XI

RELATO DAS TRÊS AMIGAS

 

Nas horas de lazer, é costume visitar amigos e parentes por aqui. Gostamos de nos reunir e conversar. O assunto preferido entre familiares são os parentes. Falamos a respeito dos entes queridos desencarnados que não estão bem e sobre os parentes encarnados. Trocam-se idéias e ajuda. Na casa de vovó, recebem-se muitas visitas e, como estava sempre por ali, quando convidada, ficava junto. Escutava conversas, participara e, com isto, aprendia muito.

D. Amélia, uma das senhoras que moram conosco, recebeu a visita de sua neta Marina e da amiga dela, Isa, que residiam em outra Colônia. Conversamos animadas. Como quase sempre acontece, a conversa foi sobre a desencarnação. D. Amélia foi a primeira a falar da sua desencarnação.

—A morte do meu corpo foi muito dolorida. O câncer foi destruindo meu corpo. Revoltei-me com tudo e todos, tornei-me uma doente amarga. Muita debilitada, meu corpo morreu, nada vi ou senti, só percebi tempos depois. Continuei a sofrer com meu desencarne. Vaguei com dores pelo meu antigo lar. Sofri muito. Depois de muitos anos, fui socorrida. Entendi que foi merecido tudo o que passei. Tendo saúde encarnada, não dei valor, tomava sempre bebidas alcoólicas, fumava, envenenei meu corpo com o egoísmo, inveja e ciúmes. Se não fiz mal a ninguém, fiz pouco bem. O bem que fiz foram as poucas esmolas, resto do meu supérfluo, que distribuí. Nunca pensei em ajudar realmente alguém. Vivi encarnada cultivando a matéria, como uma tola imprudente, ignorando a parte verdadeira, a espiritual. A dor, a doença, tudo isso foi uma tentativa que havia escolhido antes de reencarnar, para alertar-me, mas fiquei revoltada, não sofri com resignação. Quem não sofre com aceitação, pouco lhe adianta. Depois, em vez de reconhecer meus erros, me revoltei, achando injusto, por não ter feito, no meu ponto de vista, nada de ruim, não matara, não roubara, não traíra, etc. Esquecendo que pude fazer o Bem e não fiz. Nem aprender quis. Para que saber? Dizia sempre, depois de morta, aprendo. Isto, se tiver continuação da vida. Teve, continuei a existir depois do meu corpo ter morrido. E continuei a sofrer pelos mesmos motivos. Até que, cansada, comecei a ver realmente meus vícios. Mais humilde, clamei, pedi ajuda. Amigos e parentes levaram-me para o hospital de um Posto de Socorro, onde sarei e vim para a Colônia. Agora, tendo a oportunidade, sou agradecida, tento educar-me no trabalho útil e no estudo da boa moral.

—Eu — falou Marina —desencarnei jovem, aos vinte e um anos. E, como vovó, ignorava completamente a continuação da vida, não tinha idéia do que acontecia com quem morria, se acaba, se ia para o inferno ou o céu. Teorias que não entendia e nem queria entendê-las. Não seguia religião nenhuma. Dizia ter uma só por rótulo. Para mim, a morte do corpo era somente para os outros. Desencarnei por um acidente de carro. Socorristas, trabalhadores do Bem tentaram ajudar-me, repeli-os. Para mim, era loucos dizendo besteiras, como que meu corpo morreu. Foi um período difícil. Na minha casa, foi um caos. Meus pais intensificaram as brigas e acabaram por se separar. Um acusava o outro pelo meu desencarne. Sofri muito, julguei estar louca por não conseguir entender o que se passava e por não aceitar minha desencarnação. Com meu lar desfeito, vaguei pelas ruas com muito medo. Cansada de sofrer, resolvi apelar para Deus. Entrei num templo e orei, senti-me melhor e resolvi ficar ali. Entendi que religião faz falta, quando se é religioso sente-se protegido, quando se é realmente sincero e devoto na religião os sofrimentos são compreendidos. E a morte não aterroriza tanto. Entendi que desencarnara, mas não sabia o que fazer para melhorar minha situação. Fiquei naquele templo a orar junto com outros desencarnados e com encarnados que lá iam. A oração levou-me a meditar, a me arrepender dos meus erros. Fiz muitos atos errados, fui egoísta, materialista, nos meus vinte e um anos que passei encarnada, tinha muito do que me arrepender. Não saí mais do templo, temi os irmãos trevosos, tinha medo que eles me prendessem. Eles não entravam no templo, mas via-os fora. Fiquei anos no templo, cansei, resolvi ser sincera comigo mesma e pedir socorro. Chorando, pedi ajuda a Deus. Trabalhadores do Bem auxiliaram-me. Levei tempo para me recuperar num hospital de um Posto de Socorro. Hoje estou bem, sou grata, aprendo a viver aqui, anseio por melhorar moralmente e pôr em prática o que aprendo.

