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Acordamos no meio da noite com um barulho no mato, perto do acampamento. O Deco pegou a lanterna e focou em cima: ratos. Grandes como ratazanas de cidade, porem com a coloração castanha e marron, não cinza como as ratazanas de cidade. Mas não deixavam de ser ratos. O Deco esclareceu que eles São comuns e adoram roubar a comida que fica no chao, mesmo dentro de pacotes de papel ou plastico. Por isso o cuidado de não deixar comida exposta e acondicionar tudo dentro das mochilas em lugar alto. Alem dos ratos, mucuras e quatis também aparecem a noite atras de comida. Nesta mesma noite tambem apareceu macaco da noite. Estava um pouco longe e não dava pra ver muitos detalhes do pelo, apenas os grandes olhos sobressaiam com a luz da lanterna.A noite correu assim, de cochilo em cochilo. No dia seguinte acordei pessimo, com dores fortes nas duas pernas, principalmente nos joelhos. Tentei andar e vi que não seria possível. Chamei o Deco e disse que não teria a menor condição de continuar, e no estado em que estava, sem condições de voltar também. Teriamos que ficar pelo menos mais um dia ali até que a perna pudesse andar novamente. Dobrar os joelhos era uma tarefa impossível. Quando tinha que andar, jogava a perna pra frente me apoiando com a outra. Depois, trocava de perna e jogava a outra. Parecia o Robocop andando. Uma merda e tanto. A obrigação de ficar parado foi uma boa desculpa pra observar as aves. Como em todo lugar, lá também elas eram bem mais ativas nas primeiras horas da manhã. Vi muita coisa nova: um arapacu com o bico meio torto, um pica pau verde e amarelo, uru, jacutinga, mutum, beijaf-lores, chocas e papaformigas, periquitos e vários piprideos, de 3tipos, mudando apenas a cor do alto da cabeca: branco, laranja, azul. Perguntei ao Deco o nome do que tinha a cabeca branca. Ele respondeu: boné branco. Perguntei o nome do que tinha a cabeca laranja: boné laranja. Deduzi que o próximo deveria se chamar boné azul. Acertei! Aviso a quem estiver lendo esta carta que, tanta inteligencia assim, só vao encontrar no Chapolim Colorado. O tal do bonébranco me chamou atenção, não só pelo fato de ser muito manso e bonito, mas por frequentar o acampamento o dia to do atras de uma frutinha vermelha que existia aos montes. Quando fui conferir a tal frutinha, vi que era pimenta. não acreditei: pimenta e da brava. Aquele bichinho de apenas 10 centimetros passava o dia todo comendo pimenta. Proporcionalmente, era como se um homem comesse uns 7 quilos de pimenta por dia, pura, sem nada pra misturar. Num primeiro momento, imaginei como seria o suco gastrico daquele passarinho, forte o bastante pra digerir algo tão picante sem causar danos. Num segundo momento, imaginei como seria o peido daquele passarinho. Deveria ser pior que Valmor, Balao, Carrusca e Gurgel juntos ( todos eles São colegas da Eletronorte, da informatica, e bastante conhecidos pelos gazes que liberam no ar, principalmente nas segundas feiras, depois de um fim de semana a base de cerveja ). Infelizmente, vimos um decimo apenas das aves que escutamos devido a mata densa. Ouviamos com facilidade mas a visão era mais dificil. A grande maioria das aves estavam nas copas, a mais de 30 metros de altura. Somente as aves de meia altura ou terrestrês eram mais facilmente avistadas. Entre os bichos de pelo, alem dos mencionados acima, vimos também jupara, esquilo e muita cutia. Nas horas em que não tinha pássaros, ficava observando o Deco. O cara era mesmo do mato. Tinha uma percepção fantastica de tudo o que estava a sua volta. Qualquer coisa que se movesse ou fizesse algum ruido ele notava. Conhecia muito bem as plantas e sabia o nome de muitas delas ou para o que elas serviam. Eu perguntava o nome e ele falava, embora 10 segundos depois eu já me esquecia do nome. Era tudo nome indígena e soava como se fosse tudo a mesma coisa. Mapuracaia, cararicui, paricati, curirapeca, e outros palavroes. Eu não sabia distinguir, pelo nome, se se tratava de uma arvore, uma ave, ou um rio. Dos rios eu ainda consigo me lembrar: Iamirim, Iagrande, Cauaburi, Maturaca, Tucano, Tucaninho e Cuiabixi. Como não tinha nada pra fazer, o Deco foi reparar o seu jamanxim e pra isso precisava de cipo novo. Foi pra dentro do mato e voltou quinze minutos depois com um fardo de cipo. Ele foi tirando a casca de um por um deixando o cipo pelado, com uma bela cor meio bege. Depois foi dividindo o cipo ao meio, no sentido longitudinal, com o auxilio deuma faca, e o cipo ficou bem fino, com uns 3 a 4 milimetros de largura. Fino desse jeito, o cipo ficava bastante flexivel mas ainda muito resistente, o que permitia fazer cordoamentos de vários tipos, dar nós e laços bem fortes. Reparei que todos os paus que sustentavam o acampamento eram amarrados com esse tipo de cipo. E eram bem resistentes. Podia se pendurar sem medo de cair. O Deco era mesmo um bicho do mato. Estava completamente a vontade no meio daquela floresta. Talvez ficasse perdido no meio de um shopping ou não soubesse o que fazer dentro de um elevador. Mas na mata ele estava em casa.
