10/11/98 Estou lendo o "Diário de Faxinal do Céu" de Antônio Carlos Villaça e, de repente, dou com essa frase que me arranca uma exclamação e quase uma gargalhada: "O Brasil não se deu conta de que há uma relação entre causa e efeito". A frase não é dele, é de uma figura que as novas gerações desconhecem completamente, misto de político, escritor e bon vivant que se chamava Gilberto Amado. Fico dividido entre dois pensamentos. Primeiro, tiro os olhos do livro, miro a paisagem em torno, degustando a perfídia naquela afirmação. É como se também fosse dito que neste país dois e dois são cinco. Aliás, isto foi até institucionalizado naquela canção que a Gal disseminou nos anos 70: "tudo certo como dois e dois são cinco". Quer dizer: são cinco, e é isso aí, bicho! Ainda agora, nesse episódio que envolveu o ministro Serra, isto, de novo, se comprovou: o Brasil é o país onde se soma subtraindo. O Governo diz que o orçamento do Ministério da Saúde aumentou. O ministro demonstra que diminuiu. É que a matemática dele não bate com a matemática oficial. Não me surpreenderá se surgir alguém dizendo que a matemática é uma questão de ponto de vista. Não é à toa que o poeta mineiro Ronaldo Claver, há muitos anos, publicou um livro de poemas chamado - "Matemágica". Talvez Gilberto Amado, que era um homem viajado, estivesse exigindo muito de nosso país. Talvez, ele não tivesse entendido que nossa cultura não pode ser medida pela linha reta, pela lógica, mas pela linha curva, pelo barroquismo. Ou, talvez, sejamos a comprovação de uma intrigante lei da física moderna que contraria totalmente a relação entre causa e efeito e afirma, surpreendentemente, que há efeitos que não têm causa. Vocês podem não acreditar, mas a ciência diz isto: há umas coisas acontecendo por aí pelas quais não podemos responsabilizar ninguém. É igualzinho ao desastre atual de nossa economia: ninguém no Governo tem nada a ver com isto. Mas eu havia dito que havia duas coisas que me preocupavam. A primeira era o significado da frase de Gilberto Amado. E a segunda é que o pessoal dos anos 70 para cá não tem a menor noção de quem foi Gilberto Amado. Não apenas ele, mas todos aqueles personagens que povoaram nosso século, muitos dos quais são tema daquele livro do Villaça, o nosso mais vívido memorialista. Revejo Villaça, sentado numa confortável poltrona, lá em Faxinal, fazendo conferência para mais de mil professores, narrando sobre fatos e figuras de nossa política e cultura. Ele, que consegue dar o nome das três amantes oficiais de Bandeira e Drummond e narrar peculiaridades de Getúlio e Lacerda, faria um belo, irônico e amoroso livro de História do Brasil para jovens e leigos. Digo que o pessoal dos anos 70 para cá (tirando sempre o Marco Lucchesi) não sabe nada sobre o presente e o passado deste país e vejo as biografias que surgiram nesta semana: a de Sérgio Porto/ Stanislaw Ponte Preta, feita por Renato Sérgio, e a do próprio Niemeyer, um monumento vivo, esbarrando com a gente nos coquetéis, esquinas e manifestos. É urgente que se faça isto, uma arqueologia do presente, já que nosso passado é duvidoso e do nosso futuro ninguém sabe. Claro que fico assustadíssimo vendo surgir biografias de gente que conheci, pessoas que já viraram mito e vão virando nomes de ruas e praças. Lembra-me o Jaguar entrevistando Alceu Amoroso Lima, e como este falasse com intimidade das figuras do fim do século passado, que ele conhecera, ouviu do humorista: "Puxa, o senhor conheceu um bocado de ruas!". Mas nessa volta ao passado, dei com José Bonifácio. A culpa é do vosso presidente, que andou mencionando para explicar sua tese realmente dialética de que são os conservadores que fazem o Brasil avançar. Pois fui ler José Bonifácio. Ele teve uma bela vida. Gostava de mulheres, comia bem, era contra a escravidão e tinha umas idéias para salvar o Brasil, mas não teve muita chance de pô-las em prática. Paulista, viveu e estudou em Lisboa, Freiburg, Paris, Suécia e Dinamarca. Entendia de ciências e praticava literatura. Preso, acusado de subversão, chegou, no entanto, a ser tutor de Pedro II, mas logo foi demitido. Sua visão realista do Brasil é, às vezes, chocante e atual: "Quando me ponho a refletir no estado e índole atual dos meus naturais (...) não me admiro que sejam maus e corrompidos; admiro-me decerto que não o sejam mais ainda". Ou, então, essa outra pérola: "Falsidade e dissimulação fazem o caráter geral dos brasileiros - curiosos e inquietos, mas não ativos, nem aplicados". A experiência política deixou em José Bonifácio cicatrizes insanáveis: "Fiz mal de aceitar o ministério; fiz ainda pior em fiar-me na palavra de um príncipe - não nasci para ser dissimulado com arte - falso e egoísta. Dizia o que queria fazer a bem da minha pátria, e o que já tinha feito, com que decerto os invejosos temiam do que poderia realizar um dia. Fui ativo e animoso; mas não tive a baixeza de fingir bajulações, ou de suportar perfídias". E, finalmente, esse brasileiro que tinha projetos para uma reforma agrária e projetos de inserção dos negros e índios na vida nacional tinha a intuição de que podia ser mal-entendido até pelos que o mencionassem futuramente: "Haverá muita gente que me citará sem me ter lido: e muitos outros sem me terem entendido". |