Maconha



Era para ser uma festa. Era para ser o triunfo da pesquisa médica em seu esforço de separar, cientificamente, o que é mito do que é fato sobre os efeitos da Cannabis, conhecida como maconha. Mas o relatório sobre a droga publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), das Nações Unidas, teve uma outra recepção. A entidade começou a trabalhar em 1993. Convocou os maiores especialistas do mundo e incumbiu-os de, nos cinco anos seguintes, examinar os rsultados de centenas de pesquisas. Finalmente, em dezembro do ano passado, as conclusões dessa equipe foram reunidas num documento de 49 páginas, publicado sob o título Cannabis: uma Perspectiva de Saúde e Agenda de Pesquisa. Surgia o mais completo relatório produzido sobre a maconha nos últimos quinze anos.
Aí, o que era para ser uma festa virou guerra política. O trabalho da OMS mal foi lido. Até o início do mês de março, pouco mais de 500 cidadãos, nos cinco continentes, tinham tido acesso a ele. Quase não houve repercussão. O motivo é que seu conteúdo foi encoberto pela campanha dos que pregam a legalização da droga. Nada contra a polêmica, que pode até ser saudável. Mas o fato é que, no caso, ela fez sombra sob o texto da OMS e favoreceu a onda de desinformação.
A confusão chegou ao ápice quando a revista semanal inglesa New Scientist, na sua edição de 21 de fevereiro, pôs em sua capa uma reportagem explosiva em que acusava a OMS de ter suprimido do documento, por motivos políticos, um capítulo mostrando que a maconha seria menos perniciosa do que o álcool e o tabaco. A OMS admitiu a supressão do capítulo, mas negou os motivos. Declarou que o texto comparando as três drogas fora excluído por prudência, pois os estudos nos quais ele se apoiava não eram conclusivos. De fato, isso só levaria a mais confusão.
Tanto é que a confusão, com capítulo ou sem capítulo, alastrou-se. E desviou, ainda mais, a atenção do público daquilo que, afinal, era o mais importante - o próprio relatório da OMS. Quem foi apanhado de surpresa pela guerra de versões pode ter ficado desorientado. E pode até estar pensando que a maconha nem é tão perigosa. Mas ela faz mal, sim, e cria riscos sérios para a saúde.
Quem tem dúvida, é só consultar o relatório. "Ele confirma diversas consequências nocivas comumente apontadas em relação à maconha", resume a psicobióloga brasileira Maristela Monteiro, da OMS, uma das responsáveis pela versão final do texto. "E além disso aponta novos perigos." Ao mesmo tempo, o trabalho desmontou mitos antigos, livrando a droga de acusações que ainda hoje se escutam. A verdade é que não, a maconha não reduz o número de espermatozóides nos homens, não induz à violência nem tira a disposição para o trabalho e para o estudo.
Nas páginas seguintes, a SUPER vai esmiuçar o conteúdo do relatório pra você. Os resultados apresentados pela OMS ajudam, e muito, a reverter a maré de dúvidas e de mistificações em torno da droga. Para começar, admite que ela possa ter aplicações medicinais (e sobre isso a SUPER já publicou uma reportagem de capa, em agosto de 1995). Mas aponta, com precisão científica, os males que o uso indiscriminado dessa substância pode causar. Não são poucos. E não são suaves. É bom você se informar a respeito e escapar da cortina de fumaça - que ainda esconde muitos riscos.


A capacidade de aprender e de raciocinar e a memória diminuem. VERDADE: Há somente três anos, parecia não haver sinais de que a droga pudesse afetar as atividades cerebrais mais refinadas, aquelas que os especialistas chamam de funções cognitivas, as ligadas ao processo de conhecimento. Uma das novidades dos relatórios é que agora há prova disso. Quem fuma regularmente por muitos anos tem dificuldade para organizar grandes quantidades de informações complicadas. Num tipo de teste, um cidadão empilha cartas segundo regras que o paciente precisa deduzir, apenas observando o "jogo". Com o tempo, as regras vão sendo mudadas. Quem não fuma, deixa de perceber cinco de cada cem mudanças de regra. Fumantes pesados cometem o mesmo erro oito vezes. "A diferença é sutil", afirma o relatório. "Mas é ratificada por novos estudos, realizados entre 1995 e 1996."