Tudo regado a Tang. Dessa vez, de uva. Reconheci pela cor. Ou será que era framboeza ? Existe Tang de framboeza ? Não, acho que era uva mesmo. A noite, a perna doía menos. Mas eu estava realmente com vontade de voltar e desistir de tudo, simplesmente por achar que não teria preparo físico para encarar os quase 3000 metros de subida que tinha pela frente. Dormi antes das oito, pensando a quanto tempo eu não via uma mulher na minha frente: 4 dias ! Dormi melhor esta noite, apesar dos ratos, que voltaram. No dia seguinte, amanheci bem melhor, quase que um milagre. A perna somente incomodava, não chegava a doer. Os joelhos voltaram a dobrar, o que me permitiu dar uma boa cagada, coisa que não fiz no dia anterior, visto que não podia dobrar os joelhos. Ta rindo ? Experimenta cagar no mato sem dobrar os joelhos. É impossível. Fiquei bem mais animado com a possibilidade de continuar em frente, tanto que cheguei até a achar gostoso o café da manhã, que foi biscoito com café com leite, sem qualquer acompanhamento ( geleia, margarina, patê, ou qualquer outra coisa que deixasse aqueles biscoitos saborosos ). Seria psicológico ? Por que aqueles biscoitos eram tão ruins ? Olhei a data de vencimento: julho de 97. Mais essa. Estavam vencidos. Pensamos em diminuir ainda mais o peso que estava carregando. Resolvi deixar a camera 650mm e a camera 6X6, o binoculo, uma sacola de acessórios fotográficos e todos os filmes que já havia batido. Pensei que isso ajudaria a tornar a caminhada menos cansativa. Coloquei tudo dentro de um saco plastico, pra não molhar, e deixei escondido no meio do mato, contando que 4 dias depois estaria lá ainda. Uma insanidade, sem duvida, mas necessaria para se chegar até o final. O Deco deixou uma lata de óleo, macarrao, arroz, acucar e uma laterna. Fomos andando mais devagar e com menos peso. Depois que os musculos foram aquecidos, a dor diminuiu ainda mais e pude andar sem maiores problemas. Procurei um ritmo que fosse bom tanto nas subidas quanto nas descidas e parava 3 minutos a cada meia hora. Nosso objetivo naquele dia seria alcancar o bebedouro novo. Apenas um parentesis pra explicar esses nomes dos acampamentos. Essa trilha foi feita por índios e garimpeiros e, alem deles, ela hoje é u sada por turistas pra se chegar até o pico. Pra facilitar o transporte de materiais, os garimpeiros fizeram vários acampamentos fixos a cada 3 horas de caminhada, onde se pode fazer fogueira, armar rede, colocar um toldo pra se proteger da chuva, e sempre perto de alguma fonte de água , seja um rio, uma bica ou simplesmente uma mina d'água . Todos esses acampamentos tem nomes: tucaninho, bebedouro velho, bebedouro novo, cutia, mutum, macaco, base, pico, jacu.
