instância, «a si-próprio futuro» - é uma
constante dessa obra que lhe fez de vida. Outra constante é essa sua forma de se exprimir
como poeta dramático. Também ao longo da sua existência nunca desmentiu o que de si
escreveu na carta a Côrtes-Rodrigues de 19/1/1915: que era «fundamentalmente um espírito
religioso». E por isso - explica nessa longa carta - se tinha desinteressado de toda a atitude
literária que fosse pura blague, como o lançamento do Manifesto interseccionista, fruto de
um «plebeísmo artístico insuportável de querer épater». Afirma: «Devo à missão que me
sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.»

Essa «missão» tinha que ver com as suas responsabilidades como cidadão do mundo -
«dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim
criador-de-civilização de toda a obra artística» - e como cidadão português: «porque a ideia
patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e
não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através
do que eu consiga realizar.» E é muito significativo que «a obra Caeiro-Reis-Campos»
(escreve) lhe apareça como dentro deste espírito, e não do outro, grosseiro, de blague, que
confessa tê-lo animado noutras circunstâncias. Acrescenta, a propósito dessa «obra»
múltipla: «Isso é tudo uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida, e
que constitui uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas
dos outros.» E acrescenta, mais adiante: ««Em qualquer destes pus um profundo conceito da
vida, divino em todos os três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de
existir.»

O génio é sentido como missão mas também como «maldição», num texto inédito, ainda em
fase de rascunho, que parece ser uma evocação de Mário de Sá-Carneiro: «Tu regressaste
ao Deus que te mandou/Sofrer a vida», escreve. E acrescenta, adiante: «... os deuses, em
sua ira criadora/Lançam o génio como maldição» É um texto que começa em prosa e ganha
asas em verso. Em prosa ainda, escreve: «O homem de génio tem emoções e desejos de
deus, com corpo e alma de homem - daí a sua angústia eterna.»

Noutro texto (inédito, creio) em que parece meditar sobre a sua própria condição, escreve:
«Uns nascem grandes, outros alcançam a grandeza e outros têem que ser grandes à força».

Modernismo

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, p. 252.

Campos apresenta-se logo de início como o vate da era industrial, da violência da vida e do
expressionismo mais concreto. Virando as costas à antiguidade de que Reis é o grande
apaixonado, ele pretende ser resolutamente moderno. À beleza apolínea ele opõe a beleza
dionisíaca, a que os surrealistas em breve chamarão «convulsiva». À suspensão do
julgamento e à recusa de qualquer compromisso com o real, ele prefere o compromisso total
no espaço e no tempo; ele quer «viver ao extremo», conhecer «o estado supremo da
vertigem», e, acima de tudo - será essa a sua divisa -, «sentir tudo de todas as maneiras».
Mas esta embriaguez de viver é ambígua: a luz é «dolorosa», ele «range os dentes»; viver é
uma doença que arranca o ser a esta morte que é a existência quotidiana.

Morte

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, p. 569.

O que acontece a seguir passou a fazer parte da lenda. A 29, pede papel e lápis. Escreve,
num inglês pouco habitual: «I know not what tomorrow will bring». Esta folha de papel foi
conservada, e podemos ver a inscrição reproduzida na Fotobiografia. No dia 30 à tarde,
como acontece muitas vezes, há uma recuperação. O doente sente-se melhor. Mas logo o
seu estado se agrava de novo. Pelas oito horas da noite, sente a impressão de que um véu
lhe desceu sobre os olhos; segundo Gaspar Simões, terá pedido à enfermeira, ou a um
amigo presente: «Dá-me os óculos». Se de facto as pronunciou, estas são as suas últimas
palavras; e, tal como para as suas últimas palavras escritas, podemos dar-lhes uma
interpretação simbólica e glosá-las indefinidamente. A sua última frase escrita, «Não sei o
que amanhã trará», deixa sem resposta a questão de se saber se é a visão Caeiro, que
postula o nada, ou a visão Rosa-Cruz, aberta a uma vida nova, que o acontecimento agora
tão próximo vai certificar. As últimas palavras e o último gesto que elas pressupõem, a mão
estendida para os óculos, para ver bem, lembram-nos Goethe: «mehr Licht», «mais luz!».
Momentos depois, isto é, pelas vinte e trinta, morre, enfim, rodeado pelos médicos Jaime
Neves e Alberto Carvalho e por uma enfermeira. Tão cedo: tem quarenta e sete anos.

