A crise nossa de cada dia



        Semana passada, no vôo 442, entre Rio e São Paulo, no horário de 9h34m, um senhor dirigia-se ao assento para ele reservado no interior da chamada aeronave, mas encontrou-o ocupado por uma americana. Nas condições normais de temperatura e pressão da sociedade brasileira, aquele cidadão brasileiro teria dialogado com a turista ou chamado a comissária de bordo para ser juíza do impasse.

        No entanto, tomado de súbito ardor patriótico, fez um pronunciamento político para que o avião e toda a nação o ouvisse: ‘‘Não basta o FMI se apoderar do país! Agora a senhora quer me tirar até o meu lugar no avião!?’’

        Dizem os que assistiram à cena que a acuada americana não tinha cara de ser do FMI, mas mesmo assim escafedeu-se logo, e pode-se imaginar o que estará contando às suas vizinhas no Arkansas sobre a fúria ideológica e econômica dos aborígines brasileiros. O fato é que o indignado e ousado cidadão foi bem-sucedido. Mais bem-sucedido que os economistas do Governo diante do Stanley Fischer ou que os governadores que estão reclamando que o FMI está metendo a mão no orçamento deles.

        Queridas leitoras e leitores não menos queridos: confesso-lhes que estou preocupado. Preocupadíssimo. Vocês vão dizer ‘‘nós também’’, e vão sacar números espantosos que mostram o beco sem saída onde a pavoneante política de Fernando Henrique nos meteu. Mas não é desses números que se origina a minha preocupação. Claro que saber que 75% dos brasileiros acham esse Governo péssimo/ruim/regular já é uma calamidade. Claro que é assustador saber que alguns economistas estão começando perigosamente a ver uma certa inflação com bons olhos, pois ela poderia fornecer aos governos mais 23 bilhões. É como se estivessem adaptando aquela estúpida frase sobre o estupro: ‘‘Já que é inevitável, aproveita e goza’’.

        Mas o que me assusta é um detalhe. E assim como Guimarães Rosa dizia que Deus está nos detalhes, estou para dizer que certos detalhes às vezes podem ser demoníacos. Refiro-me a um fato que passou despercebido ao sofrido ouvido da nação. Ou seja, o presidente outro dia começou uma frase com a palavra ‘‘repilo’’. Ele queria rechaçar alguma coisa que andavam dizendo. Então, disse uma frase que começava com esse verbo, algo tipo ‘‘repilo as insinuações’’...

        É muito grave um presidente dizer ‘‘repilo’’. E lhes digo porquê. Não é que lhe seja vedado repelir quem quer que seja. Não. Mas os dois presidentes que me lembro usaram esse verbo foram Collor e Jânio Quadros. E vocês viram que fim levaram. Isto me faz pensar que quando um presidente diz ‘‘repilo’’ é porque quem está sendo repelido é ele.

        Além do mais, esse verbo que parece inofensivo quando a gente, no infinitivo, diz ‘‘repelir’’, fica esquisitíssimo na primeira pessoa do presente do indicativo, ou melhor, fica indicativo de que o presente está esquisitíssimo na boca da primeira pessoa do país - o presidente. Parece mesmo coisa de Jânio, tipo ‘‘fi-lo porque qui-lo’’.

        Assim como os leitores me mandam cartas, artigos, manifestos e até andam me parando na rua para sugerir que diga isto ou fale aquilo, porque todos estão querendo usar a boca dos outros para botar a boca no mundo, outro dia acho que imaginei ou tive um sonho de que o Chico Caruso estava fazendo uma série de charges sobre esse episódio de o presidente não querer receber os governadores de oposição. Quer dizer, não bastava ter essa crônica aqui, eu ainda queria invadir o espaço do colega, tomar o lugar dele no avião.

        A charge era assim: cena de uma partida de futebol, ou melhor, de uma pelada entre garotos. De um lado, um garoto com a cara de Fernando Henrique. (Aliás, um amigo dizia que ‘‘Fernando Henrique’’ soa como nome de filho único, mimado, com a mãe dizendo ‘‘Leva a suéter, Fernando Henrique, senão você pega um resfriado’’).

        Mas voltando à fantasiosa charge do Chico Caruso, lá estava num canto, aliás, fora da linha do campo, o Fernando Henrique abraçado com a bola e dizendo: ‘‘A bola é minha, se eu não puder jogar do jeito que eu quero e fazer gols do meu jeito, ninguém joga’’.

        Os demais ‘‘garotinhos’’ do Rio de Janeiro e outros estados gesticulam, argumentam e dizem: ‘‘Ô Fernando, a gente sabe que a bola é sua, não fica emburrado, vamos jogar, pô! A torcida tá esperando, cara! Bota a bola no chão!’’.

        E a charge iria evoluindo a cada dia conforme o desenrolar do jogo.

        Outro dia, a Miriam Leitão publicou aqui um artigo perturbador. Citou uma porção de frases do presidente, do seu ministro da Fazenda, dos principais jornais e revistas do país sobre a crise, a inflação, o câmbio, etc. Só que as frases que a gente pensava fossem de Fernando Henrique, de Malan e outros, eram de Collor, Marcílio e, pasmem! do próprio Armínio Fraga, quando ocupou, naquele tempo, uma direção do Banco Central. O artigo é terrível, porque demonstra que o drama é o mesmo, só mudaram os personagens.

        Por essas e por outras é que temos que olhar com desconfiança essa frase que muita gente anda repetindo, que ‘‘o Brasil é maior que a crise’’, de que a ‘‘crise é temporária e o Brasil, permanente’’. Tais frases são exercício de auto-indulgência. São frases-bóias, são salva-vidas, que a gente lança para não submergir de vez na amargura.

        O certo, porém, é constatar o contrário: nesses 500 anos a crise é a norma e alguma estabilidade, uma exceção. No Brasil, a oração bíblica tem que ser corrigida pois em vez de ‘‘pão nosso de cada dia’’, cada vez tem mais ‘‘a crise nossa de cada dia’’.
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