Se não houvessem esses acampamentos prontos, teriamos que dormir nas redes diretamente no relento, o que seria uma merda em caso de chuva, ou perderiamos um tempo muito grande cortando madeira pra levantar as estruturas, ou levariamos muito peso com as barracas. Chegamos ao bebedouro novo as 13:30. Andamos bem menos que no primeiro dia e, pela hora, ainda tinha luz suficiente pra tentar an dar até o acampamento da cutia. Mas eu não queria forcar a perna demais e achei que chegar até ali já tinha sido uma vitoria. Altitude: 900 me tros. Escutei um delicioso ruido de água em cascata. Era o rio Cuiabixi que soava logo abaixo do acampamento, uns 200 metros de distancia. O barulho era bastante convidativo e pensei em tomar um bom banho, lavar a roupa e descançar mais cedo. Desci até o rio e pude ver que era realmente muito bonito. Tirei a roupa e cai de uma vez... e voltei tão rápido quanto entrei. A água era gelada. Parecia a água das serras em Itatiaia, no Rio de Janeiro. Lindas, cristalinas, porem geladas. Tive que me preparar psicologicamente para entrar na água outra vez. Entrei. Brrrrrr $$ Pensei comigo: depois acostuma. até certo ponto fui acostumando mesmo, mas continuava achando fria. Quem não se acostumou foi o meu pinto, que quase desapareceu. Parecia um anjinho barroco. O bom da água fria é que ela acaba com a sensação de cansaco, e desperta a gente. Aproveitei a fartura de água e resolvi lavar a rou pa, que já estava ficando com um delicioso cheiro de vestiario depois do jogo. Fiz a barba, escovei os dentes, lavei as partes, parecia até um ser civilizado. Me senti bem melhor depois do banho. só quem já tomou banho num riacho de serra sabe o poder regenerador que a água tem.Voltei com outra disposição para o acampamento e fui observar os pássaros no fim da tarde. Em cima do acampamento havia uma ar vore bem florida, o que atraia muitos pássaros. Sem o binóculo, pude identificar apenas beijaf-lores, sete cores da amazônia, cricrio, pica pau, arapacu, bone branco e saira. O jantar foi a merda de sempre: miojo. Com Tang. Dormi rápido e naquela noite não ouvi ratos nem carapanas. Em compensação, acordei de madrugada com frio nos pés e na orelha. Tive que vestir mais roupas pra continuar dormindo. Devido a mata fechada e a altitude, as noites eram bem mais frias que no vale. Mas eu ainda não tinha idéia do frio que me esperava lá em cima. No dia seguinte, o de sempre: café com biscoitos vencidos. Novamente, não levamos água . fomos caminhando contando com a água que encontrássemos no caminho. só que a água que encontramos dessa vez... O que era uma bica de água corrente virou um poço de água parada, quer dizer, quase parada, porque os insetos que nadavam na superfície não deixavam a água exatamente parada.
Me recusei a beber aquele liquido. não era água . Aprendi na escola desde pequeno que água não tem cheiro, cor ou gosto. Aquela tinha os tres. Mas o Deco adiantou que a próxima água somente no final do dia. Sendo assim... encarei. Os insetos não gostaram muito do fato da gente Ter-lhes tirado o pouco da água que eles tinham pra nadar mas eu argumentei que "lei da selva é lei da selva". E tome subida! A partir do bebedouro novo o caminho era subida e mais subida. não tinha refresco. E nem poderia ser diferente: teríamos que chegar até a base do pico, a 2000 metros de altura, e estávamos a apenas 900 metros.
