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O DIPLOMÁTICO
(Machado de Assis)
A preta entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa
rodeada de gente, e falou baixinho à senhora. Parece
que lhe pedia alguma cousa urgente, porque a senhora levantou-se
logo.
- Ficamos esperando, D. Adelaide?
- Não espere, não, Sr. Rangel; vá continuando,
eu entro depois. Rangel era o leitor do livro de sortes. Voltou
a página, e recitou um título: "Se alguém
lhe ama em segredo." Movimento geral: moças e
rapazes sorriram uns para os outros. Estamos na noite de S.
João de 1854, e a casa é na Rua das Mangueiras.
Chama-se João o dono da casa, João Viegas, e
tem uma filha, Joaninha. Usa-se todos os anos a mesma reunião
de parentes e amigos, arde uma fogueira no quintal, assam-se
as batatas do costume, e tiram-se sortes. Também há
ceia, às vezes dança, e algum jogo de prendas,
tudo familiar. João Viegas é escrivão
de uma vara cível da corte.
- Vamos. Quem começa agora? disse ele. Há de
ser D. Felismina. Vamos ver se alguém lhe ama em segredo.
D. Felismina sorriu amarelo. Era uma boa quarentona, sem prendas
nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das pálpebras
devotas. Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Felismina
era o modelo acabado daquelas criaturas indulgentes e mansas,
que parecem ter nascido para divertir os outros. Pegou e lançou
os dados com um ar de complacência incrédula.
Número dez, bradaram duas vozes. Rangel desceu os olhos
ao baixo da página, viu a quadra correspondente ao
número, e leu-a: dizia que sim, que havia uma pessoa,
que ela devia procurar domingo, na igreja, quando fosse à
missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina que
sorriu com desdém, mas interiormente esperançada.
Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte
de cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava
os óculos e limpava-os com muito vagar na ponta do
lenço de cambraia, - ou por ser cambraia, - ou por
exalar um fino cheiro de bogari. Presumia de grande maneira,
e ali chamavam-lhe "o diplomático".
- Ande, seu diplomático, continue.
Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido
em percorrer a fila de moças que ficava do outro lado
da mesa. Namorava alguma? Vamos por partes.
Era solteiro, por obra das circunstâncias, não
de vocação. Em rapaz teve alguns namoricos de
esquina, mas com o tempo apareceu-lhe a comichão das
grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celibato até
os quarenta e um anos, em que o vemos. Cobiçava alguma
noiva superior a ele e à roda em que vivia, e gastou
o tempo em esperá-la. Chegou a freqüentar os bailes
de um advogado célebre e rico, para quem copiava papéis,
e que o protegia muito. Tinha nos bailes a mesma posição
subalterna do escritório; passava a noite vagando pelos
corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras,
devorando com os olhos uma multidão de espáduas
magníficas e talhes graciosos. Invejava os homens,
e copiava-os. Saía dali excitado e resoluto. Em falta
de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver
algumas das primeiras moças da cidade. Também
era certo no saguão do paço imperial, em dia
de cortejo, para ver entrar as grandes damas e as pessoas
da corte, ministros, generais, diplomatas, desembargadores,
e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens. Voltava da
festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente,
capaz de arrebatar de um lance a palma da fortuna.
O pior é que entre a espiga e a mão, há
o tal muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar
muros. De imaginação fazia tudo, raptava mulheres
e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo mesmo,
ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Chegou
ao extremo de aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro,
ao voltar da parada no Largo do Paço; imaginou para
isso uma revolução, em que derramou algum sangue,
pouco, e uma ditadura benéfica, em que apenas vingou
alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá fora, porém,
todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era
pacato e discreto.
Aos quarenta anos desenganou-se das ambições;
mas a índole ficou a mesma, e, não obstante
a vocação conjugal, não achou noiva.
Mais de uma o aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas
à força de circunspecção. Um dia,
reparou em Joaninha, que chegava aos dezenove anos e possuía
um par de olhos lindos e sossegados, - virgens de toda a conversação
masculina. Rangel conhecia-a desde criança, andara
com ela ao colo, no Passeio Público, ou nas noites
de fogo da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro lado,
as relações dele na casa eram tais, que podiam
facilitar-lhe o casamento; e, ou este ou nenhum outro.
