20/01/98 Enquanto escuto o último tiroteio na favela ao lado, recebo de Alberto Dines, que criou na Internet o vigilante "Observatório da Imprensa", um artigo publicado no "The Economist", de Londres, intitulado "Injustiça poética"; um artigo tão instigante que Daniel Piza o republicou na seção de cultura da "Gazeta Mercantil". Vejam só: "The Economist" e a "Gazeta", jornais voltados para a política econômica, falando de economia poética. O autor anônimo daquele ensaio fala de um paradoxo: ao mesmo tempo em que, de um lado, parece haver um desprestígio editorial e mercadológico dos poetas, por outro lado, "Len Fulton, da Dustbooks, que publica a 'Small Press Review', recebe livros de 300 novas pequenas editoras e outras 300 novas revistas todos os meses. Muitas pequenas editoras não sobrevivem por muito tempo. Mas mais de 1.400 revistas e 800 pequenas editoras duram o tempo suficiente para chegar ao 'Catálogo de Editoras de Poesia' bienal de Fulton.". Nota-se que quadruplicou o número de cursos de criação literária nos Estados Unidos. Hoje são 285 universidades com 11 mil estudantes nessa área, a metade dedicada à poesia. Há mais de 200 festivais de poesia de cowboys nos Estados Unidos e viraram moda, recentemente, uns torneios poéticos onde dois poetas se desafiam, em nove rounds, lendo um poema cada um, até o confronto de um poema improvisado no final. Quem ganha leva um cinturão de peso-pesado, como nas lutas de boxes. E as pessoas pagam até US$ 20 para assistir a esse pugilato poético. Vejam que coincidência. E quando as coincidências começam a coincidir muito deixam de ser simples coincidência para serem sintomas. Isto tanto com os tiroteios quanto com a poesia. Nesses dias recebi de Alberto Carvalho - um intelectual finíssimo lá de Aracaju, que tem coleções de revistas raras como a "Senhor" e que adquire qualquer livro bom que surja em qualquer parte - recebi, repito, um CD intitulado "A voz, o poema", com obras de 35 poetas sergipanos. Sim, senhores, de Sergipe. E embora em matéria de Nordeste, como Chirac e Reagan, que trocam o presidente do Brasil pelos do México e da Bolívia, troquemos Aracaju por Maceió ou Natal, eu lhes garanto: a poesia está viva e muito bem, lá em Sergipe. Estou no meu escritório, diante do crepúsculo. Já escutei o tiroteio das cinco e, antes que comece o tiroteio da sete na favela ao lado, deixo fluir verdades na boca da noite e começo a ouvir vozes desse CD de poesias que me veio de Sergipe. Uma diz: "Um louco colhe amoras amarelas na varanda do hospício antes que um guarda com boca de dragão descerre a cortina da noite". Quantas mulheres neste disco! Que bom! Uma delas revela que, enquanto preparava a comida da família, "só tia Ester sabia pôr compressas na própria dor". E outra voz de homem acrescenta: "Quando o dia chegou, com suas aves peraltas na lapela, a cidade sorriu acanhada, dois poetas marrons assoaram o nariz". Mas o poema termina com essa frase irônica e problemática: "Os poetas não devem ser levados a sério". Se não devem ser levados a sério, por que "The Economist" e a "Gazeta Mercantil" estão preocupados com a poesia? E se a poesia é dispensável, porque há milhares de anos milhões de pessoas a praticam, e agora ela chegou airosamente também à Internet? Alguns de vocês já ouviram falar de Soares Feitosa. Com uma pertinácia rara, alheio às convenções dos grupinhos literários, ele está colocando na Internet não só a poesia de poetas vivos, mas todo Camões, Augusto dos Anjos e outros tantos, e está fazendo sozinho o que entidades governamentais e universidades não fazem. No artigo do "The Economist", no entanto, faltou analisar isto: a invasão da Internet por parte dos poetas. Estão eles passando por cima das editoras e livrarias, unindo o que há de mais primitivo e tribal ao que há de mais avançado tecnologicamente. Há um mistério com a poesia, vocês sabem. E quando havia no país não só menos tiroteio, mas menos cronistas e mais crônica, Rubem Braga fez uma intitulada "O mistério da poesia", tentando entender por que o verso do colombiano Aurélio Arturo, "Trabajar era bueno en el sur, cortar los arboles, hacer canoas de los troncos", não lhe saía da cabeça e de onde vinha a sua poesia. Em 1962 - quando 99% de vocês não haviam nascido, publiquei, como estudante, meu primeiro livrinho, "O desemprego do poeta" - que tinha tudo a ver com o que se disse antes. Lá anotava uma frase de João Cabral, nos anos 40, que dizia que os poetas deveriam se utilizar da tecnologia da época: o rádio. Infelizmente ele não a utilizou. Depois veio a televisão. De minha parte, experimentei o rádio e a TV, sobretudo quando Dilea Frate e Alice Maria ousadamente me aliciaram para tal. Hoje o CD e a Internet são dois instrumentos que caíram nas mãos dos poetas. Acabo de receber uma antologia de poetas de Maui - uma daquelas ilhas perdidas no Pacífico - e, de Juiz de Fora, Iacyr Freitas promete-me um CD. De Brasília, chega-me uma nova e promissora revista dedicada à tradução de poetas estrangeiros e divulgação de brasileiros, "Gargula". Entrementes, ouço formidáveis tiroteios na favela ao lado. Há uma semana que não nos deixam dormir e saímos à rua com a alma agachada, humilhados. Minha vizinha mostra-me a bala que caiu no seu quarto depois de varar a esquadria de alumínio e ricochetear pelas paredes fazendo buracos e quebrando quadros. E do disco de poesia saí uma voz que diz: "Um dia adormeci cansado de tudo, quando acordei, Deus e o circo não estavam mais na minha cidade.". |