Nostalgia

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 41

O Pessoa ortónimo diverge muito de Caeiro e Reis porque não expõe uma filosofia prática,
não inculca uma norma de comportamento; nele há quase apenas a expressão musical e
subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma, de estados quase inefáveis em que se
vislumbra por instantes "uma coisa linda", nostalgias dum bem perdido que não se sabe
qual foi, oscilações quase imperceptíveis duma inteligência extremamente sensível, e até
vivências tão que não vêm «à flor das frases e dos dias» mas se insinuam pela eufonia dos
versos, pelas reticências de uma linguagem finíssima.

Obra dramática

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 183-4

A partir de 1914, ano do nascimento dos heterónimos, Pessoa passou a classificar-se de
autor de tipo dramático e a apontar, para esclarecer, o exemplo de Shakespeare: «Isso (a
obra dos heterónimos) - escrevia em 19.1.1915 - é sentido na pessoa de outro; é escrito
dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz
o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele. [...] Não é Shakespeare, talvez, o
maior poeta de todos os tempos, pois não me parece possível antepôr alguém a Homero;
mas é o maior 'expressor' que houve no mundo, o mais insincero de quantos poetas tem
havido, sendo por isso mesmo que exprimia com igual relevo todos os modos de ser e de
sentir, e com igual alma vivia os diversos tipos psíquicos - verdades gerais 'humanas'- em
cuja expressão se empenhou.

Ophélia

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 477-478.

No estudo que se segue à sua edição de 1978 das Cartas de Amor, David Mourão-Ferreira
atribui a responsabilidade do fracasso desta aventura amorosa à presença e à intervenção
constantes de Álvaro de Campos. Chega ao ponto de sugerir que o par Ofélia-Fernando era
na realidade uma relação a três. Esta situação é muito mais perceptível na ligação de
1929-1930. A tragédia, para Ofélia, é que tem de lidar com uma personalidade dupla, da qual
ama a face clara, identificada com o próprio Pessoa, e teme e detesta a face obscura,
identificada com Campos. E, para Pessoa, a tragédia consiste em estar dilacerado entre um
desejo desincarnado, platónico ou angélico, como o do Alexander Search da sua juventude
(«We would have no sex, would feel no love»), e um desejo sado-masoquista-pedófilo
(Ofélia, com quase trinta anos, pequena e miudinha, tem ainda um lado «menineiro»),
semelhante ao do pirata da Ode Marítima («o apetite quasi do paladar, do saque / Da chacina
inútil de mulheres e de crianças»). A tragédia - e aqui reside sem dúvida o fundo das coisas -
é que Campos, ainda há pouco um satélite da consciência de Pessoa, parece ser o centro
dessa consciência, como se o ortónimo se tivesse tornado num heterónimo do seu
heterónimo.

Outro

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 97-98

O poeta estranha-se a si próprio: «Meu ser / tornou-se-me estranho». O pretenso eu
afigura-se-lhe multíplice, fragmentário, infinidade de estados psíquicos, «simples colecção
de momentos», na expressão de Proust. Daí a sensação, não de viver, mas de sofrer
passivamente a vida, como

«Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim.»

Na poesia ortónima, Pessoa chega a pensar que não passa de ponto de convergência de
vários tempos-seres, de tal modo se sente vivido pelo tempo: «Um dilatado e múrmuro
momento / De tempos-seres de quem sou o viver?». E Soares julga-se o palco de sonhos
independentes dele, cousificados, que lhe surgem de fora «como o eléctrico que dá a volta
na curva extrema da rua...»

Quando tentamos reconstituir por dentro o passado, topamos dolorosamente com o vazio. O
nosso "alguém" é "diverso e sucessivo". Campos fala do outro, daquele que foi vinte anos
atrás, como dum desconhecido; diverte-se a imaginar as duas figuras só por ironia com o
mesmo nome - o Campos antigo e o moderno -, cruzando-se na rua e olhando-se com
indiferença.

Paganismo

Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando
Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. XXII-XXIII

No concernente a determinados temas, Fernando Pessoa dá-nos tão fortes argumentos para
demonstrar uma tese como para defender a tese contrária. O seu pensamento é
ironicamente ambíguo.