Desta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha;
bastava esticar o braço com algum esforço, para
arrancá-la do pé. Rangel andava neste trabalho
desde alguns meses. Não esticava o braço, sem
espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém,
e, se vinha alguém, disfarçava e ia-se embora.
Quando chegava a esticá-lo, acontecia que uma lufada
de vento meneava a espiga ou algum passarinho andava ali nas
folhas secas, e não era preciso mais para que ele recolhesse
a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão entranhava-se-lhe,
causa de muitas horas de angústia, a que seguiam sempre
melhores esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira
carta de amor, disposto a entregá-la. Já teve
duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre espaçando;
a noite é tão comprida! Entretanto, continua
a ler as sortes, com a solenidade de um ángur.
Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou falam
ao mesmo tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família,
anda à roda da mesa com uma pena, fazendo cócegas
nas orelhas das moças. João Viegas está
ansioso por um amigo, que se demora, o Calisto. Onde se meteria
o Calisto?
- Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas.
Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a
ceia. Toda a gente emigrou, e andando é que se podia
ver bem como era graciosa a filha do escrivão. Rangel
acompanhou-a com grandes olhos namorados. Ela foi à
janela, por alguns instantes, enquanto se preparava um jogo
de prendas, e ele foi também; era a ocasião
de entregar-lhe a carta.
Defronte, numa casa grande, havia um baile, e dançava-se.
Ela olhava, ele olhou também. Pelas janelas viam passar
os pares, cadenciados, as senhoras com as suas sedas e rendas,
os cavalheiros finos e elegantes, alguns condecorados. De
quando em quando, uma faísca de diamantes, rápida,
fugitiva, no giro da dança. Pares que conversavam,
dragonas que reluziam, bustos de homens inclinados, gestos
de leque, tudo isso em pedaços, através das
janelas, que não podiam mostrar todo o salão,
mas adivinhava-se o resto. Ele ao menos, conhecia tudo, e
dizia tudo à filha do escrivão. O demônio
das grandezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas
arlequinadas no coração do nosso homem, e ei-lo
que tenta seduzir também o coração da
outra.
- Conheço uma pessoa que estaria ali muito bem, murmurou
o Rangel.
E Joaninha, com ingenuidade:
- Era o senhor.
Rangel sorriu lisonjeado, e não achou que dizer. Olhou
para os lacaios e cocheiros, de libré, na rua, conversando
em grupos ou reclinados no tejadilho dos carros. Começou
a designar carros: este é do Olinda, aquele é
do Maranguape; mas aí vem outro, rodando, do lado da
Rua da Lapa, e entra na Rua das Mangueiras. Parou defronte:
salta o lacaio, abre a portinhola, tira o chapéu e
perfila-se. Sai de dentro uma calva, uma cabeça, um
homem, duas comendas, depois uma senhora ricamente vestida;
entram no saguão, e sobem a escadaria, forrada de tapete
e ornada embaixo com dous grandes vasos.
- Joaninha, Sr. Rangel...
Maldito jogo de prendas! Justamente quando ele formulava,
na cabeça, uma insinuação a propósito
do casal que subia, e ia assim passar naturalmente à
entrega da carta... Rangel obedeceu, e sentou-se defronte
da moça. D. Adelaide, que dirigia o jogo de prendas,
recolhia os nomes; cada pessoa devia ser uma flor. Está
claro que o tio Rufino, sempre gaiato, escolheu para si a
flor da abóbora. Quanto ao Rangel, querendo fugir ao
trivial, comparou mentalmente as flores, e quando a dona da
casa lhe perguntou pela dele, respondeu com doçura
e pausa:
- Maravilha, minha senhora.
- O pior é não estar cá o Calisto! suspirou
o escrivão.
- Ele disse mesmo que vinha?
- Disse; ainda ontem foi ao cartório, de propósito,
avisar-me de que viria tarde, mas que contasse com ele; tinha
de ir a uma brincadeira na Rua da Carioca...
- Licença para dous! bradou urna voz no corredor.