Os neurônios ficam estragados.MENTIRA: A idéia de que a maconha afeta as funções do cérebro porque causa algum tipo de dano aos neurônios não está comprovada. As pesquisas dão resultados ambíguos. Certas imagens das células cerebrais de ratos , obtidas por tomógrafo, parecem ligeiramente deformadas, especialmente nos pontos em que elas tocam umas nas outras, chamadas sinapses. Mas em outras experiências não se vê alteração nenhuma. Logo, não é possível tirar uma conclusão definitiva. Diante da relevância do assunto, o relatório da OMS sugere que se façam estudos mais aprofundados sobre ele.
Quem fuma muito pode acabar caindo na dependência.VERDADE: Grande parte dos usuários pesados, desses que fumam diariamente durante meses, acaba se viciando. As estatísticas indicam que até metade dos fumantes desse tipo perdem o controle sobre o hábito e precisam de tratamento para se recuperar. Entre os que não conseguem a cura, muitos apresentam sintomas que agravam a dependência. Ficam desmotivados para qualquer coisa, tornam-se menos produtivos em suas atividades, sofrem de depressão e têm a auto-estima abalada.
Então, todos ficam viciados.MENTIRA: Apenas fumantes pesados caem na dependência, e eles, de acordo com os dados do relatório, são cerca de 10% de todos os que experimentam a droga. Dito de outra maneira, o vício nem é inevitável, nem acontece com frequência. "Fumar é um hábito de adolescentes", lê-se no relatório. Tanto nos Estados Unidos como na Europa, eles representam a grande maioria dos usuários - perto de 70% do total - e a proporção de adultos não cresce.
Quem usa maconha pode partir para drogas mais pesadas.VERDADE: Meninos e meninas, especialmente nos últimos anos, têm, sim, seguido essa trilha. "Nota-se que a experiência com a canabis precede o interesse por outras substâncias", diz o documento. São as colas de sapateiro, as anfetaminas, a cocaína e a heroína. Os especialistas também escrevem que, "quanto mais cedo se começa a fumar, maior é o envolvimento com a maconha". E concluem que, entre os jovens nessa situação, é maior a possibilidade de contato com coisas mais perigosas.
Sempre que o usuário procura outras drogas, a culpa é da maconha. MENTIRA: Mas atenção: apesar de ser verdade qe muitos jovens ampliam o coquetel de drogas depois de experimentar a maconha, isso não quer dizer que a culpa caiba exclusivamente a ela. O própio hábito de recorrer à canabis pode ter tido causa mais profunda, como problemas familiares, falta de perspectiva e assim por diante. Aí, o fumante de canabis amplia o seu repertório de drogas pelos mesmos motivos. Essa, aliás, é a explicação preferida dos pesquisadores reunidos pela OMS. Como reforço, eles lembram que "a imensa maioria dos usuários de maconha não usa cocaína e a heroína".
A maconha provoca desatres de trânsito.VERDADE: Essa é uma nova preocupação dos especialistas. Sob a ação da droga, fica mais difícil executar desde tarefas simples, como datilografar, até as de maior responsabilidade, como dirigir um automóvel. Em simulações, motorista que fumaram uma hora antes do teste brecam em hora errada e demoram para reagir aos sinais de trânsito.
O motorista perde totalmente a capacidade de se controlar..MENTIRA: Alguns testes sugerem que o fumante percebe a diminuição da coordenação motora e procura compensar essa deficiência, concentrando-se mais no que está fazendo. Nos desastres de trânsito em que o motorista demonstra ter fumado maconha, é comum ele também ter bebido álcool. Com a mistura, é óbvio que a erva não tem culpa sozinha no cartório.
A fumaça trás danos aos pulmões e está associada ao aparecimento da bronquite. VERDADE: O efeito sobre o aparelho respiratório, em consequência de doses elevadas da erva tóxica, está solidamente comprovado. Aparecem lesões na traquéia, nos brônquios e, em menor intensidade, em algumas células de defesa do organismo chamadas macrófagos alveolares. Os usuários, então ficam um pouco mais vulneráveis do que o resto da população. Especialmente à bronquite obstrutiva crônica.
