17/11/98 O presidente estava sentado numa roda de 30 pessoas (empresários, intelectuais, políticos, economistas, assessores) lá no Palácio das Laranjeiras. Viera falar para representantes da sociedade civil. Era uma data prenhe de significados: sexta-feira, 13, e às 13 horas havia sido assinado o acordo com o FMI concedendo quarenta e tantos bilhões de dólares de empréstimos ao Brasil. Convidado, ainda vacilei se devia ir ou não. Da última vez que participei de uma reunião dessas, há uns três anos no Alvorada, saí meio frustrado: a sensação tinha sido de que o Governo não queria ouvir, e sim falar. Mas também pensei: ‘‘Vou. Se tiver chance, pergunto sobre algumas coisas que nos inquietam. Perguntar não ofende’’. Lembrei-me que, por razões diversas, tinha estado com (ou perto de) JK, Eisenhower, Geisel, Figueiredo, Fidel, Mitterrand, Menen, Wasmosy, Sanguinetti, Andrés Pérez, Collor, Itamar, FH e outros. O presidente, portanto, estava sentado naquela roda de 30 pessoas e falava sobre números e problemas de seu Governo. Às vezes, naquela sala decorada à francesa, com tapetes, candelabros, espelhos e quadros, chegava algum rumor de manifestantes na entrada do Parque Guinle. Muitos dos que estávamos ali já participamos de manifestações na porta de palácios. O próprio presidente já esteve vociferando ao vento com as massas. Contudo, estávamos ali dentro, e o povo lá fora. Digo povo, porque lá de fora vinham outros ruídos que não dos contestadores organizados. Por duas vezes, pelo menos, ouvimos sons de tiros, talvez rajadas. Os olhares de alguns entrecortaram as palavras do presidente. Há uma favela ali por perto. E dizem que neste ou noutro palácio mais adiante - o Guanabara, já chegaram balas perdidas. Balas atiradas pela miséria, violência e desorganização social. Mas o que me assusta é um detalhe. E assim como Guimarães Rosa dizia que Deus está nos detalhes, estou para dizer que certos detalhes às vezes podem ser demoníacos. Refiro-me a um fato que passou despercebido ao sofrido ouvido da nação. Ou seja, o presidente outro dia começou uma frase com a palavra ‘‘repilo’’. Ele queria rechaçar alguma coisa que andavam dizendo. Então, disse uma frase que começava com esse verbo, algo tipo ‘‘repilo as insinuações’’... O presidente, no entanto, falava, e não sei se se dava conta desses ruídos na sua comunicação. Falar no meio de um tiroteio, sem perder o fio da meada, exige perícia. Pensava eu que embora o presidente tenha um ar simpático e informal, é difícil quebrar a formalidade. Mesmo porque estabelece-se um jogo, uma representação. Uns estão ali apenas para serem vistos, parecerem que são íntimos do poder. Outros, para ver no que vai dar. Outros, temerosos, mas querendo questionar. E há aqueles que querem dar um recado ou transmitir um pedido pessoal. Pensei: se o presidente conversasse cinco minutos separadamente com cada um, talvez a reunião fosse mais produtiva. Ou, então, se a reunião começasse logo pelas perguntas seria mais interessante, porque aquelas pessoas que ali estavam, por serem atentas seguidoras da vida nacional, não apenas já sabiam de tudo o que o presidente redizia, mas sabiam de muitas coisas que ele não sabe e deveria saber para que o Governo errasse menos. Na hora das perguntas, alguém lhe cobra mais atenção para com a universidade e a pesquisa. Outro segue alertando que já que o Governo está cortando tão fundo na carne da população deveria produzir e divulgar medidas compensatórias do sacrifício. Outro alerta que, segundo a imprensa sueca, a Marinha está comprando torpedos e que, talvez, fosse melhor comprar lanchas para cuidar de nossa ecologia. E assim por diante. O presidente vai respondendo. Vai deslizando entre as perguntas. Às vezes, parecia-me estar revestido de uma camada especial, como certas aves que têm uma gordura na pena, que lhes permite nadar sem se molharem. Ouvia o presidente e pensava: ‘‘Seria bom se ele não tivesse tantas certezas’’. E conjecturava: ‘‘Será que quando está sozinho no Alvorada, à noite, ouvindo os grilos do planalto, não tem também uns grilos mentais? Será que, pelo menos como exercício teórico ou até como estratégia para verificação dos rumos, não questiona o modelo que escolheu? Será que de tudo o que a oposição, os jornalistas críticos e os economistas divergentes dizem, nada cola ou molha suas penas reais?’’ Por conseqüência, lembrei-me daquelas coisas que na filosofia a gente aprende sobre a sabedoria como resultado da dúvida metódica, ou daquilo que em Minas se diz: ‘‘confiar desconfiando’’. Enquanto o presidente citava números aqui e ali eu ia pensando nas coisas reais que havia ouvido e lido naqueles dias: empresas fechando, o desemprego aumentando e pessoas desesperadas. Uma médica me dizendo que, na repartição pública em que trabalha, aumentou não só o número de licença para tratamento de saúde, mas os óbitos aumentaram. Aquilo lembrou-me quando morei nos Estados Unidos e toda noite no noticiário da CBS ouvia a estatísticas dos mortos na guerra do Vietnã. Não diziam ‘‘mortos’’ e, sim, casualties’, isto é, ‘‘casualidades’’, como se fosse um acidente de percurso. E, no entanto, os Estados Unidos perderam a guerra. Que explicação dar às famílias dos que morreram numa guerra equivocada? Ia eu pensando também na biografia de JK, na qual no capítulo ‘‘Monetarismo e desenvolvimento’’ ele explica porque optou pelo desenvolvimento e não pela recessão monetarista. Adiantaria Fernando Henrique ler isto? Eu havia me inscrito para fazer algumas perguntas ao presidente, mas quando chegou minha hora ele avisou que tinha outro compromisso e tinha que sair. Terminada a reunião, servido um cafezinho aproximo-me do presidente e digo: ‘‘O senhor não acha que há um conflito entre as estatísticas e a realidade?’’ E falei algumas coisinhas mais. E como ele houvesse terminado sua fala com um otimismo desafiador, acrescentei: "O senhor está me lembrando Álvaro Moreira que dizia ter diabetes na alma’’. ‘‘É isso aí, respondeu o presidente, eu tenho diabetes na alma’’. |