Uma das constantes definidoras desse pensamento é o anticristianismo (ou, como prefere
dizer o poeta, «anticristismo»). Alguns fragmentos insertos no presente volume
elucidam-nos sobre o propósito de constituir com os heterónimos e Fernando Pessoa
ortónimo uma escola pagã. Mais: o propósito de, através de escritos ortónimos e
heterónimos, em prosa e verso, restaurar o paganismo autêntico. Todavia ainda aqui
observamos uma cisão: a escola pagã inventada por Fernando Pessoa compreende
individualidades com posições mentais diversas, em que se matiza o paganismo ou o
«anticristismo».

Abrange, com efeito, dois ramos: um deles, o ortodoxo, representado por Alberto Caeiro e o
doutrinário António Mora, considerando o cristianismo «produto da decadência romana»,
«mera heresia pagã», propõe-se a reconstrução total do paganismo; o outro, a que pertence
Fernando Pessoa «ele próprio», aceita como inextirpável a sensibilidade moderna, em que
vê o resultado mórbido da religião cristã; «assim, em vez de aspirar a, ou julgar mesmo
possível, uma reimplantação do paganismo, julga que o paganismo serve apenas para base
eterna da nossa civilização, devendo porém servir de disciplina às emoções criadas pelo
cristismo». (As perguntas, à margem dos fragmentos, fervilham. Quais as fontes do
anticristianismo de Pessoa? Quais as fontes do seu conhecimento e concepção do
paganismo ? Em que medida os poetas heterónimos obedecem a um programa inicial, por
vago que fosse? Ou até que ponto o plano da «escola pagã» na poesia e no pensamento
nacionais se conforma já, lucidamente, à realidade inelutável, insofismável, dos poetas
heterónimos aparecidos no palco interior de Pessoa?)

Personalidade

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 117-118.

Os vinte anos de Pessoa não são a sua melhor idade, e ele não se orgulha deles. Uma,
parte dele tem muito mais que vinte anos; outra muito menos. Toda a vida terá de conduzir
esta parelha desigual, de uma inteligência tão madura como se fosse já o velho que não.
chegará a ser, e de um carácter por amadurecer, que nunca evoluirá. Alguns anos depois
dirá: «Atravessei a vida como fantasma da minha própria vida, [...] gémeo da negação de
mim mesmo.» Há nele desde sempre qualquer coisa de desfasado. Simplesmente, só
começa a ter cada vez mais consciência disso à medida que avança na idade adulta. Daí as
suas eternas queixas: «Nenhuma alma é mais amorável ou mais meiga do que a minha,
nenhuma alma tão cheia de bondade, de compaixão, de todas as coisas da ternura e do
amor. No entanto nenhuma alma está tão solitária como a minha - não solitária, note-se, por
razões exteriores, mas por circunstâncias interiores. Quero dizer o seguinte: ao lado da
minha grande ternura e bondade entrou no meu carácter um elemento do género
inteiramente oposto, um elemento de tristeza, de egocentrismo, de egoísmo portanto, cujo
efeito é duplo: o de deturpar e prejudicar o desenvolvimento e o pleno jogo interno daquelas
outras qualidades, e o de prejudicar, afectando depressivamente a vontade, o seu pleno
jogo externo a sua manifestação. Hei-de assinalar tudo isto um dia hei-de exprimir melhor,
discriminar os elementos do meu carácter, já que a minha curiosidade por todas as coisas,
ligada à minha curiosidade por mim próprio, conduz à tentativa de entender a minha
personalidade». Eis como  Pessoa, aos vinte anos, em vez de se lançar na direcção dos
outros, se esconde e se enovela no labirinto do seu ser.

Pré-Heterónimos

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 73-74.

O processo de dissociação iniciado na infância, e depois durante as férias em Lisboa e nos
Açores, continua então, e torna-se mais complexo. É em 1903-1904 que aparecem novas
«personalidades literárias», melhor caracterizadas do que as precedentes. Estes escritores,
para dizer a verdade, têm no seu activo mais projectos do que realizações: será, até ao fim,
um dos traços mais marcantes da personalidade de Pessoa, talvez a sua maior fraqueza:
um jorrar incessante de ideias novas, sem que nenhuma delas tenha o tempo necessário
para pousar no espaço limitado de um livro. Mas, enfim, de alguns destes precursores
juvenis dos futuros heterónimos, ficaram vestígios suficientes para se ter uma ideia precisa
das promessas que não mantiveram completamente.