Apos os 1200 metros tudo começava a mudar. A vegetação alta dava lugar a uma vegetação mais baixa e densa, com aumento da umidade, do vento e do frio. Muitas raizes expostas tornavam a caminhada ainda pior. O terreno ficava cada vez mais alagado e eu tinha que to mar cuidado com a minha bota, que não era impermeavel. E tome subida $ Em compensação, a fauna ia ficando bem mais interessante. Os pássaros que via lá em baixo não existiam nas partes altas e vice versa. E os que eu via agora eram quase tudo novidade pra mim. Um tucano verde, um surucua de barriga vermelha, beijaf-lores, dancador de crista, sabia dofrio, ticotico da mata, ticotico do tepui, pulapula, etc. Alem da beleza das espécies, chamava a atenção o fato de que todos eram muito mansos, permitindo me aproximar as vezes até 3 ou 4 metros de distancia. Lembrei do pico de Itatiaia, no Rio de Janeiro, onde os pássaros que existem por lá São também muito mansos. Seria uma mera coincidencia ou existiria alguma relação entre a altitude e o fato dos animais se tornarem mais mansos ? não tenho resposta pra isso, mas o fato existe. E quanto mais alto ficava, mais mansos eles eram. Tirei boas fotos neste trecho, inclusive de algumas cobras que encontramos pelo caminho. Em alguns pontos, dava pra ver o Pico da Neblina e o Pico 31 de Marco, que também ficava naquela região. Nos pontos em que se avistavam os picos, dava pra ver também a mudanca do clima. Grandes nuvens passavam pela gente a grande velocidade, encobrindo as copas das arvores frequentemente. Muito vento e frio. Acima dos 1800 metros não existiam mais árvores grandes. Somente arbustos baixos e uma quantidade enorme de liquens, musgos e bromelias. Muitas plantas rasteiras e flores. Encontrávamos beijaf-lores o tempo todo e todos sempre mansos. Por mais que eu tentasse desviar dos alagados, a umidade alta e a garoa provocada pelas nuvens baixas deixavam as roupas e as botas bem molhadas, como se estivesse chovendo. Devido a isso, quase não dava pra tirar fotos. O equipamento ficava molhado também e a lente embaçada, não permitindo tirar fotos nítidas. E não havia como secar a lente pois não tinha nada seco. Era complicado. No meio da tarde chegamos no ponto mais alto da serra do tucano, a 2000 metros de altura. Teriamos uma hora de descida até a base do pico, onde acampariamos. A descida era lama pura, com direito a tombos e escorregoes. Felizmente a água era farta e limpa. E gelada. Lembrei daquele comercial da Kaiser, onde a guia turística explicava o que eles iriam fazer durante todo o dia e todos perguntavam ao mesmo tempo: dá pra tomar uma Kaiser antes ? No momento em que chegamos a base do Pico da Neblina, o mesmo estava totalmente encoberto pela neblina, o que justificava bastante o nome que tinha. O acampamento da base era espacoso e conforta vel, com lugar pra pendurar as tralhas e ficar sentado sem colocar os pés no chao. É claro que, quando eu falo em "confortavel", estou falando em conforto dentro daquelas condições. As pernas e os joelhos nunca ficaram completamente curados daquele primeiro dia de caminhada, mas a sensação de dor era pequena e a cada dia diminuia um pouco. Naquele frio, o cansaco era menor. O banho é que se tornava um problema. Se a água a 900 metros de altura era fria, imagine a 2000 metros. Era otima pra fazer o Tang, mas pra tomar banho... não dava pra ficar sujo, não tinha como esquentar a água , o jeito foi encarar a água assim mesmo. Entrei. não gritei. Quer dizer, a voz não saia. Acho que as cordas vocais congelaram. O corpo todo tremia de frio, os dedos ficaram roxos, e o pinto desapareceu de vez. Um anjinho barroco, do meu lado, já poderia ser considerado um bem dotado. Sem voz, gritei um puta que pariu em pensamento. Pra piorar, um vento forte e gelado ajudava a arrepiar as coisas ainda mais. O Deco havia acendido a fogueira pra preparar a janta. Ahh que calorzinho gostoso... não dava mais pra sair de perto da fogueira. Falando em janta, qual seria o menu de hoje ? Arroz com jabá? Que delicia $ Tang pra beber ? E tudo isso regado a farinha ? É muita mordomia $ Abri o equipamento fotográfico e coloquei perto da fogueira pra tirar a umidade da lente. Enquanto ele secava, fui fazer algumas