09/06/99 A cabo de chegar da Espanha e como se quisesse prolongar a viagem, antes de começar esta crônica, ouço um CD de canções e poemas de Garcia Lorca. A mesa está cheia de folhetos, livros, discos, anotações de viagens e, vejam só, até um novo volume do "Don Quijote de la Mancha". Há algum tempo tenho tido ganas de reler esse livro e isto aguçou-se quando, recentemente, varei a edição monumental do romance de cavalaria "Tirant lo Blanc" (1490), que a Editora Giordano lançou em português. Este "Tirant Blanc", com suas quase mil páginas, era o livro que Cervantes considerava "o melhor livro do mundo", e serviu de modelo parodístico para o Quixote. Mas ainda ontem estava eu ali em Pedraza, mínimo povoado medieval, a uma hora e pouco de Madri, com suas casas de pedras cor de sépia e pequenas torres de igrejas, onde cegonhas constróem gigantescos e ostensivos ninhos com enormes gravetos. Estão por ali chocando seus ovos e pairando sobre a vida desde sempre. Vejo um ninho, vejo dois, três, vejo-os muitos; fotografo, filmo e incorporo aos meus emblemas essas plácidas cegonhas nas torres da região de Castela. Nós, americanos, disse-o alguém, nunca vamos à Europa, senão que retornamos à Europa. Na entrada do Hotel Suécia, em Madri, dou de cara com uma nobilitante inscrição na parede. Diz o texto que Ernest Hemingway hospedou-se ali nos anos 50, encontrando "refugio de su extrema pasión por el Museo del Prado y por la vecinidad del Círculo de Bellas Artes". Como se vê, não só de touradas vivia o fanfarrão escritor. Por outro lado, as andanças de Hemingway e seus amigos ritualizando pela Europa o que chamavam de "festa móvel", acabou gerando um mito. São inúmeros os bares do mundo onde há placas dizendo que Hemingway esteve ali bebendo. Daí que em Madri um bar decidiu colocar um aviso advertindo que Hemingway nunca esteve ali. É o marketing ao revés. Aliás, indo assistir ao último e genial filme de Almodóvar, "Todo sobre mi madre", passo por uma loja que anunciava em grandes letras: "Não compre aqui. Nossos preços são muitos caros". E a loja estava cheia. Quantas Espanhas há dentro da Espanha? O que tem a Espanha de Almodóvar a ver com a de Lorca? - penso enquanto ouço suas canções e poemas. São diferentes e complementares. O princípio e o fim do século. O homossexualismo recluso de um e o "travestismo" do outro, ambos, no entanto, com uma patética doçura e uma imensurável ternura pelas mulheres. Dá gosto ver Almodóvar na posse total de seu talento e virtualidades. No entanto, eu havia ido à Espanha não para ver as cegonhas de Pedraza ou o Museu Guggenheim de Bilbao - de que lhes falarei noutra crônica, mas para ser júri do VIII Prêmio Reina Sofia de Poesia Ibero-americano. Há países como a Espanha e Portugal, para ficar apenas na Península Ibérica, que têm política cultural. Nessa semana em que ali estive concederam, só na área literária, três prêmios a três personalidades internacionais. Ao peruano Vargas Llosa, lhe deram o Prêmio Menendez Pelayo - e Llosa confessou-se constrangido de estar ganhando tantos prêmios ultimamente. Ao alemão Gunter Grass, lhe deram Prêmio Príncipe de Astúrias e ao uruguaio Mário Benedetti, nosso júri deu o Prêmio Reina Sofia. E como essa distinção leva o nome da rainha, ela será conferida a esse escritor com pompa e circunstância, no Palácio Real, em novembro. Benedetti disputou com nomes como o chileno Nicanor Parra e o barcelonês Pere Gimferer, e ganhou por pouco desse esplêndido poeta argentino que é Juan Gelman. A reunião do júri foi no Palácio Real e tendo eu chegado quase junto com Camilo Cela íamos conversando abobrinhas literárias. Revelei-lhe minha surpresa de ter lido (graças às cartas dadas à luz por Cassiano Nunes) que o grande ensaísta espanhol Américo Castro, na verdade, havia nascido em Cantagalo, no Estado do Rio, e, em 1947, veio visitar sua vila natal deixando isto registrado em cartas a Baltazar Xavier. - Pois eu - disse Camilo Cela - tenho paarentes no Nordeste brasileiro, e são todos pobres. E assim vão se misturando nossas raízes ibéricas. Por isto, me agradou a maneira fraterna como os espanhóis tratavam José Saramago, também no júri, chamando-o de Pepe e elegendo-o para dar à imprensa a notícia do prêmio conferido a Benedetti. Dois dias depois reencontro Saramago na Feira do Livro de Madri, que tinha mais de 500 estandes ao ar livre no Parque del Buen Retiro. Lá estava, pelo segundo dia consecutivo e uma enorme fila a lhe aguardar o autógrafo. Passo e murmuro aos seus ouvidos: "Esse Saramago ainda vai acabar fazendo sucesso". Ele sorri com cumplicidade. Penso se Waltinho Moreira Salles leu este depoimento, onde outro grande diretor demonstra como a realidade necessita da ficção para se complementar. Bem que eu dizia aos estudantes da Universidade de Duke uma das poucas verdades que aprendi e que continuarei repetindo até o fim dos meus dias: a realidade é apenas a parte mais visível da ficção. Anotem: a Espanha tem uma política cultural. Dois milhões e meio de pessoas foram à Feira do Livro de Madri. Nesse país, em 1998, se editaram 60.426 obras, umas 20 mil a mais que o Brasil, embora tenhamos quatro vezes a população de Espanha. E porque a Espanha tem uma política cultural, a Casa da América, num esplêndido prédio no centro de Madri, realiza um programa de integração com a América Latina. Manuel Piñeiro Souto, seu diretor, fala-me de seus projetos, e Hortencia Campanella mostra-me o rico palácio, uma verdadeira plaza mayor para o encontro de nossas culturas. E porque a Espanha tem uma política cultural o Museu Thyssen-Bornemisza, que está com uma exposição de obras de Morandi, obteve dois prédios novos para ampliar seu espaço, o Museu Reina Sofia continua crescendo, e a Biblioteca Nacional passa por novas ampliações e reformas. Uma plaza mayor para a cultura. Quantas vezes escrevi sobre isto? Agora, no entanto, estava ali na Plaza Mayor de Madri, construída por Felipe II, em 1619, meditando sobre as nossas relações ibéricas, comendo a clássica paelha, tomando um vinho da Rioja, enquanto um músico popular em sua flauta fazia soar "Concerto de Aranjuez", de Rodrigo. Um cantor de flamenco se aproxima e faz um improviso com uma letra atualíssima: não canta uma canção de desesperado amor, conta um drama atual, "la droga que mata poco a poco y que a uno vuelve loco". Já vi o que em Madri me era dado ver. No Museu do Prado, Velázquez, Murilo, Zurbarán Ribera e outros, sobretudo o alucinado Goya, continuam emblemando uma cultura cheia de assombros. Goya é a verdadeira encruzilhada na modernização da pintura ocidental. Dos seus quadros patéticos brotam guerras, touros, bruxas e figuras voadoras. No entanto, antes que ele existisse e depois dele, nas torres de Castela as cegonhas brancas fazem seu ninho e alimentam seus filhotes para as intempéries da próxima estação. |