Marina suspirou, mas não estava triste, as lembranças de tudo que passou lhe dão forças para melhorar cada vez mais. Após uma pausa, foi a vez de Isa falar.

—Desencarnei por um tumor maligno no cérebro, depois de alguns meses doente. Estava com dezesseis anos. Seguia uma religião que equivocadamente me ensinou que, com a morte, adormecia para acordar no julgamento de toda a humanidade, nos fins dos tempos. Senti um torpor com a morte do meu corpo, uma espécie de sono, no qual achava que dormia, mas ao mesmo tempo via e ouvia tudo, embora sem muita clareza, o que se passava ao meu redor. Fiquei junto dos familiares a velar meu corpo. O desespero dos meus foi grande, gritavam, choravam, sofriam horrivelmente. Sentia muita perturbação, mas também sentia-me amparada, escutava alguém convidando para ir, partir. Os meus familiares me seguravam e não me esforcei para ir, não queria deixá-los sofrendo tanto. Após meu corpo ter sido enterrado, meus familiares foram embora, chamei com fé: “Meu Deus, ajuda-me!” Socorristas me levaram para um Posto de Socorro tentaram explicar e me curar. A doença, o reflexo dela, ainda era forte em mim. Não me apavorei ao saber que meu corpo morreu, decepcionei-me por não ser como pensava, como acreditava. Entendi as explicações que gentilmente os benfeitores me transmitiam, raciocinando, achei justas e lógicas. Não temi mais, e passei a dormir com mais tranquilidade. Mas os lamentos, o desespero dos meus, enlouqueciam-me. Julgava-me tão coitada por ter morrido que comecei a ter dó de mim, e a autopiedade não leva a nada, só maltrata, desesperei. Eles começavam a chorar, eu também desesperava e chorava. Quando me chamavam, queria ir para perto deles e acabei indo. Que agonia! Choravam, lamentava, era como se eu tivesse acabado. Sem entender, pois novamente fiquei confusa, sofri muito. Diziam que estava dormindo, que nada via ou sentia, gritava que não e novamente me apavorei, temi adormecer. Detestei ficar no meu ex-lar, quis voltar ao Posto de Socorro, mas não sabia como. Lembrei de Jovina, uma caridosa enfermeira que cuidou de mim, chamei por ela. Jovina carinhosamente veio em minha ajuda, senti alívio ao vê-la. “Jovina, socorre-me!” Implorei em lágrimas. “Tira-me daqui, me leva para um lugar onde não possa voltar mais.” Jovina me levou para uma Colônia, onde fui internada no hospital do Educandário na ala para jovens. Tive de receber um tratamento especial para superar e entender o desespero dos meus pais, procurando não dar importância aos seus chamados para não sentir tanto. Os orientadores do Educandário, para que pudesse me recuperar mais rápido, tentavam ajudar mais pais. Como o sofrimento leva muitas pessoas a procurar ajuda, meus familiares aceitaram conversar com uma vizinha Espírita que bondosamente lhes explicou que deveriam conformar-se com a vontade de Deus e que eu, sendo boa, deveria estar em bom lugar e que não deveriam me chamar, etc. Foram ótimos conselhos, que entenderam de modo confuso. Mas, para meu alívio, melhoraram, não chamaram mais por mim e não desesperaram, sofrendo menos. Pude então me sentir mais aliviada, esforcei-me para sarar, porque eles, pensando em mim como doente, com dores, me transmitiam isto, dificultando o desligamento dos reflexos da doença. Sarei e senti-me bem. Comecei a interessar-me em conhecer o Educandário, a Colônia, a fazer amizade e apareceu outro problema. Julgavam-me santa, anjo, e encheram-me de pedidos. Pediram-me de tudo, para ir bem na prova da escola, para ter saúde, para não chover, ou para chover, sarar da dor de cabeça, achar objetos perdidos, etc. Pior que incentivaram todos os familiares, amigos e vizinhos a fazê-lo. Sentia estes pedidos e agoniava, queria ajudá-los, mas como fazê-lo? Instrutores do Educandário tentaram novamente ajudá-los para que eu melhorasse. Novamente a vizinha Espírita foi a porta-voz, conversou com eles, orientou-os para que não pedissem nada a mim. Que pedissem a Deus, a Jesus, aos Anjos. Que eu, sendo boa, deveria estar em bom lugar, mas que talvez não me fosse possível ajudá-los e que sentiria por isto. Ficaram sentidos com a bondosa vizinha. Generosos instrutores do Educandário tentaram novamente esclarecê-los, desligando-os do corpo enquanto dormiam e conversando com eles. Foram aos poucos deixando, mas, ainda hoje, recebo pedidos. Amo meus familiares, desejo-lhes bem, oro por eles, mas não gosto nem de ir visitá-los. Sofri muito com a falta de compreensão deles. A morte é tão natural, não sei por que fazer dela uma tragédia. Demorei muito tempo internada no Hospital, tive depois que fazer um acompanhamento com orientadores, até me sentir segura. Amo a vida desencarnada, sinto-me tão bem no Educandário. Mas não foi fácil!