anotacoes pra não esquecer detalhes mais tarde. Quase que não pude escrever nada: o papel estava umido devido a garoa e a caneta rasgava o papel com facilidade e não escrevia nada. Parecia que tinha chovido no papel. só consegui escrever nas folhas mais internas. Quando já estava quase escuro na base, o ceu limpou e eu pude ver o por de sol iluminando o pico bem na nossa frente. Era muito lindo. Aquela montanha enorme e pontuda de pedra, toda dourada com a luz do sol, sem vegetação, sob um fundo azul escuro, e abaixo a mata já sem luz, fazendo contraste com o pico. Aproveitei pra tirar um monte de fotos. Foi quase um filme inteiro só com o visual do pico. O Deco falou que eu tive sorte em ver o pico logo no primeiro dia. Por várias vezes, ele já passou até uma semana sem conseguir ver nada. não sei se da pra fazer as pessoas entenderem o prazer que a gente sente ao conseguir chegar num lugar desses. Da uma sensação de vitoria, de conquista, sei lá. É um daqueles lugares magicos que só o fato de estar lá já é um premio. Pra quem é chegado em civilizacao, é como aterrissar em Nova York, ou Paris, ou Londres. Pra quem é mais ligado em natureza, é como visitar o Gran Quenyon, o Salto Angel na Venezuela, o Everest, Foz do Iguacu, os Alpes, Bora Bora ou Havaii. É um lugar magico. só isso. O prazer maior esta em chegar lá e depois contar pra todo mundo que esteve lá. Assim como comer a Sharon Stone. Nao teria a menor graca se não pudesse espalhar pra todo mundo. Achei que dormiria bem melhor naquela noite, afinal já havia conseguido o objetivo principal, que era chegar lá. O Deco, que até entao quase não falava, resolveu conversar como nunca naquela noite. Contou estorias do tempo em que já foi garimpeiro no Brasil, na Venezuela e na Colombia. Estorias de brigas e mortes por causa do ouro dos garimpos, prisoes e fugas, tanto da policia quanto dos traficantes que existiam muito por lá, antes do exercito aparecer. Contou que haviam traficantes que faziam o comercio da cocaina por motivos mais politicos que financeiros. Eles queriam acabar com a juventude americana atraves da droga, numa espécie de vinganca contra os americanos por entenderem que eles acabaram com a esperanca de futuro da juventude latina atraves da exploração financeira, politica e comercial. Contou que largou o garimpo porque não valia a pena. Estava sempre na ilegalidade, a maior parte do tempo não conseguia ouro suficiente sequer pra gastar com comida e prostituicao. E se achasse uma quantidade grande, tinha que esconder muito bem pra evitar emboscada dos próprios companheiros de garimpo.
Enquanto a gente conversava, bandos de sabias do frio e de ticoticos do tepui entravam dentro do acampamento, as vezes a menos de um metro do meu pe, como que conferindo a cara dos visitantes. Entravam, nos olhavam e depois saiam. não demonstravam nenhum receio. O Deco me avisou sobre um pássaro que se chamava seis-e-meia, pois tinha o hábito de cantar sempre naquela hora. Num determinado ponto da conversa, ele interrompeu e chamou a atenção para o tal canto. Olhei no relogio e vi que eram 6:35. O passarinho estava um pouco atrasado. Consegui achar o pássaro, mas não pude identificar no momento. Sabia apenas que nunca tinha visto. Depois, já em casa, conferindo as fotos feitas com os livros que tinha sobre pássaros, vi que se tratava de um wissia, um pássaro migratorio dos Estados Unidos e que passava o verao nas montanhas do norte da América do Sul. Era considerado raro e fiquei feliz em conseguir tirar fotos dele. Quando escureceu, um temporal caiu sobre o acampamento demonstrando imediatamente a grande quantidade de furos que haviam na lona que nos cobria. Tentamos ajeitar as nossas coisas entre uma goteira e outra, de maneira a não molhar nada. Com a mesma rapidez que a chuva veio, ela se foi. Ficou a penas o barulho da água pingando e aqueles ruidos tipicos da noite: sapos, grilos e corujas. Enquanto o sono não vinha, ficava pensando que já estava a 6 dias sem ver uma mulher na minha frente. Pensei no Amir Klink. Ele ficou um ano na Antártida e, consequentemente, um ano sem ver mulher. Que força de vontade !!! Ha 6 dias não ouvia radio, não via televisão e nem lia um jornal. O que será que