- Ora graças! está aí o homem!
João Viegas foi abrir a porta; era o Calisto, acompanhado
de um rapaz estranho, que ele apresentou a todos em geral:
- "Queirós, empregado na Santa Casa; não
é meu parente, apesar de se parecer muito comigo; quem
vê um, vê outro..." Toda a gente riu; era
uma pilhéria do Calisto, feio como o diabo, - ao passo
que o Queirós era um bonito rapaz de vinte e seis a
vinte e sete anos, cabelo negro, olhos negros e singularmente
esbelto. As moças retraíram-se um pouco; D.
Felismina abriu todas as velas.
- Estávamos jogando prendas, os senhores podem entrar
também, disse a dona da casa. Joga, Sr. Queirós?
Queirós respondeu afirmativamente e passou a examinar
as outras pessoas. Conhecia algumas, e trocou duas ou três
palavras com elas. Ao João Viegas disse que desde muito
tempo desejava conhecê-lo, por causa de um favor que
o pai lhe deveu outrora, negócio de foro. João
Viegas não se lembrava de nada, nem ainda depois que
ele lhe disse o que era; mas gostou de ouvir a notícia,
em público, olhou para todos, e durante alguns minutos
regalou-se calado.
Queirós entrou em cheio no jogo. No fim de meia hora,
estava familiar da casa. Todo ele era ação,
falava com desembaraço, tinha os gestos naturais e
espontâneos. Possuía um vasto repertório
de castigos para jogo de prendas, cousa que encantou a toda
a sociedade, e ninguém os dirigia melhor, com tanto
movimento e animação, indo de um lado para outro,
concertando os grupos, puxando cadeiras, falando às
moças, como se houvesse brincado com elas em criança.
- D. Joaninha aqui, nesta cadeira; D. Cesária, deste
lado, em pé, e o Sr. Camilo entra por aquela porta...
Assim, não: olhe, assim de maneira que...
Teso na cadeira, o Rangel estava atônito. Donde vinha
esse furacão? E o furacão ia soprando, levando
os chapéus dos homens, e despenteando as moças,
que riam de contentes: Queirós daqui, Queirós
dali, Queirós de todos os lados. Rangel passou da estupefação
à mortificação. Era o cetro que lhe caía
das mãos. Não olhava para o outro, não
se ria do que ele dizia, e respondia-lhe seco. Interiormente,
mordia-se e mandava-o ao diabo, chamava-o bobo alegre, que
fazia rir e agradava, porque nas noites de festa tudo é
festa. Mas, repetindo essas e piores causas, não chegava
a reaver a liberdade de espírito. Padecia deveras,
no mais íntimo do amor-próprio; e o pior é
que o outro percebeu toda essa agitação, e o
péssimo é que ele percebeu que era percebido.
Rangel, assim como sonhava os bens, assim também as
vinganças. De cabeça, espatifou o Queirós;
depois cogitou a possibilidade de um desastre qualquer, uma
dor bastava, mas cousa forte, que levasse dali aquele intruso.
Nenhuma dor, nada; o diabo parecia cada vez mais lépido,
e toda a sala fascinada por ele. A própria Joaninha,
tão acanhada, vibrava nas mãos de Queirós,
como as outras moças; e todos, homens e mulheres, pareciam
empenhados em servi-lo. Tendo ele falado em dançar,
as moças foram ter com o tio Rufino, e pediram-lhe
que tocasse uma quadrilha na flauta, uma só, não
se lhe pedia mais.
- Não posso, dói-me um calo.
- Flauta? bradou o Calisto. Peçam ao Queirós
que nos toque alguma cousa, e verão o que é
flauta... Vai buscar a flauta, Rufino. Ouçam o Queirós.
Não imaginam como ele é saudoso na flauta!
Queirós tocou a Casta Diva. Que cousa ridícula!
dizia consigo o Rangel; - uma música que até
os moleques assobiam na rua. Olhava para ele, de revés,
para considerar se aquilo era posição de homem
sério; e concluía que a flauta era um instrumento
grotesco. Olhou também para Joaninha, e viu que, como
todas as outras pessoas, tinha a atenção no
Queirós, embebida, namorada dos sons da música,
e estremeceu, sem saber porquê. Os demais semblantes
mostravam a mesma expressão dela, e, contudo, sentiu
alguma cousa que lhe complicou a aversão ao intruso.