A conversa continuou agradável por mais tempo, depois nossas visitantes despediram-se e foram embora.

Fiquei a pensar...


XII

ELUCIDAÇÕES

 

Maurício me surpreendeu pensativa, sentada na varanda.

—Em que a menina Patrícia pensa tanto?

Contei-lhe as narrativas que ouvi das três amigas e terminei por interpelá-lo.

—Por que não fui para o Educandário?

—É bom que pensa, medita para aprender. Você é muito adulta com os seus dezenove anos. E mais responsável que muitos idosos por aqui. Achamos melhor você ter vindo para cá. Você tem muitos conhecimentos, o Educandário lhe pareceria uma escolinha para infantes.

—Sofre-se ao desencarnar por não ter conhecimentos do Plano Espiritual?

—Nem todos sofrem, por não terem conhecimentos Espíritas ou do Plano Espiritual. Conhecimentos só facilitam a adaptação. Mas a falta destes conhecimentos, da crença da verdadeira continuação da vida após a morte do corpo, acarreta muita perturbação e até sofrimento ao desencarnado e até mesmo para os encarnados que perderam o ente querido.

—Que me diz do sofrimento destas três amigas?

—O egoísmo é um peso, os que cultivam a matéria a ela ficam presos. Amélia sofreu, não foi má, mas deixou de fazer o Bem. O Bem a ela própria, como se instruir, entender a vida como um todo. Teve vícios e nem se esforçou para melhorar. A desencarnação foi um pesadelo, uma agonia. O que aconteceu a ela sucede com muitos: são os que se esquecem completamente da parte espiritual. Marina sofreu pelos mesmos motivos. Equivocam-se ao pensar que todos os Jovens são socorridos, somente pelo fato de ser jovem. Não estando nada preparada para enfrentar a mudança com a desencarnação, repeliu-a. Seus erros lhe pesaram na consciência. Infelizmente vemos muitos jovens delinquentes. Ser criança e jovem na matéria são fases. Sabemos que o espírito pode ser milenar. Os socorristas dedicam a máxima atenção para todas as crianças e jovens, mas infelizmente nem todos podem ser amparados. Muitos necessitam entender através do sofrimento, para dar valor ao amparo recebido.

Maurício suspirou dando uma pausa e continuou:

—Isa, sendo boa, poderia ter sido socorrida e sentir-se bem logo que desencarnou, mas, como acreditava que ia ficar no corpo dormindo, quis, desejou ficar. Nossa vontade é sempre respeitada. A história de Isa é comum, o sofrimento em desespero atormenta a todos. São muitos os jovens que passam o que ela passou. Quando os encarnados têm dó e só pensam nos desencarnados doentes, sofrendo, estes sentem. Estes têm mais dificuldades para livrar-se dos reflexos da doença, do sofrimento pelo qual desencarnaram. Devem os encarnados pensar nos desencarnados sadios, felizes, e desejar-lhes alegria. Quando os encarnados não colaboram, os desencarnados necessitam de muito auxílio para superar esta fase difícil. Escutam chamá-los, como se as vozes dos familiares saíssem de dentro deles, querem atendê-los, querem ir para perto deles. Eles choram lá e eles aqui. Muitas vezes, ficam internados somente por este motivo. Às vezes, aceitam a desencarnação, está tudo bem com eles, mas entram em crise todas as vezes que, em desespero, os encarnados chamam por eles. Depois ficam a lhes pedir favores. Não se deve pedir graças, favores aos familiares desencarnados, não se sabe se eles podem ou não fazê-los. Como no caso de Isa, ela, não podendo, sentia-se infeliz. Mesmo se pudesse, não podemos pedir que façam a lição que nos cabe e nem que venham tomar nosso lugar nos bancos de provas. Isa nem podia ajudar a si mesma, e se estivesse apta a ajudar, se já tivesse conhecimentos, não poderia atender todos os pedidos, não é bom fazer o que compete aos outros. A intervenção dos instrutores do Educandário no caso de Isa é muito justa. Para ajudá-la tentaram chamar seus familiares à realidade. Os orientadores do Plano Espiritual fazem muito esta ajuda, pensando nos seus pupilos. Observe, Patrícia, que Isa sendo boa sofreu pela falta de compreensão, do entendimento da desencarnação, algo tão comum para todos.

