06/10/98 Em Nova York comprei um relógio fake do Calvin Klein, na Cannal Street. É lindo e funciona maravilhas. Custou US$ 10. Comprei por curiosidade lúdica e como guerrilha estética. Não pretendo passar gato por lebre. Senão não estaria escrevendo isto. Poderia ter comprado o original, custa US$ 100. Mas nunca fui de usar grifes, sejam elas de que espécie forem, objetos ou idéias. E a pergunta inicial que aqui surge, agora que abriram mais uma Bienal lá em São Paulo, é esta: que relação haveria entre os objetos fake da Cannal Street e a peça ‘‘Art’’ que assisti na Broadway? ‘‘Art’’ (que acabo de saber está sendo montada no Brasil por Mauro Rasi) é uma peça da francesa Yasmina Reza, centrada na discussão entre três amigos a respeito de uma tela totalmente branca que um deles comprou por US$ 200 mil. O proprietário dessa obra de arte apresenta-a a um amigo, esperando que ele veja naquela superfície branca tantas metafísicas e significados quantos os que os marchands e os críticos dizem que ali existem. O amigo olha o quadro atentamente e conclui: ‘‘This is a white piece of shit’’, ou seja, isto não é nada, é uma merdinha branca, e não acredita que o amigo tenha pago aquela fortuna pelo engodo. Eles se envolvem numa discussão, um terceiro amigo é convocado a opinar. Este fica em cima do muro, como se a peça mostrasse um personagem a favor, outro contra e outro nem contra nem a favor, deixando para o público uma espécie de ‘‘você decide’’. A peça seria uma chatura se fosse só uma discussão estética. O espetáculo mostra, no entanto, como a relação dos três entra em crise a partir daquela ‘‘white piece of shit’’. Se entrasse em cogitações estéticas, a peça teria que lembrar que, no princípio do século, Malevitch, depois de ter feito pintura figurativa, chegou a pintar quadros só azuis, vermelhos, etc. até chegar à série ‘‘Branco sobre branco’’. Ou seja, aquela novidade é velha. A peça de Yasmina é uma metáfora do que ocorreu com a arte no século XX. É a tela branca de ‘‘Art’’ um quadro fake, como o relógio de Calvin Klein que comprei não por US$ 200 mil, mas por US$ 10 dólares, e ostento criticamente? Vou ao Whitney Museum ver a retrospectiva do pintor americano de origem russa, Mark Rothko. Hoje é politicamente correto ficar extasiado diante de seus quadros, onde ele dispõe, geralmente, três blocos de cores. Alguns quadros de Rothko têm cores serenas e se ajustariam às salas de quem quer obras com cores apropriadas para decorar suas mansões. Rothko chegou a pintar quadros totalmente pretos, como se estivesse produzindo para a peça de Yasmina ou refazendo a trajetória de Malevitch. No mesmo museu descubro bons pintores americanos, como Bob Thompson, Ralston Crawfrod, Charles Demuth e Elsie Driggs. Esses últimos, nos anos 30, profetizam a ‘‘pop art’’. E constato nos detalhes dos quadros de Edward Hopper aquele jogo de manchas e o colorismo que Rothko perdidamente procurava em seus telões. No Modern Art Museum (Moma) estava indo ver a retrospectiva de Bonnard - pintor que encontrava o que procurava -, quando passo por aquela roda de bicicleta de Duchamp. A arte e o fake (até quando continuará a ser politicamente correto gostar de Duchamp?). No Moma, ainda, uma porção de bolas brancas no chão de corredor prenunciam instalações da japonesa Yayoi Husama. Se fossem azuis, alteraria alguma coisa? Se retirassem dali uma ou 15 faria diferença? Vou ao Metropolitan Museum rever certos quadros como se visita um amigo, e no seu acervo detenho-me diante da exposição ‘‘De Van Eyck a Bruegel’’ Ah! esses flamengos, já antes de Van Gogh sabiam de tudo. Dez centímetros de uma tela de Hans Menling tem mais arte que todos os quadros, ainda que bons para decoração, de Rothko e outros que tais. Vejo um quadro de Ghent Marten, ‘‘Virgem e o Menino com Santo’’ (1480). É ilustrativo: há duas figuras raspadas na tela, porque em seu lugar ia-se colocar o retrato de Henry VIII e Elizabeth de York. Por isso a gente pode ver o desenho preparatório. Naquele rascunho, tem mais arte e técnica que nos quadros que Duchamp tentou pintar, quando acreditava em pintura. Nesse teatro de enganos, decido ver uma peça intitulada ‘‘Blue Man’’ Ela não fala de antropofagia, mas é uma devoração crítica, pois transforma o happening em algo que transcende a gratuidade pura, sendo ao mesmo tempo circo, cinema mudo, pastelão, mímica, teatro interativo, instalação e show tecnológico. De modo inteligente faz a crítica da modernidade, incluindo as artes plásticas. Várias telas são pintadas com a boca e com o corpo durante o show e a nenhuma dão o preço de US$ 200 mil, embora sejam até mais interessantes que uma ‘‘white piece of shit’’. O espetáculo é no Astor Place, no Village, onde a geração hippie pervagou. Seria uma das linhas do teatro do século XXI? Como efeito, alia o que há de mais primitivo (o tocar dos tambores de onde saem luzes e tintas coloridas) ao que há de mais tecnológico (mostrando o que ocorre no palco, nos bastidores, fundindo platéia e palco, teatro e rua). Esse teatro lida criticamente com o real e com o fake. Olho o meu relógio fake e vejo que é hora de acabar essa crônica. Curiosamente, ele marca a hora certa. Esse é o problema. |