Nem sempre é fácil identificá-los. De vez em quando muda-lhes o nome, ou então hesita
entre dois deles para a atribuição de um poema ou de um texto em prosa. Contudo, sem
demasiado risco de erro, podem identificar-se seis ou sete «personalidades literárias» que
partilham com Pessoa «ele mesmo» o espaço da sua consciência criadora nesses anos
cruciais. Pode-se deixar de lado James Faber, autor virtual de romances policiais (os únicos
que interessam a Pessoa) e teórico da «literatura de mistério» inaugurada por Edgar Poe, e
na altura ilustrada sobretudo por Conan Doyle. Charles James Search, especialista dos
problemas de tradução que sempre preocuparam Pessoa, é apenas a sombra do irmão,
Alexander Search, o mais fecundo e original de todos, o mais próximo de Pessoa, de quem é
o duplo absoluto, nascido ficticiamente no mesmo dia que ele, 13 de Junho de 1888. Vamos
reencontrá-lo depois de 1905 em Lisboa, para onde o seu demiurgo o levará consigo. É
ainda o caso de Charles Robert Anon (abreviatura de «Anónimo»), que vimos entrar em
polémica no jornal de Durban com o professor Haggard. Este é o mais cínico e o mais
violento de toda a «coterie»: um energúmeno, que contrasta com o rapaz bem-educado que é
o jovem Pessoa. Mas os seus textos mais significativos são posteriores ao regresso a
Lisboa. Talvez ele prefigure Campos. A estes quatro pré-heterónimos ingleses, é preciso
acrescentar Jean Seul, o primeiro, desde o Chevalier de Pas, a escrever em francês.
Também este reencontraremos em Lisboa depois de 1905.

Precocidade

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 37-38.

Fernando, de uma precocidade excepcional, já com oito meses, segundo dizem, se
interessava pelas letras do alfabeto. Tendo a mãe como única professora, sabia escrever
com quatro anos. É deste período que data, ao que parece, o primeiro fenómeno de
desdobramento da consciência que será o fulcro da sua obra. Este produz-se em duas
etapas: o excesso de consciência de si mesmo e, depois, a dispersão do ego. Um poema de
1927 evoca a surpresa do rapazinho que, ao brincar com um brinquedo qualquer, descobre
de repente que eu é Outro:

«Sentiu-se brincando

E disse, eu sou dois!

Há um a brincar

E há outro a saber,

Um vê-me a brincar

E o outro vê-me a ver...»

A outra etapa, um pouco mais tarde, com seis anos, é o aparecimento nele de outra
personalidade diferente da sua, ou seja, do precursor dos «heterónimos», o Chevalier de
Pas. «Escrevia cartas dele a mim mesmo», diria quarenta anos mais tarde com nostalgia.
Este «herói dos seus seis anos» é francês, o que leva a supor que em criança já escrevia e
falava bem a nossa língua, que lhe fora ensinada pela mãe. Este nome de «Pas» não é,
aqui, o substantivo que designa o andar, e sim o advérbio de negação. Um niilismo destes
tem qualquer coisa de assustador nesta idade.

Realidade

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. ...

Caeiro representa em Fernando Pessoa a "pavorosa ciência de ver", a exigência de
positividade a que Pessoa obedece. Mas, enquanto, por um esforço sobre-humano, Caeiro
postula que tudo neste mundo é objectivo, Pessoa, continuando a aceitar a realidade,
acredita que tudo neste mundo é subjectivo. O nosso pensamento nasceu cego, embora
saiba o que é ver. Decifra as formas pelo tacto, conjecturando-as como qualquer coisa cujo
ser verdadeiro o mero apalpar envolve numa penumbra de erro. assim não pode ver as
coisas mas apenas ter uma ideia mentirosa das coisas. (soneto 21) [...]