—Comigo foi tão diferente!

—Você não é privilegiada, aqui está por afinidade, é pura de coração. E não é por ter sido Espírita. (Os Espíritas, normalmente, estão entre aqueles aos quais muito foi dado e a quem muito será pedido. Os que deram valor ao que receberam terão em abundância.) Se não fosse boa e sem erros sua desencarnação não teria sido como foi. Se você, Patrícia, não fosse boa, poderia ter sido até uma dirigente de Centro Espírita, que não viria como veio. Está aqui porque você fez por merecer. Você não sentiu o que Isa sentiu, porque o ambiente de seus familiares é de compreensão. Todos buscam, no seu lar, o aperfeiçoamento que lhes dá condições de não se perturbar e assim ajudar você. Veja sua mãe: em vez de chamá-la para junto de si, oferta-lhe flores. Não as colhe, ou leva ao cemitério, pensa e manda-as. Seu pai, na sua desencarnação, lhe deu estímulo e sustentação psicológica.

Maurício silenciou. Sim, era verdade, meu pai me sustentava. Recebia diariamente seus recados e orações: “Patrícia, alegre-se, a vida é linda, seja feliz! Estamos bem, não se preocupe conosco. Faça o que os amigos lhe têm orientado, etc., etc.” Sempre obedeci meus pais. Achava e acho meu pai o “máximo”, prudente e sábio e seguia agora suas orientações.

—Maurício, quero trabalhar.

—E o fará. Logo que iniciar o curso de conhecimentos do Plano Espiritual, você irá fazê-lo. Este curso é realizado de dois modos, num período maior para os que não têm conhecimentos do Plano Espiritual, e em período menor para os que têm conhecimentos. Você fará o de período mais curto. Irá gostar muito. Mas, enquanto espera, deseja fazer algo? Bem, vamos ver. Que quer fazer? Quando desencarnou fazia dois cursos na Faculdade, Ciências e Matemática, como também lecionava para infantes. Quer lecionar, dar aulas?

—Lecionar aqui!?

—Você acha que só pelo simples fato de desencarnar se sabe de tudo? Quem era analfabeto encarnado, desencarna e continua sendo.

—Se em outras encarnações passadas sabia, não recorda quando desencarna?

—Nem sempre. Se em outras encarnações teve conhecimentos e na última foi analfabeto, poderá recordar. Mas esta lembrança poderá ser acompanhada de outras que talvez não lhe sejam convenientes no momento. Depois, para ter estas recordações o espírito precisa estar apto, preparado para isto. E quem está apto recorda quase sempre sozinho. Os desencarnados só recordam o passado para um entendimento, para aprendizado ou para realizar uma tarefa. Os que precisam recordar vão a departamentos próprios, lá os trabalhadores do local analisam e, se for realmente um Bem, ajudam-nos a recordar. Aqui, na Colônia, estes irmãos analfabetos têm oportunidades, facilidades para aprender. Há uma ala, na Escola, onde analfabetos que desencarnam adultos aprendem a ler e escrever. Você poderá ensiná-los, alfabetizando-os, enquanto espera o início do curso. Ensinará só os adultos, porque professores de crianças e jovens fazem parte do Educandário, necessitam de muitos conhecimentos. Porque, professores, para eles, são exemplos, são aqueles que resolvem todos os seus problemas. Para adultos, o conhecimento é dividido em matérias e você os ensinará muito bem a ler e escrever. Quer?

—Sim. Quero.

Maurício despediu-se e fiquei a pensar, recordei que papai sempre nos dizia sobre o saber: “O saber, que a maioria dos homens e espíritos tem como fim, deveria ser como meio, para que o homem possa evoluir até sua cosmificação. Nós, para vivermos na matéria, não precisamos saber ler, mas o saber facilita. Assim também o saber não realiza o homem espiritualmente, mas, sim, lhe dá condições de compreender e encontrar a bem-aventurança.”

Sim, queria estudar, aprender para ser útil com sabedoria e fiquei muito feliz em poder repartir desde já os poucos conhecimentos que possuía com outros irmãos.

Aguardei ansiosa a nova visita de Maurício que me levaria à escola para adultos.

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