Causa câncer com certeza.MENTIRA: A fumaça da maconha contém algumas das substâncias do tabaco que estão ligadas ao câncer. E até em maior quantidade. Sabendo disso, os pesquisadores ficaram em estado de alerta ao descobrir tumores malignos no aparelho respiratório de alguns usuários jovens. Mas até agora só o que há é uma desconfiança. Ainda é preciso examinar mais pacientes, pois aqueles em que os tumores foram identificados também consumiam álcool e tabaco. Não há conclusão possível, resume o relatório.
A produção de hormônios sexuais femininos pode ficar reduzida, alterando o ciclo menstrual.VERDADE: Existem indícios de que a droga deixa o organismo com falta de diversas substâncias essenciais à reprodução, entre os quais os hormônios. A carência ocorre durante uma das etapas da menstruação, a chamada fase luteal, e a ovulação demora mais do que demoraria normalmente. Esse efeito ainda não está bem esclarecido nas mulheres porque em alguns exames ele aparece, em outros não. Mas os especialistas reunidos pela OMS estão convencidos de que ele existe, pois, nos testes com ratos e macacos, a queda de produção pôde ser medida com precisão. A conclusão dos pesquisadores é que a ação da maconha sobre o aparelho reprodutor feminino não deve ser menosprezada.
Os homens produzem menos espermatozóides.MENTIRA: Caiu por terra o mito de que os homens que fumam a droga passam a produzir menor quantidade do hormônio testosterona. Essa hipótese, que havia sido levantada nos primeiros estudos sobre o assunto, na década de 70, não se sustenta mais. Também não fica mais de pé a suposição de que o número de espermatozóides diminui. Nesse aspecto, o documento é claro: do ponto de vista dos homens, "não se deve esperar nenhuma consequência significativa para a reprodução".
Fumar durante a gravidez prejudica a criança.VERDADE: É uma das novidades mais assustadoras apontadas pelo relatório. "Usar a droga antes ou durante a gestação pode deixar as crianças mais susceptíveis a certos tipos raros de câncer." Entre os tumores observados, está o da chamada leucemia não-linfoblástica, que contamina o sangue , e o do rabdomiosarcoma, que ataca os tecidos nervosos. Mas ainda não há certeza de que a canabis esteja mesmo associada a esses males porque, se existe alguma outra causa, as pesquisas já feitas não conseguiram detectar. O relatório da OMS declara que é preciso investigar a hipótese mais a fundo. Um outro problema são as criaças que nascem pesando abaixo do normal devido ao contato prévio da mãe com a erva tóxica. Sobre esse ponto quase não restam dúvidas.
O sistema de defesa do organismo fica desorientado.MENTIRA: Diversos estudos médicos, nos últimos anos, avaliaram os danos que a maconha poderia ter sobre o conjunto do sistema imunológico, que protege o organismo dos micróbios. A suposição era que a droga criaria confusão, mobilizando o exército orgânico sem necessidade ou debilitando-o quando fosse preciso contra-atacar. Esses efeitos não foram confirmados. Há mesmo indícios de que o sistema de defesa resiste bem à droga.
As crises de esquizofrenia podem ficar mais fortes nos pacientes que fumam.VERDADE: Como alguns pacientes de esquizofrenia entram em crise pouco tempo depois de fumar, levantou-se a hipótese que a droga poderia estar associada à doença. As pesquisas revelam que a ligação existe. Em algumas situações, nota-se que, se a dose de canabis é grande, cresce também a chance de uma crise.
A erva pode levar o usuário à esquizofrenia.MENTIRA: Não dá para provar que a maconha provoque a doença. O motivo é simples: pode ser que, justamente por terem esse tipo de problema mental, os pacientes desenvolvam propensão ao consumo da erva. Ou seja, é como se o hábito de fumar fosse causado pelo mal, e não o contrário. O resultado das pesquisas nesse campo deve ser considerado inconclusivo por enquanto.

Retirado da Revista Super interessante de abril 98.



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