...estamos enclausurados, repartidos entre a aparência falsa acessível e a realidade
inacessível. Daí... dor de viver (soneto 2)

...os fenómenos não passam dum grosseiro biombo (1)

Também Reis sofra com a vacuidade das coisas, o "decurso falso" dos dias, a "vastidão vã"
do céu. Mas consola-se melhor ou pior com a filosofia de Caeiro: (1)

Fernando Pessoa, porém [...] se afirmou que a ciência, o sonho são inúteis, e o melhor é
cingir a nós "a aparência absoluta da vida", vivê-la por fora, a verdade é que no íntimo não
consegue escorraçar a inquietação, não confia na realidade fenomenológica [...]

Religião

Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa,
1990, p. 62.

O facto de Pessoa definir uma coisa - religião ou outra - como ficção não quer dizer que a
considere falsa: «fingir é conhecer-se» afirmou pela boca de Campos num texto publicado
em vida que é a chave de toda a sua arte, de toda a sua ciência, de toda a sua filosofia ó
esses três sucedâneos a que recorreu quando, jovem revoltado, quis matar Deus e a Igreja
Católica. Em sua substituição criou aquilo que chamou uma «religião individual» para que
vai inventar rituais, um Profeta, um Mestre («o deus que faltava») com seus Discípulos e
Evangelistas, como veremos.

As religiões tout-court aparecem-lhe como manifestações primárias da criatura humana,
inferiores, portanto, porque o colectivo que representam «não analisa as ideias de que parte,
mas as acceita», (como diz num texto inédito). «A metafísica começa com o espírito crítico»
(afirma nesse mesmo texto). Mas acrescenta: «É fácil a metafísica passar para atitude
religiosa. Muitas metafísicas não passam de religiões individuais.»

Rosa-Cruz

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 498-499.

Durante anos, o poeta estudou os sistemas de iniciação das diferentes ordens existentes
então ou no passado. Leu numerosas obras, tirou centenas de páginas de notas e redigiu
em rascunho dezenas de fragmentos destinados aos seus quatro grandes tratados.
Interessou-se particularmente por quatro ordens, que historicamente têm ligações entre si,
tendo contudo cada uma a sua tradição própria: a Ordem do Templo; a Ordem de Cristo, que
foi a sua herdeira em Portugal; a Fraternidade Rosa-Cruz; a Franco-Maçonaria. Foi, como
vimos, pela Rosa-Cruz que começou o estudo do pensamento ocultista, quando, muito
jovem ainda, leu um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz, cujo herói é
um adolescente inspirado, Johan Valentin Andrea, que, no século XVII, escreveu As Núpcias
Químicas de Christian Rosencreutz, livro fundador da doutrina. É dessa tradição que ele se
vai sentir intelectualmente mais próximo, até ao fim. Mas interessou-se também
apaixonadamente pela história dos Templários.

Search

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, p. 105.

A obra de Alexander Search, que só agora começamos a descobrir, é o elo que faltava nesta
evolução que leva do poeta clássico e romântico ao «modernista», da efusão sentimental ao
lirismo crítico, da busca ansiosa do ego à despersonalização sistemática, da fé cristã
perdida ao «paganismo» reencontrado. Ao lermos estes textos em verso e em prosa, todos
evidentemente escritos em inglês, apercebemo-nos de que Pessoa, dos quinze aos vinte
anos, situou na consciência semifictícia de Search e na sua obra, bem real, a experiência
espiritual tempestuosa vivida nessa «curva da estrada» da sua vida de homem, essa luta
com o Anjo cujo duplo (Alexander Search) sai por fim vencido, para que ele mesmo, Pessoa,
possa tirar a sua satisfação e transpor um limiar, passar a uma outra etapa da sua iniciação
poética. Search é a crisálida de Caeiro, de Reis e de Campos. Desta temporada no inferno,
Pessoa surgirá, alguns anos depois, num estado de disponibilidade total que lhe permitirá
acreditar, pelo menos provisoriamente, que obteve a salvação.

Sentido

Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando
Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. ...

Só por um fugaz optimismo o poeta admite que nos é possível entrever " o sentido / do que
aqui está a esgarar".

Compreendemos agora o sentido das palavras de Campos, ao dizer que o seu mestre
Caeiro lhe ensinou "a clareza da vista" mas não lhe ensinou, porque não podia, "a ter a
alma com que a ver clara".