estava acontecendo no mundo ? não tinha contato com ninguém a não ser o Deco. Parei de pensar quando percebi que meus pés estavam congelando. A temperatura caiu rápido. Perguntei ao Deco quanto costumava cair. Ele disse que até os 8 graus era comum. O Deco já estava acostumado com o frio mas eu já havia me habituado ao calor de Manaus, com temperaturas sempre acima dos 25. Resolvi vestir todas as roupas que havia trazido, inclusive as sujas. Ao todo, foram 3 calcas, 4 camisas, um casaco, 6 pares de meias, a bota e tudo isso dentro do saco de dormir, fechado até a cabeca. E ainda assim senti frio. Mas consegui dormir. No dia seguinte, se não fosse pela vontade de fazer pipi, acho que não sairia de dentro da rede. Mas como tive que levantar pra não fazer na rede, aproveitei pra lavar a cara, escovar os dentes, tudo com água gelada, é claro. Tava muito frio, o sol ainda não tinha apontado, embora lá em cima no pico já houvesse luz, o que me permitiu tirar fotos muito bonitas. São Pedro estava colaborando comigo e não mandou nenhuma nuvem pra atrapalhar. Tirei lindas fotos com a maquina gelada. Depois das fotos, fui me deliciar com o soberbo desjejum preparado pelo chef Deco: Nescafé com leite e biscoito seco, duro, vencido e, agora, gelado. Todo farelo jogado no chão era imediatamente atacado pelos sabiás e ticoticos. Um sabiá, mais exigente, fez cara de quem não gostou dos biscoitos. não posso culpa-lo. Depois que os pássaros iam embora, o que sobrava era comido por uns ratos interessantes, bem peludos e avermelhados, parecidos com um hamster. Chegavam a ser simpáticos, embora fossem ratos. Eram parecidos com hamster também no tamanho, bem pequenos. Feito o desjejum, o programa do dia era caminhar até o cume, pela trilha do Montila, contornando o pico a leste e subindo por traz até o topo. O Montila, como todos sabem, é uma pequena serra que limita o vale da base do pico, do lado oeste, em contraste com a serrado Tucano, do lado leste. Durante a caminhada, muita lama, muitas flores, e também muitos beijaf-lores. Haviam basicamente 3 tipos, mas um deles, com a barriga alaranjada e as costas verdes era o mais comum. A medida em que iamos subindo, as espécies de pássaros diminuiam, porem as quantidades das espécies de cada tipo aumentavam. Numa altitude em que praticamente não haviam mais arbustos, somente plantas baixas, encontrei um tal de furaflor, o alegrinho de garganta branca, a guaracava da serra, andorinha de bando e andorinhoes do temporal.Todos eles pássaros que só conhecia pelos livros e nuncaos tinha visto, muito menos fotografado. Enriqueci bastante o meu arquivo fotográfico com eles. Havia também uma grande quantidade de calangos nas pedras do caminho, alguns bem coloridos. Muitas flores também e, neste caso, lamentei não ter nenhum conhecimento do assunto mas, segundo o Deco, no ano de 95 um frances ficou mais de um mes acampado na base do pico, somente para estudar as flores e, segundo ele, a maior parte das espécies encontradas na Serra do Tucano e na Serra da Montila São endemicas, ou seja, só existem lá e em nenhuma outra parte do globo. No caso dos pássaros, isso também acontece com algumas espécies, como o ticotico do tepui, que só existe nessa fronteira montanhosa entre o Brasil e a Venezuela. Ir durante o dia até o cume é uma tarefa dificil e ingrata pois, quando se chega lá em cima não se enxerga nada. E o seguinte: depois das 8 da manhã, as nuvens começam a aparecer e fechar completamente o pico, de forma que quem esta em baixo não ve o que esta em cima e quem esta em cima não enxerga nada lá pra baixo. É tudo branco. So nuvens e nuvens, como num avião. não ha o que ver nem o que fotografar. Somente pedras e um monte de tranqueiras deixadas pelos outros aventureiros que estiveram lá antes de mim: fotos, bandeirinhas, registros de toda espécie, marcas do exercito brasileiro e venezuelano, etc. Para se ver algum espetaculo interessante, como o nascer do sol ou o por do sol, é necessario que se durma lá no pico, onde a temperatura baixa dos 4 graus, os ventos São bem mais fortes e praticamente garoa todo o tempo. Porra, eu quase congelei na temperatura da base, o que seria de mim lá em cima ? Dormir lá, nem pensar. Desci