Quando a flauta acabou, Joaninha aplaudiu menos que os outros,
e Rangel entrou em dúvida se era o habitual acanhamento,
se alguma especial comoção... Urgia entregar-lhe
a carta.
Chegou a ceia. Toda a gente entrou confusamente na sala, e
felizmente para o Rangel, coube-lhe ficar defronte de Joaninha,
cujos olhos estavam mais belos que nunca e tão derramados,
que não pareciam os do costume. Rangel saboreou-os
caladamente, e reconstruiu todo o seu sonho que o diabo do
Queirós abalara com um piparote. Foi assim que tornou
a ver-se, ao lado dela, na casa que ia alugar, berço
de noivos, que ele enfeitou com os louros da imaginação.
Chegou a tirar um prêmio na loteria e a empregá-lo
todo em sedas e jóias para a mulher, a linda Joaninha,
- Joaninha Rangel, - D. Joaninha Rangel, - D. Joana Viegas
Rangel, - ou D. Joana Cândida Viegas Rangel... Não
podia tirar o Cândida...
- Vamos, uma saúde, seu diplomático... faça
uma saúde daquelas...
Rangel acordou; a mesa inteira repetia a lembrança
do tio Rufino; a própria Joaninha pedia-lhe uma saúde,
como a do ano passado. Rangel respondeu que ia obedecer; era
só acabar aquela asa de galinha. Movimento, cochichos
de louvor; D. Adelaide, dizendo-lhe uma moça que nunca
ouvira falar o Rangel:
- Não? perguntou com pasmo. Não imagina; fala
muito bem, muito explicado, palavras escolhidas, e uns bonitos
modos...
Comendo, ia ele dando rebate a algumas reminiscências,
frangalhos de idéias, que lhe serviam para o arranjo
das frases e metáforas. Acabou e pôs-se de pé.
Tinha o ar satisfeito e cheio de si. Afinal, vinham bater-lhe
à porta. Cessara a farandulagem das anedotas, das pilhérias
sem alma, e vinham ter com ele para ouvir alguma cousa correta
e grave. Olhou em derredor, viu todos os olhos levantados,
esperando. Todos não; os de Joaninha enviesavam-se
na direção do Queirós, e os deste vinham
esperá-los a meio caminho, numa cavalgada de promessas.
Rangel empalideceu. A palavra morreu-lhe na garganta; mas
era preciso falar, esperavam por ele, com simpatia, em silêncio.
Obedeceu mal. Era justamente um brinde ao dono da casa e à
filha. Chamava a esta um pensamento de Deus, transportado
da imortalidade à realidade, frase que empregara três
anos antes, e devia estar esquecida. Falava também
do santuário da família, do altar da amizade,
e da gratidão, que é a flor dos corações
puros. Onde não havia sentido, a frase era mais especiosa
ou retumbante. Ao todo, um brinde de dez minutos bem puxados,
que ele despachou em cinco, e sentou-se. Não era tudo.
Queirós levantou-se logo, dous ou três minutos
depois para outro brinde, e o silêncio foi ainda mais
pronto e completo. Joaninha meteu os olhos no regaço,
vexada do que ele iria dizer; Rangel teve um arrepio.
- O ilustre amigo desta casa, o Sr. Rangel, - disse Queirós,
- bebeu às duas pessoas cujo nome é o do santo
de hoje; eu bebo àquela que é a santa de todos
os dias, a D. Adelaide.
Grandes aplausos aclamaram esta lembrança, e D. Adelaide,
lisonjeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha
não ficou em cumprimentos. - Mamãe! mamãe!
exclamou, levantando-se; e foi abraçá-la e beijá-la
três e quatro vezes; - espécie de carta para
ser lida por duas pessoas.
Rangel passou da cólera ao desânimo, e, acabada
a ceia, pensou em retirar-se. Mas a esperança, demônio
de olhos verdes, pediu-lhe que ficasse, e ficou. Quem sabe?