Campos: está doido a frio: conserva uma lucidez implacável até nos momentos em que no
seu espírito parece haver centelhas dum lume desconhecido; chama impiedosamente
embriaguez ou sonho às experiências em que a parte irracional do seu ser julga vislumbrar
o oculto. Daí o drama da sua vida de pensamento, que foi a vida autêntica desse homem
sem biografia.

Sinceridade

Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando
Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. XXII-XXIII

Entretanto, à medida que examinamos os inéditos, velhas perguntas se reavivam e novos
problemas nos assaltam. Qual o grau de convicção dos textos doutrinários e críticos de
Pessoa? O problema da sinceridade não será comum à prosa e à poesia? Uma visão
parcial, a aceitação ingénua dum texto ou dum conjunto homogéneo de textos, é caminho
ilusório: só uma visão de conjunto habilita (se é que habilita) a uma resposta válida. O que
parece indiscutível é que também a prosa se nos oferece sob o signo da pluralidade, da
diversidade. No concernente a determinados temas, Fernando Pessoa dá-nos tão fortes
argumentos para demonstrar uma tese como para defender a tese contrária. O seu
pensamento é ironicamente ambíguo.

Sociologia

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 358-359.

Um dos seus postulados é que os fenómenos políticos são de natureza social. A única
ciência política possível é uma sociologia. Mas não existe sociologia moderna. «Tomando a
imagem da química, podemos dizer que a ciência chamada sociologia está ainda no seu
período alquímico. De forte e seguro, em matéria sociológica ou política, pouco temos [...] a
não ser a «Política» de Aristóteles, fruto de toda a experiência política da Grécia antiga, e «O
Príncipe», de Machiavelli, fruto de toda a experiência política da Renascença.» Assim,
Pessoa vai ter de inventar um tipo de investigação que não será nem fundamental nem
aplicada. «Não nos interessa - escusado será dizê-lo - senão aquela parte que é teoria [...], a
teoria preliminar da acção.» Baseia esse estudo no princípio dialéctico da resistência e do
movimento. Nas sociedades «progressivas», como são as sociedades europeias modernas,
«o que é fundamental se resume em duas forças - uma que tende a fazer progredir, outra
que tende a resistir ao progresso.» Ora, de uma maneira geral, «tudo quanto vive, vive em
virtude do equilíbrio de duas forças - uma força de integração e uma força de
desintegração.» Podem existir duas formas de desequilíbrio, dependendo de qual das duas
forças se impuser à outra. A predominância das forças conservadoras traz consigo a
«estagnação», a das forças progressivas provoca a anarquia. Mas as duas situações
acabam por convergir: nos dois casos, há decadência, «perda de coesão e de vitalidade» e
«desnacionalização» parcial.

Super-Homem

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 353-354.

Ao abrir o caminho, o poeta compromete-se com ele. Ao invocar o super-homem, ele passa a
sê-lo  também. A consciência que Pessoa tem da sua própria grandeza, ele, o
«Super-Camões», novo Shakespeare, reincarnação do «Encoberto» D. Sebastião, dá um tom
de sinceridade comovente a este Ultimatum, justificando os seus excessos. A voz estridente
de Campos, aquela voz que para Pessoa é uma maneira de se comprometer a fundo com a
sua própria palavra, nunca mais se fará ouvir desta maneira, nem em verso nem em prosa,
para nos chamar àquele excesso de humanidade que é o contrário do «humanismo» e do
«humanitarismo». Mas talvez a amálgama dos textos escritos depois de 1917, que
constituem a «obra» de Pessoa prosador, não seja mais que os «trocos» sensatos e
modestos dessa mensagem inicial divulgada em altos brados. Para ele, também o Homem,
tal como a nossa civilização judaico-cristã o fez, tem de ser ultrapassado. O Super-Homem
será transpessoal - «Síntese-Soma», múltiplo e universal: é o programa de vida e de
trabalho do poeta e do ensaísta, que se propõe pensar tudo «de todas as maneiras».

A conclusão deste Ultimatum lembra Nietzsche. Mas o Super-Homem de Campos é bem
diferente de Zaratustra. Pessoa acusa Nietzsche de ser um falso pagão, um falso grego, um
falso mediterrânico, um «Baco alemão», de ser, no fim de contas, um cristão que se ignora.
Reconhece-lhe contudo uma forma de grandeza, a de ter afirmado «que a alegria é mais
profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade». O que resta de
romantismo no desejo de poder nietzschiano não é senão uma forma perversa do desejo de
universalidade de Campos - e de Pessoa. Ser um denominador comum a todas as
sensibilidades e a todos os pensamentos é, para ele, para eles, o meio de ultrapassar a
natureza e a condição do homem.