no mesmo dia. Embora não seja uma trilha simples, também não precisa ser alpinista pra subir até o topo, nem ha necessidade de cordas ou outros apetrechos. Como já disse antes, o mais gostoso é saber que se chegou lá. Consigo entender, perfeitamente, o que sente um alpinista quando vence a montanha. É muito gostoso. As vezes sentia um pouco de tontura e me cansava com muita facilidade. Devia ser efeito da altitude. Tinha que parar com muita frequencia e passar mais tempo descansando. Somente lá em cima é que pudemos fazer uma refeição mais saborosa. Castanha de caju com caramelo e chocolate. O Deco havia levado especialmente para ser consumido lá em cima. Segundo ele, se o cara não comer muito chocolate, fica fraco e não consegue descer depois. Acreditei nele e, naquela altura do campeonato, acreditaria em qualquer coisa pra comer algo diferente de arroz com jabá e miojo. Voltamos pouco antes de começar a chover, e deu tempo pra recolher a roupa que eu havia deixado pra secar, assim como a lenha pra fazer o fogo. Fui tomar banho e beber água . Com a chuva, a água ficou barrenta mas eu bebi assim mesmo. Pelo menos não tinha insetos nela. A água continuava gelada mas eu sentia que estava me acostumando. Pelo menos eu já gritava todos os palavroes que conhecia quando me molhava. Antes eu não conseguia falar nada. Durante a chuva, alguns pássaros se esconderam sob o toldo junto com a gente, sem a menor cerimonia. Eram incrivelmente mansos. Ao cair da noite, a refeição voltou ao normal. Arroz com jabá. Puta que pariu ! Jurei que jamais comeria jabá outra vez, depois que voltasse a civilizacao. O Deco comia como se fosse a coisa mais gostosa do mundo ou como se não houvesse outra coisa pra se comer na vida. De repente, vozes. Fiquei na duvida se eram vozes mesmo ou pura leseira da minha parte. Ainda não estava ficando leso, eram vozes mesmo. De longe pareciam dois trogloditas. Quando chegaram mais perto, vi que eram mesmo dois trogloditas. Eram o Cobal e o Andrade. Dois garimpeiros, o primeiro deles preto e o segundo branco. Quer dizer, parecia preto. Eu não sei se era a cor dele ou se era a cor da sujeira que cobria ele. O Cobal era uma figura saida do Jurassic Park, um elo perdido, um ser das cavernas um primo do neanderthal. Cabelos enrolados, enormes, barbas enormes e trapos no lugar de roupas, onde não se podia imaginar a cor que um dia elas tiveram. Ele e o Andrade já estavam lá em cima ha quatro anos sem terem descido pra cidade nenhuma vez. O máximo que fizeram foi ir até a barra do Tucaninho pra comprar mantimentos trazidos pelos comerciantes ribeirinhos ou pelos índios. Era esse o tempo que eles estavam sem ver uma mulher na frente. Quatro anos! não quiz ser indiscreto e não perguntei "como é que eles faziam", mas que deu vontade de perguntar, ah isso deu. O Cobal disse que, da última vez em que desceu até a cidade, gastou toda a quantidade de ouro que tinha juntado com putaria. não comprou nada. Imagina so. É uma vida muito doida, essa de garimpeiro. Depois, eu me encontraria com o Carioca, um outro garimpeiro, e atraves dele eu pude entender melhor o que leva um cidadao a optar por esse tipo de vida. Mais adiante eu conto essa conversa. O Cobal, apesar das aparencias, é uma boa pessoa. Tem uma amizade toda especial por um beijaf-lor e por um sabiá, que já se habituaram a comer na sua mao, e costumam segui-lo com frequencia. O beijaf-lor chega ao ponto de sentar na beirada da caneca do Cobal e beber ao mesmo tempo, quase encostando o bico no rosto dele. O Andrade diz que metade do acucar que o companheiro compra é pra fazer a água do beijaf-lor. Deve ser verdade. Eles foram embora pouco tempo depois, já quase escurencendo e não quiseram comer com a gente. Ainda bem, porque não tinha muita comida. Um detalhe que eu havia esquecido de contar. Tínhamos esquecido de trazer talheres. Haviam apenas uma faca grande e duas colheres. Esse tempo todo eu fiquei comendo de colher, inclusive o macarrao. No dia seguinte, o começo da caminhada de volta...
continua na 3a. e última página....... Robson Czaban é fotógrafo, artista plástico, analista de sistemas, aventureiro, contador de causos, etc.
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