Era tudo passageiro, causas de uma noite, namoro de S. João;
afinal, ele era amigo da casa, e tinha a estima da família;
bastava que pedisse a moça, para obtê-la. E depois
esse Queirós podia não ter meios de casar. Que
emprego era o dele na Santa Casa? Talvez alguma cousa reles...
Nisto, olhou obliquamente para a roupa de Queirós,
enfiou-se-lhe pelas costuras, escrutou o bordadinho da camisa,
apalpou os joelhos das calças, a ver-lhe o uso, e os
sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas provavelmente
gastava tudo consigo, e casar era negócio sério.
Podia ser também que tivesse mãe viúva,
irmãs solteiras... Rangel era só.
- Tio Rufino, toque uma quadrilha.
- Não posso; flauta depois de comer faz indigestão.
Vamos a um víspora. Rangel declarou que não
podia jogar, estava com dor de cabeça; mas Joaninha
veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de sociedade.
- "Meia coleção para o senhor, e meia para
mim", disse ela, sorrindo; ele sorriu também e
aceitou. Sentaram-se ao pé um do outro. Joaninha falava-lhe,
ria, levantava para ele os belos olhos, inquieta, mexendo
muito a cabeça para todos os lados. Rangel sentiu-se
melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem.
Ia marcando à toa, esquecendo alguns números,
que ela lhe apontava com o dedo, - um dedo de ninfa, dizia
ele consigo; e os descuidos passaram a ser de propósito,
para ver o dedo da moça, e ouvi-la ralhar: "O
senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o
nosso dinheiro..."
Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas
não estando declarados, era natural que ela a recebesse
com espanto e estragasse tudo; cumpria avisá-la. Olhou
em volta da mesa: todos os rostos estavam inclinados sobre
os cartões, seguindo atentamente os números.
Então, ele inclinou-se à direita, e baixou os
olhos aos cartões de Joaninha, como para verificar
alguma cousa.
- Já tem duas quadras, cochichou ele.
- Duas, não; tenho três.
- Três, é verdade, três. Escute...
- E o senhor?
- Eu duas.
Que duas o quê? São quatro.
Eram quatro; ela mostrou-lhas inclinada, roçando quase
a orelha pelos lábios dele; depois, fitou-o rindo e
abanando a cabeça: "O senhor! o senhor!"
Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era tão
doce, e a expressão tão amiga, que ele esqueceu
tudo, agarrou-a pela cintura, e lançou-se com ela na
eterna valsa das quimeras. Casa, mesa, convivas, tudo desapareceu,
como obra vã da imaginação, para só
ficar a realidade única, ele e ela, girando no espaço,
debaixo de um milhão de estrelas, acesas de propósito
para alumiá-los.
Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram todos para
a janela ver sair os convidados do baile fronteira. Rangel
recuou espantado. Viu um aperto de dedos entre o Queirós
e a bela Joaninha. Quis explicá-lo, eram aparências,
mas tão depressa destruía uma como vinham outras
e outras, à maneira das ondas que não acabam
mais. Custava-lhe entender que uma só noite, algumas
horas bastassem a ligar assim duas criaturas; mas era a verdade
clara e viva dos modos de ambos, dos olhos, das palavras,
dos risos, e até da saudade com que se despediram de
manhã.
Saiu tonto. Uma só noite, algumas horas apenas! Em
casa, aonde chegou tarde, deitou-se na cama, não para
dormir, mas para romper em soluços. Só consigo,
foi-se-lhe o aparelho da afetação, e já
não era o diplomático, era o energúmeno,
que rolava na cama, bradando, chorando como uma criança,
infeliz deveras, por esse triste amor do outono. O pobre-diabo,
feito de devaneio, indolência e afetação,
era, em substância, tão desgraçado como
Otelo, e teve um desfecho mais cruel.
Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em quem ninguém
pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha
ao Queirós, quando este se casou com Joaninha, seis
meses depois.
Nem os acontecimentos, nem os anos lhe mudaram a índole.
Quando rompeu a guerra do Paraguai, teve idéia muitas
vezes de alistar-se como oficial de voluntários; não
o fez nunca; mas é certo que ganhou algumas batalhas
e acabou brigadeiro.
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