Tédio

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 124

O tédio, «ce monstre délicat» que Baudelaire ensinou a cantar, é o reverso duma fome de
Absoluto que tudo contraria ironicamente. O desejo de viajar, correr mundo, renovar
constantemente sensações, corresponde à necessidade de inebriar a alma insatisfeita de
quem não encontra na vida motivo para viver. De facto, viajar, na imaginação do poeta, é
"ser outro constantemente", "viver de ver somente", não pertencer nem a mim. O
espectadorismo, o alhear-se de si, quadram à psicologia dum homem torturado pela
auto-análise e inepto para a acção. Mesmo assim é preciso dar os primeiros passos, fazer
as malas, subir a prancha... E tudo isso custa tanto! Qualquer coisa prega Fernando Pessoa
ao lugar onde está; não o ter aí raízes, porque em toda a parte é um desenraizado; mas o
medo de decidir-se, de comprometer-se, o apego ao que se tem, embora o que se tem seja
tão pouco [...].

Tempo

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973,
p. 94-96

[...] o tema do fluir do tempo, expresso normalmente pelo símbolo do rio, é comum a Caeiro,
Álvaro de Campos e Fernando Pessoa.

Caeiro sabe que as bolas de sabão são "claras, inúteis e passageiras como a natureza";
pede à ave que passa que o ensine a passar; contenta-se hedonisticamente com "sentir a
vida correr por ele como um rio por seu leito" e goza a constante mudança das coisas como
fonte de variedade que é: «a Natureza de ontem não é Natureza. / O que foi não é nada, e
lembrar é não ver».

Sem a calma olímpica do Mestre, Campos é nervoso e exclamativo: «Ó enigma visível do
tempo, o nada vivo em que estamos!» repisa as palavras para sugerir o peso dos instantes
que passam: «Parece que passam sem ver-me os instantes, / Mas passam sem que o seu
passo seja leve...». Dirige-se ao rio como companheiro de viagem: «Água do rio, correndo
suja e fria, / Eu passo como tu sem mais valer...». [...]

[...] Para Fernando Pessoa recordar não é reviver, é apenas verificar com dor que fomos
outra coisa cuja realidade essencial não é permitido recuperar. Vimos da sombra e vamos
para a sombra. Só o presente é nosso, mas o que é o presente senão a linha ideal que
separa o passado do futuro?

Teosofia

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal,
1996, pp. 314-315.

Numa carta de 6 de Dezembro de 1915 a Sá-Carneiro, que ficou por acabar - o que explica
ter sido encontrada - Pessoa explicava as circunstâncias que o tinham levado a
interessar-se pelo ocultismo. Um editor de Lisboa queria criar uma «colecção teosófica e
esotérica», composta no essencial por obras inglesas. Conhecendo a sua competência,
confiou-lhe a respectiva tradução. Entre os autores a traduzir contavam-se nomeadamente
Helena Blavatsky fundadora da escola teosófica contemporânea, e Annie Besant, que
adquiriu mais tarde uma reputação universal ao descobrir e apadrinhar Krishnamurti. «Tive
de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora,
como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje
impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto
desta religião-filosofia; a noção de força, de domínio, de conhecimento superior e
extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Coisa idêntica me
acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios
dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante».[...]
Ora, se V. meditar que a teosofia é um sistema ultracristão - no sentido de conter os
princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus - e
pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V.
terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se, depois, reparar em
que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido
com o do paganismo, que admite no seu panteão todos os deuses, V. terá o segundo
elemento da minha grave crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua
grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo [...], atrai-me por se
parecer tanto com um «paganismo transcendental» [...]. É o horror e a atracção do abismo
realizados no além-alma....»
 

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CAHILL, E.

CASTELLS, F. de P.

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INTRODUCTION TO ROYAL ARCH MASONRY

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NEWTON, Joseph Fort

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WAITE, Arthur Edward

WAITE, Arthur Edward

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